Comentários iniciais:
1 – Minha primeira fanfic de Neon Genesis Evangelion. Feita em cima de ampla pesquisa, tanto no universo da obra quanto histórica, mas ainda assim pode haver alguns erros. Desde já peço eventuais desculpas.
2 – Quanto à mídia escolhida: usei elementos de todas as mídias de Evangelion. A de maior foco é a original, o anime antigo, porém há elementos do mangá, jogos e até mesmo do Rebuild presentes no enredo. Fui escolhendo-os de acordo com as necessidades da história que quis contar, mas ao final verão que tudo faz sentido. Esta história é uma prequel de toda a franquia Evangelion, não privilegiando só uma das mídias.
3 – Como disse o criador da franquia, Hideaki Anno, Evangelion é uma história de ficção científica que utiliza simbologia e alegorias religiosas, e não deve ser levada mais a sério do que isso. Esta fanfic segue essa premissa. Se você se sente ofendido com referências a religião fora de seu contexto original, recomendo que pare de ler aqui.
THE DAWN OF EVANGELION
"O evolucionismo é, sem dúvida, útil para uma observação ordenada do passado; se se quiser demarcar o caminho do futuro com sinais indicadores deve-se esperar que uma nova geração, capaz de tomar decisões, enfrente o grande experimento que, ao assim proceder, já começa a refutar o próprio evolucionismo"
(Martin Buber)
Gênesis
Palestina, 1947
Ele definitivamente tinha um sono pesado.
Os motores do avião roncavam como cães do inferno, mas mesmo assim eram incapazes de despertá-lo. O feito era no mínimo admirável: voavam a bordo de um Douglas C-47 Skytrain, aeronave norte-americana de transporte militar usada para levar pára-quedistas para trás das linhas inimigas na guerra que há pouco terminara. A coisa não fora, por isso, projetada para proporcionar tranqüilidade a seus passageiros: além de barulhenta, não possuía poltronas enfileiradas. Apenas dois contínuos assentos baixos e duros junto às janelas, um de cada lado do corredor do avião. Além do mínimo de conforto, a disposição dos bancos obrigava os tripulantes a ficarem lado a lado com seus companheiros de vôo, por mais incômodos que fossem.
Ele podia dizer isso de um deles. Por sinal, fora por seu motivo que acordara. O coronel Lorenz não sabia o que era falar baixo. Ainda mais quando o assunto era de seu interesse. Alojado ao seu lado, via-se envolvido em animada conversa – no caso, mais parecida com um monólogo, já que a outra ocupante, com expressão vazia, não aparentava lhe dar muita atenção...
- A humanidade está sendo dizimada por ideologias enganosas. Por todo o mundo, o Homo sapiens tenta chegar ao almejado último estágio de evolução, em que alcançaria a plenitude de espírito e a perfeita sincronia com o universo. As formas que as limitadas mentes dos homens criaram para chegar a isso, porém, beiram o infantil. Eliminar minorias, consideradas "raças inferiores", em campos de concentração, para purificar a "raça ariana", dita superior? Impor às pessoas uma forçada divisão de bens e terras, tentando criar o "Novo Homem" soviético, sem egoísmo? Nacional socialismo, comunismo... Hitler, Stalin... Todos tolos infantis. Todos falsos profetas do real último passo da trajetória do ser humano na Terra.
Lorenz, na verdade, estava claramente cuspindo no próprio prato em que comera. Ele sabia sobre o passado do velho coronel. Diziam ter sido um dos maiores açougueiros de Auschwitz, e um dos mais apaixonados apoiadores das pesquisas em laboratório nazistas tendo seres humanos como cobaias. Escapara, em circunstâncias misteriosas, do julgamento dos crimes de guerra de seus compatriotas em Nuremberg. Tal fato era estranho devido ao militar não ter aparentemente deixado de dar o ar de sua graça publicamente, enquanto rumores afirmavam que seus colegas mais cautelosos haviam fugido para definitivos exílios na América do Sul. De todo modo, vivera até então para organizar aquela viagem ao Oriente Próximo. Mas ele começava a se questionar se não seria melhor que o coronel houvesse tido seu pescoço partido numa forca. Ao menos assim fecharia a matraca.
