CHUVA DE NOVEMBRO

Escrita por Lannyluck

As boas vindas do sol abençoavam o Santuário que se regenerava da escuridão. Mas o que fazer quando esta se encontra no esconderijo de cada coração? Shina abriu os olhos, incomodada com as frestas solares que invadiam sua janela. Em seu típico mau humor matutino, empurrou a cortina para que seu recinto voltasse ao breu. Mas não adiantava. Mais uma manhã que desponta, mais um dia que a realidade a perturba... mais um dia sem ele. Mais um dia sem Milo de Escorpião. O eclipse causado por Hades fora, finalmente, vencido. Às custas de doze preciosas vidas, no entanto. O mundo estava são. Mas seu universo interior estava deteriorado. Por um único momento que se permitiu dar vazão ao amor que outrora fora seu inimigo - e grande mestre, ao mesmo tempo - viu-se, quase no instante seguida, sendo castigada pela dor do mesmo sentimento. Dessa vez, algo mais cruel. Uma distância provocada. Corações apartados pela vida.

Por ela, perderia o dia em seu confim interior. Mas não podia. Obrigações externas a chamavam. E Shina não era mulher de se entregar, ainda que seu coração estivesse em cacos. Suspirou fundo, entediada. Afastou o lençol branco que a cobria e sentou-se na cama. Seu corpo estava vestido com uma camisola verde folgada, o que lhe emprestava uma aparência ligeiramente feminina. Feminilidade oculta diariamente pelo ônus da máscara. Antes de por-se de pé, higienizar-se e fazer seu desjejum, olhou, despropositadamente, o calendário. Oito de novembro. O dia em que Milo, vivo, receberia os parabéns por mais um ano de vida. Não, definitivamente aquele não era seu dia de sair de casa. Estreitou os lábios tremelicantes. Alguma palavra sairia da sua boca, mas sua garganta a prendeu. Essa expressão veio em forma de lágrimas que, silenciosas, começaram a resvalar por seu rosto.

- Como sinto sua falta, Milo... - Falou Shina ao vazio, ao passo que voltou a sentar-se na cama. A descoberta da data obliterara seus resquícios de vigor.

Após longo suspiro, levantou-se da cama outra vez e dirigiu-se à sucinta cozinha. Conseguiu sentiu um pouco de fome, em meio à melancolia. Abriu a geladeira e serviu-se parcamente de leite e alguma fruta. Olhava o infinito com o alimento em mãos.

- Pensei que já estivesse na arena. - Uma voz feminina fez-se ouvir e Shina não precisou virar-se na direção da interlocutora para reconhecer Marin. A amiga amazona havia entrado em sua casa, uma vez que possuía a chave.

- O que quer, Marin?

- Lembrar a você que temos muitos afazes hoje. O Santuário está sendo restaurado e não podemos deixar tudo nas mãos dos sentinelas e dos outros cavaleiros.

- Não preciso que me lembre, Marin...

Geralmente agressiva, Shina não conseguia expressar mais que fastio e desolamento. Marin o percebeu e sabia a razão.

- Sente muita falta dele, não?

- Muita... e creio que você me entende.

- Entendo. - Marin claramente se referia a Aiolia, cujo destino fora igual ao de Milo. A Águia sofria da mesma maneira que a Serpente, mas pouco demonstrava. - Mas nada que possamos fazer. O destino de cada um de nós já vem escolhido.

- Não sabia que eu escolhi sofrer...

- Você escolheu lutar e sofrer as consequências disso. Apenas isso.

O diálogo era frio, pois Marin tencionava ser objetiva. Lutava para não se entregar ao esmorecimento e queria que Shina fizesse o mesmo.

- Hoje seria aniversário dele, Marin...

Marin silenciou. Por mais que quisesse perseverança da parte de Shina, exigir um bem-estar mental num dia que a faria feliz caso Milo estivesse vivo é sobre-humano. Shina estava sentada à pequena mesa, tomando seu desjejum. Marin sentou-se na cadeira ao lado.

- Quer que eu te faça companhia?

- Só um pouco. Quero ficar sozinha.

- Como quiser... - Mesmo não sendo adepta a gestos carinhosos, Marin tocou a mão de Shina com a sua. Queria passar à amiga um pouco de conforto, se é que isso fosse possível. Shina comia laconicamente, mordendo, vez ou outra, um pedaço de pão ou bebericando um pouco de leite. Sua vida estava sem viço, sua existência, naquele dia, perdera o sentido. Será que pra mais alguém essa falta de sentido existia?

Do lado de fora do casebre, uma vida esvaída observava a depressão da amada. Ele não trajava a Armadura Dourada, embora pudesse plasmá-la quando quisesse. Finalmente, depois de um infinito enclausurável, Milo e os demais dourados tiveram abolição. Agora todos descansavam merecidamente e velavam por seus entes queridos e pelos remanescentes da Guerra Santa. A lealdade deles era perpétua e além do corpo se auxiliariam. E se amariam também, ainda que a morte trouxesse o silêncio dos amantes.

Milo trajava um conjunto grego azul destoante entre a calça e a camiseta e, mesmo plasmado, pequenas proteções de treino como joelheiras e cotoveleiras. Os cabelos azuis vinham presos em um rabo baixo. Nem seu espírito deixava de ser belo. No entanto, o olhar, antes letal e sedutor, encontrava-se triste e perdido. Partira honradamente em nome da missão que abraçara em sua vida e orgulhou seu signo. Sua vida pertencia à deusa que protegia esse mundo. Mas sua vida também tivera outro sentido ao se apaixonar por Shina. A vida lhe sorriu quando a amada conseguira esquecer o seu amor platônico por Pégaso e ele, finalmente, entrara em seu coração. Mesmo depois da vida, ainda a amava como sempre o faria. E velaria por ela. E cuidaria dela. E queria vê-la feliz. Mas o que via era uma mulher entregue à tristeza e à saudade. Lhe corroía o peito vê-la assim.