Tentando ignorar a falácia de Lorenz, fitou a outra integrante daquela expedição. Em contraste à figura do velho nazista, era símbolo de leveza, elegância e perfeição. A camisa de botões em cor cáqui, já combinando com o clima e a paisagem desérticos que enfrentariam, falhava em ocultar-lhe o busto bonito e avantajado. As calças na mesma cor eram bem curtas, terminando sobre os joelhos e deixando assim à mostra parte de suas lindas pernas claras. Botas de couro envolviam-lhe os pés, mas ele era incapaz de imaginá-los como algo diferente de dóceis e firmes – combinação contraditória que aparentava descrever muito bem o caráter daquela mulher, pelas poucas palavras que com ela trocara. A cabeça, àquele ângulo junto à janela, encontrava-se envolvida por sua cabeleira cor de fogo, os lisos fios ruivos deixando apenas metade de seu rosto à mostra. Sentiu-se lisonjeado por ela ter escolhido se sentar bem à sua frente, do outro lado do corredor. O olhar distante, no entanto, revelava estar preocupada com outros assuntos, alheia a qualquer possível galanteio.
Doutora Lianna Zeppelin Soryu. Uma arqueóloga da antiga Ahnenerbe, a organização que os nazistas haviam criado para buscar pelo mundo vestígios de que a raça ariana sempre fora superior. Envolvia-se, agora, em outros tipos de trabalho.
E o prazer era todo dele.
Virando-se para o coronel, constatou que este fizera pequena pausa em seu discurso, talvez cansado de tanto falar e fustigado pela sede – como revelava seu uniforme empapado de suor. Aproveitando o fato e desejoso de mudar o assunto para algo mais agradável, já que de qualquer modo Lorenz logo tornaria a matraquear, elecochichou, apontando para a cientista:
- É uma mistura de nomes bem curiosa, não acha?
- Por certo... – respondeu o velho num sorrisinho malicioso. – Pelo que sei, um tal diplomata japonês viajou para a Alemanha em 36 para a assinatura do Pacto Anti-Comintern, ou um daqueles outros tratados que acabaram nos ligando aos japoneses durante a guerra. Nessa viagem, ele acabou se apaixonando pela doutora, na época uma das secretárias de Ribbentrop, o ministro do exterior nazista... Os dois acabaram se vendo mais vezes até a guerra começar, e se casaram. O marido japonês morreu em Hiroshima, mas a esposa manteve o sobrenome oriental dele depois disso.
Ele assentiu com a cabeça, ao mesmo tempo em que a fitava. Estaria pensando no falecido esposo? Não... ela era uma mulher forte. Alguém capaz de superar tal perda. Não poderia ainda estar remoendo aquilo. A manutenção do sobrenome devia ter se dado num gesto de respeito...
Deu conta de que novamente julgava pessoas sem conhecê-las bem. Isso já se mostrara um erro no passado.
- Não parece muito empolgado com a descoberta, senhor Gospeller... – murmurou Lorenz, visivelmente incomodado. – Mal tem falado desde que decolamos.
- Apenas não me sinto à vontade com este lugar... A maldita região está sendo disputada desde que o mundo é mundo. Judeus, cristãos, muçulmanos... E agora a ONU quer rasgar o território ao meio, dividindo-o entre os judeus e os árabes. Tudo isto aqui é um grande barril de pólvora, coronel. Só está esperando a fagulha para explodir. E temos de vir justamente para cá, só para cavarmos um buraco no meio do deserto...
Lorenz suspirou, e pela primeira vez desde que Gospeller o conhecera, dois anos antes, parecia realmente irritado. Demonstrou isso fungando como um boi, ao mesmo tempo em que se curvava no assento e, virando a cabeça para frente com o olhar voltado para o nada, mãos sobre os joelhos numa pose que o fazia parecer um Buda alemão, disse num tom sério e baixo:
- Senhor Gospeller, sabe o motivo de eu e minha organização termos procurado seu banco. Infelizmente a guerra esgotou nossas divisas, e a obtenção de novas mostra-se vital para a realização deste empreendimento. O senhor confiou em nós, e nós confiamos no senhor. Não há motivo para desmerecer esta viagem.
- Eu apenas acho que o nível de confiança não é mútuo... Ainda não me disse quase nada sobre essa tal organização. Não ligo se for o "IV Reich" ou a "SSS", mas eu preciso ver rostos, coronel Lorenz. Mais rostos além do senhor.
O velho militar deu um demorado suspiro antes de endireitar o tronco e responder:
- E eu garanto que há certos rostos que o senhor não gostaria de ver. Como os das autoridades de seu país se descobrirem que seu banco mantém depósitos de criminosos nazistas foragidos, e tenho certeza de que suas origens judaicas não ajudariam em nada nessa questão...
Aquele homem era um maldito. Maldito.
- Espero apenas sair ganhando disto tudo... – murmurou Gospeller num gesto resignado.
- E irá. Todos ganharão. Lembra-se do que eu falava sobre o dilema do evolucionismo? Sobre Hitler, sobre Stalin? Nada que os homens possam criar será a real resposta para esse dilema. A verdadeira solução já está aqui na Terra, enterrada há milênios nas areias deste deserto. Nós, agora, só precisamos encontrá-la.
O banqueiro concordou com a cabeça sem um pingo de sinceridade. Lorenz era mesmo um maldito. Um maldito louco.
Nisso, Lianna desencostou o rosto da janela, voltando-se para os dois homens com o mesmo semblante sem expressão:
- A pista de pouso. Logo iremos descer.
Se o clima já era quente dentro do C-47, o lado de fora parecia um forno a céu aberto. O tempo estava bom, com um céu azul sem nuvens, porém Gospeller nunca desejara tanto pela chuva. No instante seguinte se arrependeu, todavia. Tempestades no deserto não deviam ser lá muito receptivas.
Desceram do avião por meio de uma improvisada escada, pisando então a dita pista de pouso – apenas uma extensa faixa de asfalto no meio do nada. Não havia sequer torre de controle. O piloto que os trouxera devia ser mesmo habilidoso. Lorenz mencionara algo sobre ser um veterano da Luftwaffe.
Os três viajantes viram-se obrigados a cobrir as cabeças com os chapéus que traziam consigo. Gospeller deu uma última olhadela para a linda cabeleira da doutora, ardendo como chamas sob o sol, antes de a mesma ser ocultada pelo acessório. Vieram até aquele local inóspito à procura de um tesouro, mas o banqueiro acreditava já tê-lo encontrado bem antes, quando embarcaram em Tel Aviv.
Olhou ao redor. Perto do avião, um jipe militar britânico estacionava, tendo três homens a bordo. Pele escura, barbas, dois deles usando turbante. Habitantes da região, sem dúvida. O coronel pôs-se a caminhar até eles, informando aos dois companheiros de expedição:
- Eles serão nossos guias até o sítio de Qumran. Conhecem a área como a palma da mão. Com sorte, estaremos lá ao final da tarde.
Súbito, a doutora Soryu adiantou-se, passando rapidamente por Gospeller e agarrando, por trás, um dos braços de Lorenz. O ex-nazista voltou-se surpreso, a expressão em sua face digna de alguém capaz de desintegrar algo apenas com o olhar.
- Desculpe-me, heer colonel, mas a situação é totalmente inaceitável – expressou-se Lianna. – Não podemos chegar assim e esquadrinhar o sítio atrás do que quer.
- Como assim? – indignou-se o alemão. – Achei que suas análises preliminares fossem suficientes!
- Apenas para confirmar a possível localização dos artefatos. Mas agora que estamos aqui, temos de fazer um estudo detalhado do clima e do relevo da região, assim como interagir com os moradores. Não podemos simplesmente arrombar uma caverna e levar embora o que houver nela. Além disso, lembre-se de que este território ainda é um mandato britânico. Caso tiremos algo sem autorização, teremos de lidar com as conseqüências.
- Tudo isso pouco me importa, doutora. Temos uma idéia aproximada de onde estão os artefatos. Isso basta.
- Não é assim que arqueólogos trabalham, coronel.
- A senhora por anos pertenceu a uma organização que forjou provas da suposta superioridade histórica dos arianos. Não me venha dar aulas sobre como arqueólogos trabalham!
Desvencilhou-se nervoso da mulher e seguiu seu caminho até os árabes.
Gospeller apenas observou à cena calado. Mais uma vez, a forte personalidade de Lianna, quase sempre contida dentro de seu corpo delicado, dava mostras de existência. Alternou sua atenção, em seguida, para Lorenz a caminho do jipe. Ele passou alguns instantes conversando com os nativos de forma amistosa, fazendo-os darem altas risadas. Na certa lhes prometia grandes quantidades de dinheiro em troca de um trabalho bem-feito. Dinheiro de seu banco.