Faria qualquer coisa para tirar sua amada do lamento. Se pudesse, renasceria. Mas seu ciclo chegou ao fim. Shina precisava entendê-lo. A missão de um cavaleiro é uma tênue existência em prol do benefício da terra - e em detrimento deles como homens e mulheres.

- Sua tristeza vai acabar, meu amor.

Shina, por sua vez, aceitou a mão que Marin ofertou. Apertou-a firme com a sua. Ligeiramente confortada, Shina levantou-se e começou a desfazer sua mesa de café. Marin observou:

- Descanse por hoje, então. Mas seria bom ocupar a mente com alguma coisa.

Milo escutou a sugestão de Marin e sorriu.

- Diga a ela para não sofrer por mim, Marin. Diga que eu a amo mais que tudo e que ficarei bem se ela ficar.

Marin não podia ver ou ouvir, mas sua sintonia encontrava à de Milo com facilidade, devido à vontade de auxiliar Shina.

- Independente do dia, você terá que parar de sofrer, Shina. Lembre-se do quanto Milo a amava. Eu lembro dos meus ùltimos momentos com Aiolia para sentir meu coração mais leve. Sei que ele não gostaria de me ver sofrendo. Milo também não suportaria por você.

Shina aparentava indiferença às palavras da ruiva, mas absorvia cada sílaba daquele conselho. Até que uma ideia lampejou sua mente:

- Marin... Hoje vou à casa de Escorpião. Lá me sinto mais próxima a ele... Quero passar o dia imersa nas lembranças que ele me proporcionou...

- Se isso lhe tranquilizará, Shina, eu te apoio.

- Me sentirei com menos saudade... Pois ali é como se ele estivesse vivo... Como se ele estivesse perto de mim.

Naquela noite de novembro, o céu contava com infindáveis estrelas luzidias. A noite sorria, embora o coração triste que ela testemunhava. Shina fitou o negro do céu e analisou as constelações. Escorpião cintilava lindamente com sua Antares resplendorosa. Poderia figurar o sorriso alvo de Milo entre os astros. Ao lado, Ofiuco brilhava no mesmo tom e ambas disputavam mais espaço no céu. Se até as estrelas de ambos ficavam juntas, por que os corpos tinham de se separar? Shina não compreendia.

Inconsolada, subiu as escadarias. Não encontrou empecilho por cada templo que passou, uma vez que eles estavam vazios. Quando chegou ao de Escorpião, adentrou. O breu tomou conta de seus olhos.

Habituada à escuridão, caminhou a esmo pelo recinto. Conhecia aquela casa o suficiente. Os objetos permaneciam no lugar. Quase não havia modificações, exceto pelo dono que não estava mais ali. Shina adentrou o quarto do amado. Ali estava a cama que haviam desfrutado tantas vezes. Quantas loucuras ao lado de Milo não realizara ali? Acercou-se à cama e se descalçou. Sentou na beirada e o colchão macio lhe deu vontade de sonhar. Jogou o corpo para trás e fitou o teto. O infinito era sua visão.

- FLASH BACK -

Um novo dia despontava no céu grego. Shina despertava também sob os lençóis brancos da cama de Milo. Acordou com leve incômodo em suas costas e ela sabia de quem era a autoria.

- Será que o Papai Noel poderia parar de me espetar com essa barba? - Seu tom jocoso e sonolento agradavam Milo, que, infantilmente, passava a face não barbeada pelas costas nuas de Shina.

- Não! - O escorpiano engrossou a voz propositalmente, imitando a figura natalina com a qual Shina o comparou. - Essa é a minha vingança pelos arranhões que ganhei nas minhas costas, graça às suas garras de Wolverine. - E continuou deslizando, displicente, a face na pele da amazona.

- Acho que vou usar minhas garras para arrancar sua barba...

- E eu corto suas garras com o aparador de grama...

Ambos riram gostosamente naquela manhã. Em seguida, entregaram-se aos beijos e ao amor mais uma vez.

- / -

- Volte aqui, sua idiota! - Shina o ignorou. O ignorava com o fim de não desfigurar-lhe a face debochada. Mas Milo não se dava por vencido. Correu atrás da amazona e segurou-a pelo braço. - Que pensa que é para me destratar na frente de todos?

Shina foi obrigada a encará-lo, sem intimidar-se, no entanto.

- Penso que sou uma pessoa que não se rende aos seus gracejos imbecis. Agora me solte ou terei de fazê-lo à força?

- Pois tente. - Brotou no rosto de Milo um sorriso maroto.

- Já que pediu... - A amazona impulsionou o corpo para trás e estico a perna direita para chutar o abdome de Milo. No entanto, ele, obviamente mais veloz, segurou-lhe a perna e a derrubou. Caiu por cima dela.

- Você se rende a mim de qualquer jeito, amazona...

- Infeliz...

- Então venha me dar felicidade... - Apressado, ele lhe arrancou sua máscara e roubou-lhe um beijo caloroso. Ela, sem forças, deu razão a ele e se rendeu.

- FIM DO FLASH BACK -

Lembranças deliciosamente dolorosas e cruéis. Uma lágrima deslizou pelo semblante da amazona. Será mesmo que Milo estava morto? Seu coração não o mantinha vivo? Presa em saudade e indagações, adormeceu.

Continua...

Nem acredito que essa fanfic nasceu. Há muito que ela navega pela minha mente, mas nunca a conseguia escrever. Agradeço a Alana por ter me dado um bom incentivo.

E espero que gostem, fãs de Milo e Shina.

Até o próximo capítulo,

Lanny/Thai