Voltou pouco depois, apontando para o veículo do qual um dos árabes saltava para dar espaço aos novos ocupantes.
- Vamos!
A paisagem desértica aparentava não ter fim, limitada apenas por muralhas rochosas tão áridas quanto os terrenos planos. O cenário se assemelhava a um grande cemitério de gigantes feitos de pedra, fulminados no início dos tempos e agora ali jazendo em agonia, seus espasmos refletidos na forma de desmoronamentos. Era quase um milagre haver uma estrada razoavelmente conservada, ainda que de terra, cortando aquela região. Parecia até estar esperando por eles. Ao subirem por uma escarpa, a surpresa: muitos metros abaixo, numa depressão do relevo, avistaram uma vasta extensão de água clara, seu lado oposto podendo ser enxergado apenas vagamente, como um grande lago.
- O Mar Morto – Lorenz o apresentou.
Gospeller, que já estava com sede e quase esgotara o líquido em seu cantil, sentiu-se ainda pior ao imaginar o sal em sua boca caso mergulhasse naquele lugar. A vista era esplêndida, porém. Queria que houvesse durado mais tempo, mas logo o árabe ao volante virou o jipe para noroeste. Deviam estar chegando.
Aquele lugar admirável e ao mesmo tempo penoso, por sinal, vinha dando nome aos artefatos que procuravam. Uma descoberta ainda do conhecimento de poucos, de que Lorenz, representando sua misteriosa organização, ansiava ser o primeiro a se apoderar: os "Manuscritos do Mar Morto".
Ninguém ainda podia afirmar ao certo do que se tratavam. Sabia-se apenas serem documentos muito antigos de autoria de comunidades hebraicas residentes naquela região, encontrados por acaso dentro de cavernas por habitantes locais alguns meses antes. Os ingênuos descobridores dos artefatos sequer suspeitavam o que eram, vendendo-os por preços insignificantes a beduínos e outros comerciantes das redondezas. Três deles, inclusive, haviam sido adquiridos por menos de trinta dólares por um comprador qualquer. Ao menos não havia relatos, segundo as informações que Lorenz possuía, de manuscritos sendo dados de comer a cabras ou virando brinquedo de crianças – triste destino de documentos antigos encontrados em outras partes do mundo. A questão era que, enquanto o achado não despertasse a atenção de grandes especialistas ou instituições internacionais, o grupo representado pelo coronel poderia adquiri-lo sem alarde. Talvez não houvesse outra oportunidade como aquela, e Lorenz não aparentava estar nem um pouco disposto a desperdiçá-la.
Qual o interesse do alemão nos supostos manuscritos? Gospeller ainda não sabia dizer exatamente, exceto pela parte falaciosa sobre "evolução" e tudo mais. Mas era provável que necessitassem de tempo para averiguar os artefatos. Segundo os informantes, os árabes, ao encontrarem as cavernas – que eram várias – teriam removido apenas uma quantidade ínfima dos pergaminhos nelas armazenados. E, para terem permanecido séculos tão bem-escondidos, os hebreus responsáveis deviam ter ótimos motivos...
A estrada logo terminou. A dupla de guias nos assentos da frente apontou para uma vasta área rochosa adiante, sendo difícil distinguir o que era pedra e o que era areia. O céu começava a avermelhar, anunciando o iminente entardecer. O árabe que até então dirigira indicou um paredão a cerca de trezentos metros de distância, em meio ao qual, olhando bem, podia-se identificar uma saliência com um buraco escuro. Falou algo em sua língua. Lorenz, que a compreendia, traduziu de imediato aos demais:
- Foi lá que o sogro dele encontrou os primeiros pergaminhos.
Não seria difícil alcançar a entrada: as pedras no caminho formavam quase uma escada, ainda que acidentada. O coronel pôs-se de imediato a caminho, ordenando com um gesto que os guias aguardassem. Mas os dois companheiros, é claro, deveriam segui-lo.
- Já está escurecendo, o senhor vai querer mesmo ir agora? – perguntou Lianna com certa hesitação.
- Nem que eu tenha de dormir com as urnas, nós vamos encontrar esses manuscritos hoje! – respondeu o incansável militar, sua voz ecoando pelo entorno.
Chegaram à abertura na rocha em poucos minutos, após um trajeto íngreme e escorregadio – mas que não gerou maiores contratempos. O interior da caverna era sombrio, nada se podendo enxergar a partir de alguns metros adentro, onde o sol que se punha não conseguia mais lançar seus raios. Dali provinha um cheiro pitoresco, remetendo à poeira, porém não somente a ela. Um aroma de antiguidade, de segredo. Um convite para que desbravassem aquele nicho esquecido pelos homens.
Lorenz, liderando a marcha, parou diante da entrada. Retirou de seu uniforme uma pedra colorida, que, apesar de não-reconhecida pelo leigo Gospeller, encontrou um olhar de entendimento por parte da arqueóloga: sílex. Com a outra mão, o coronel brandiu um pedaço de metal, esfregando-o contra a rocha. Criou, assim, fogo – por um dos métodos mais antigos que se conhecia.
Erguendo a pederneira acesa, finalmente adentrou a gruta – acompanhado de perto pelos outros dois, que só tinham a pedra do alemão como fonte de luz.
A caverna se estendia montanha adentro quase em linha reta, virando em alguns pontos e tornando-se tão estreita em outros que eles mal puderam prosseguir. Gospeller nunca fora um homem de aventuras como aquela, e por isso o cenário contrastava por completo da idéia que possuía de cavernas isoladas: imaginava ambientes úmidos, com gotas pingando a todo momento de estalactites no teto. Mas a gruta em questão era árida como o deserto do lado de fora, a terra das paredes e o ar seco flagelando ainda mais seus pulmões. Os tropeções pelo caminho devido à penumbra também não faziam da excursão algo muito feliz.
O caminho, que tomara a forma de uma leve descida, logo terminou. A luz nas mãos de Lorenz mostrou uma área mais ampla, como um átrio subterrâneo. O banqueiro esperava ver hieróglifos ou outros símbolos antigos pintados nas paredes, porém estas continuavam nuas, ostentando somente o desgaste do tempo. O brilho focou por um momento o rosto de Lianna: o fascínio em sua expressão era evidente, parecendo ignorar todas as divergências ocorridas em relação a Lorenz até ali.
O coronel abaixou o sílex. Nos cantos do local, junto ao chão, havia várias urnas e jarros de cerâmica fechados. Através de buracos presentes em algumas delas – fruto da prévia visita dos beduínos ou do simples passar dos séculos – era possível vislumbrar alguns documentos enrolados, em pergaminho ou papiro.
- Todo este tempo... – murmurou o alemão, maravilhado. – Todo este conhecimento guardado aqui, por tanto tempo, esperando apenas que alguém viesse explorá-lo...
Apesar de a luz não focar por completo sua face, seus companheiros viram em Lorenz um semblante indeciso. Não sabia por qual recipiente começar. Havia tantos manuscritos, e tantas outras cavernas a serem averiguadas... Mas, ao girar a pederneira ao redor, explorando melhor a caverna, logo viu algo que o fez estremecer. Numa das paredes, exatamente acima de um conjunto de vasos menores, havia uma figura cravada na rocha, na forma de dois sulcos que se encontravam. Uma cruz.
O coronel, num gesto totalmente imprevisto, caiu de joelhos. A Gospeller pareceu muito estranho deparar-se com um nazista religioso. Já a doutora aparentava estar envolvida demais pelo achado arqueológico para se preocupar com as sandices daquele homem...
Ainda prostrado, Lorenz engatinhou e, com cuidado, removeu a tampa de um dos jarros que se encontravam sob o símbolo na parede. Após séculos, um grupo de pergaminhos voltou a encontrar o ar da caverna.
- Tome cuidado, heer colonel – advertiu Lianna, estendendo um braço para o velho. – Pode danificar os manuscritos se não manuseá-los com cautela. São muito antigos.
- Um sinal... – suspirou o militar, erguendo os olhos para a cruz sob a luz do sílex. – Só pode ser um sinal.
Com a mão livre, ele apanhou lentamente um dos pergaminhos enrolados. Trouxe-o até o chão, abrindo-o com extremo cuidado. A doutora Soryu já se abaixara ao seu lado, temendo que a ansiedade de Lorenz destruísse o documento. Além do mais, ela também queria vê-lo de perto. Somente Gospeller permaneceu afastado, engolido pelas sombras.
Os dois alemães fitaram o manuscrito. Existia nele uma espécie de gravura: nove esferas conectadas com retas entre si, formando a figura de um hexágono irregular, com uma décima esfera na parte inferior, ligada às demais por somente uma reta. Um sorriso surgiu na face do coronel, enquanto dizia:
- O esquema da Kabbalah. Os dez níveis, ou sephirah, que o poder de Deus percorre até chegar a seus filhos, e que sustentam o Universo! – e explicou isso apontando do hexágono, esfera por esfera, até o último círculo isolado na parte de baixo. – A Árvore da Vida.
- Filosofia hebraica... – murmurou Lianna, mais interessada pela materialidade do documento do que por seu significado.
- A senhora se engana. Isto não é simples teologia. Os antigos hebreus sabiam do que falavam. A Kabbalah é a ponte entre os homens e Deus. Da mesma maneira que o poder divino irradia pelos dez sephirah, os filósofos cabalísticos acreditavam ser possível fazer o caminho contrário. Os mortais podem se igualar a Deus, obter para si o conhecimento máximo da Criação! Por portarem a chave para essa verdade, seus defensores foram perseguidos e executados ao longo dos séculos. Mas ocultaram seus ensinamentos aqui, longe dos olhos de seus algozes!
- Vamos fingir que eu acredite em você, coronel... – murmurou Gospeller com extrema descrença. – Então é de se presumir que sua organização já suspeitava da localização destes manuscritos aqui na Palestina, correto? Antes mesmo de os árabes tropeçarem nesta gruta?
- Não tínhamos idéia da localização. Com o passar do tempo, a única coisa que sabíamos era da existência deste baluarte de conhecimento cabalístico secreto. Poucas pessoas no mundo tinham ciência de seu esconderijo. Por isso nós manipulamos Hitler. Aquele filho da mãe era fascinado por ocultismo, senhor Gospeller. O instigamos a procurar pelos quatro cantos da Europa atrás dos últimos filósofos judeus detentores deste segredo. Após obtermos a informação sobre estas cavernas, todos os demais que sabiam foram sistematicamente eliminados. Hitler, em seu bunker, e seus generais, em Nuremberg, foram alguns dos últimos.
Fez uma breve pausa e complementou:
- Acredite se eu falar que o extermínio de judeus não teve como real objetivo uma "limpeza racial", senhor Gospeller. Conhecimento é poder. Sempre foi e jamais deixará de ser.
O banqueiro estremeceu. A si, tudo aquilo parecia não passar de histórias de um louco. Mas Lorenz falava com tamanha convicção, tamanho ímpeto, que uma soturna fagulha de crença alastrava-se agora pelos pensamentos de Gospeller. E, se a organização que aquele homem representava fora capaz até mesmo de manipular os nazistas, então se via mesmo em maus lençóis.
- Doutora Soryu, me ajude a levar estes jarros até o jipe – pediu o alemão, levantando-se. – Estamos indo embora.
- Mas coronel, seja por seus interesses esotéricos ou não, não averiguamos nem um décimo dos manuscritos nestas cavernas! – protestou a jovem. – Pode haver outros documentos com informações valiosíssimas esquecidos aqui!
- Estes são todos de que preciso. Eu viajei para cá com uma informação arrancada de um professor polonês em Auschwitz, minha cara. "A verdade está à beira do mar sem vida, enterrada sob o signo do Messias". Os beduínos só confirmaram a suspeita. E a figura está bem ali naquela parede, a quem quiser ver.
De repente, um som metálico ecoou pela caverna. O inconfundível engatilhar de uma arma. Lianna voltou-se assustada, porém Lorenz fez o mesmo com imensa calma. Depararam-se com Gospeller, suado e trêmulo, apontando uma pistola Colt para o coronel.
- Acabou a brincadeira, Lorenz. Isso tudo sendo verdade ou não... A sua vida de porco nazista vai terminar aqui!
- Ora, ora, sabe mesmo usar essa pistola? – riu o alemão. – Trouxe-a por razão de desde o início da viagem já planejar me matar?
- Calado! – berrou o banqueiro, tão alto que parecia querer que a gruta desabasse. – Insinuou que meu povo, minha cultura, foram eliminados por você e os nazistas somente em nome da localização desta caverna... é isso? Se for mesmo verdade, vai arder no inferno, Lorenz! Junto com Hitler e os outros!
- E não é que as origens judaicas do banqueiro retornam, aflorando à pele? Porém se engana, Gospeller. Não irei ao inferno. Pelo contrário. Este dia é o marco inicial de minha jornada rumo ao Paraíso.
Um tiro se seguiu, fazendo Lianna gritar e levar as mãos aos ouvidos.
Não fora, entretanto, disparado pelo banqueiro. Este permaneceu de pé, imóvel, por alguns instantes, num aterrador momento de expectativa... até que tombou para frente, estrebuchando com uma marca vermelha às suas costas.
Lorenz iluminou a entrada da caverna. Junto a ela, ainda apontando uma pistola japonesa Nambu, havia um homem de uniforme cáqui, cabelos curtos negros como a noite e semblante oriental. Tinha o corpo relativamente forte, a camisa ocultando somente de forma parcial os grandes músculos de seus braços.
- Pensei que não viria, Rokubungi – afirmou o coronel por fim, lançando um sorriso ao recém-chegado.
- Não imaginei que o banqueiro fosse uma ameaça – ele respondeu num inglês carregado de sotaque nipônico.
- E não era mesmo. Mas sua intervenção foi bem-vinda.
- Já cuidei dos árabes. Não representarão problemas.
- Ótimo. Suba de volta e garanta que a área permaneça livre para nossa partida.
- Hai.
O assassino retornou pelo corredor rochoso, seus passos sendo ouvidos ainda por um tempo antes de se afastarem. Lorenz voltou-se em seguida para Soryu, perplexa diante dos acontecimentos. Ela tinha o olhar fixo no cadáver de Gospeller, sem piscar, até que notou a aproximação do coronel e recuou assustada, uma lágrima escorrendo por seu rosto.
- V-você vai me matar também? – ela indagou chorosa.
- Na certa não me toma por um cavalheiro, senhora. Eu o farei somente caso se volte contra mim. Além do mais, ainda precisarei de sua ajuda.
- E por que eu o ajudaria? – exclamou, cada vez mais nervosa. – Um maníaco seguidor de uma seita religiosa fanática!
- Acho essa definição por demais simplista. Eu busco o bem comum. Toda a humanidade ganhará com a verdade contida nestes manuscritos. E além do mais... uma garotinha em Tóquio pode acabar se machucando seriamente caso sua mãe se recuse a colaborar nos estudos...
- Não, Minna!
A filha que tivera com seu falecido esposo, então com quatro anos de idade. Deixara-a sob os cuidados de parentes dele, na capital japonesa, antes de partir naquela expedição. Agora, aquele maldito coronel a estava ameaçando.
- Você não pode...
- Eu vou, minha cara, se não colaborar. Acredite, não pode ser tão ruim assim. Sou um superior mais complacente do que Adolf Hitler.
Lorenz apanhou então alguns dos recipientes contendo os pergaminhos, dirigindo-se para fora.
- Vamos.
Ainda trêmula, Lianna viu-se sem opção a não ser acompanhá-lo.
Do lado de fora o sol já se fora, a escuridão cobrindo a Palestina enquanto cintilavam as primeiras estrelas. Tomando cuidado redobrado no trajeto de volta pelas pedras – já que agora traziam consigo os manuscritos e havia pouca luz – os dois alemães chegaram de novo ao jipe após algum tempo. Depositando os jarros no veículo, Soryu forçou-se a não fitar os corpos baleados dos guias, caídos ali perto. O japonês autor das mortes aguardava de pé junto ao volante. Ela encarou-o por um instante, imaginando quais seriam as motivações daquele homem aparentemente dotado de tanta frieza, e acomodou-se num dos assentos. Lorenz também embarcou, verificando uma última vez se todos os pergaminhos estavam ali.
- Podemos ir – assentiu.
O oriental assumiu a direção, conduzindo-os de volta pela mesma estrada que haviam tomado na ida. Certamente os seguira da primeira vez, por esse motivo conhecendo o caminho. Lianna mantinha a cabeça erguida para o firmamento. Em meio a tantos astros celestes... já não sabia mais qual poderia representar seu incerto destino.