VI
all the history of wars we invented in our heads
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Meu objetivo inicial era simplesmente ir para a casa de James sem avisar a ninguém, mas se eu fizesse isso provavelmente iria acontecer uma pequena confusão em casa, corujas seriam mandadas para Hogwarts, e várias pessoas seriam acusadas pelo meu sumiço antes de realmente saberem que eu tinha apenas decidido não voltar pra casa. Seria mais sensato, então, avisar pelo menos ao Regulus.
Essa visão geral dos acontecimentos não foi minha, claro. Eu teria seguido o objetivo inicial, mas James contou ao Remus, que disse isso ao Peter, que contou de volta pro James, que então me deu todo o panorama do caos na casa dos Black depois que eu sumisse.
Então, antes de o Expresso de Hogwarts parar na plataforma 9¾, eu localizei meu irmão e o puxei para uma cabine de onde os ocupantes tinham acabado de sair. Ele me olhou como se eu estivesse prestes a fazer o discurso mais entediante do mundo e suspirou.
- O que foi? O trem já vai parar.
- Eu não vou com você.
- Como assim, Sirius?
- Eu não vou voltar pra casa com você. Vou pra casa do James.
- Fazer o que de tão importante pra nem passar em casa?
- Regulus, você não é tão burro! Eu não vou passar em casa e nem voltar. Nunca. Vou morar com o James até achar outro lugar.
Meu irmão agora me olhava como se eu estivesse com algum súbito problema mental. Ele abriu a boca algumas vezes, e então riu, como se eu estivesse brincando.
- Você não vai fazer isso. Não pode simplesmente sair de casa assim.
- Claro que posso. Eles vão fazer alguns escândalos e tudo o mais, mas em novembro eu vou fazer dezessete anos e, aí sim, não há mais nada que se possa fazer.
Regulus ainda riu mais uma vez, descrente, e então o apito do trem soou para todos descerem. Ele saiu como se me desafiasse a ir atrás dele, mas eu não fui e ele não olhou para trás. Talvez tenha hesitado uma vez, talvez tenha sido só a minha imaginação. O fato é que voltei à cabine onde os rapazes estavam me esperando para descer do trem e, ao me ver, James apenas fez que sim com a cabeça e pegou o próprio malão. Estávamos prontos.
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Eu não queria admitir, mas o fato é que eu me sentia um pouco deslocado na casa dos Potter, assim como me sentia de vez em quando na Gryffindor. O sentimento era sutil o bastante para eu poder fingir que ele não estava lá na maior parte do tempo, mas isso não funcionava sempre. E eu acabava me sentindo um pouco culpado por isso, mas não podia evitar.
Eu já tinha tentado me convencer de que não é a Casa em que você é colocado que define quem você é ou o que você faz, mas eu não podia negar que existiam lá as suas diferenças. Por mais que eu tenha passado aqueles últimos seis anos tentando me adaptar e, de certa forma, imitá-los, o jeito como os Gryffindor viviam ainda era estranho pra mim.
Ou talvez, e essa hipótese não me agradava muito, isso fosse apenas mais uma coisa que eu inventava e acreditava para me sentir mais próximo do que deveria ser da minha casa, em todos os sentidos. A casa dos Black.
Tentei entender, muitas e muitas vezes, o que estava acontecendo, mas nunca cheguei muito perto de descobrir. Talvez meu conflito maior fosse ter passado a vida toda acreditando, como quase todo mundo acredita, que existe algo que garante que os pais amem seus filhos e vice-versa, e de repente perceber que não, isso não existia. Pelo menos não na minha casa. Posso dizer com toda a certeza que, naquela época, eu não odiava nenhum Black. Eu sentia apenas uma tristeza enorme, amarga e tardia por as coisas terem chegado àquele ponto.
Nos primeiros dias na casa dos Potter eu não dormi no quarto de hóspedes. Preferi me esgueirar pro quarto de James e me ajeitar ao lado da cama dele; algumas vezes ele teve a elegância de fingir que não percebia, em outras apenas sorria e não falava nada, e eu ficava grato por isso.
E então, já no outro quarto, me permiti pensar naquela situação como um todo e chorar apenas uma vez, pelo absurdo de tudo. Porque foi essa a conclusão a que eu cheguei: era tudo um completo absurdo.
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Pode ter sido impressão minha, mas os pais de James não ficaram especialmente surpresos ao me ver chegando junto com ele. Já fazia algum tempo desde que eles pararam de ir buscar o filho na estação, e agora eu percebia como para algumas pessoas os anos chegam todos de uma vez só. Mas eu me lembro claramente que eles se entreolharam quando me viram e deve ter sido nesse momento de comunicação que eles decidiram não falar nada por enquanto.
Eu já conhecia a casa de James, é claro, mas é um pouco diferente quando você entra com a intenção de ficar, ainda que apenas por um tempo. Indeterminado ainda, mas isso não vem ao caso.
Como eu imaginava, as cartas que chegaram para mim só vinham do meu pai. Minha mãe talvez achasse que, se ignorasse e fingisse que nada estava acontecendo, meu sumiço passaria despercebido. Regulus também não me escrevia mais, mas meu pai o citava nas cartas; ele dizia, entre tantas coisas, que eu precisava voltar porque aquela era a minha casa e dava um jeito de comentar sutilmente como não era conveniente eu ter me metido logo na casa dos Potter.
De qualquer modo, aquele ia ser o nosso penúltimo ano em Hogwarts, e estar assim à beira de algo tão importante às vezes assusta; nem sempre a gente gosta de lembrar que alguma coisa está chegando ao fim.
No fim do verão me despedi dos Potter como gostaria de ter me despedido dos meus pais muitas vezes, e não sem um aperto de preocupação por notar que eles pareciam ainda menores e mais velhos.
Só consegui ver Regulus algumas vezes na mesa da Slytherin, e ele não olhou na nossa direção em nenhum momento. Que belo Black estava me saindo.
Não pude deixar de perceber alguns olhares diferentes pra mim. Entre os Slytherin eu aparentemente tinha virado motivo de zombaria pra uns e de (mais) desprezo pra outros, entre os Gryfindor alguns sorrisos que, se não eram encorajadores, eram ao menos simpáticos.
Na primeira noite no castelo depois das férias, enquanto Remus e Peter desfaziam as malas e James milagrosamente se jogava na cama pra dormir sem falar nada, eu cheguei à conclusão de que eu me sentia mais em casa em Hogwarts - e não só na Gryffindor - do que em qualquer outro lugar. E isso não acontecia apenas por causa do castelo, da magia, da distância da minha casa ou algo assim, mas sim porque era em Hogwarts que eu passava mais tempo com eles.
Lar é onde o seu coração está, as pessoas dizem.
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Remus não falava direito comigo desde junho, claro. Achei que passar uns bons dois meses sem precisar me ver fossem ajudar, mas a primeira semana de setembro passou como se eu ainda não existisse. Pra ser justo, até que nos falávamos, mas com uma frequência e uma superficialidade que fariam qualquer um pensar que éramos primos distantes sendo obrigados a interagir um com o outro.
Numa noite em especial, no entanto, quando James e Peter jogavam xadrez na sala comunal, Remus subiu para o dormitório como nos velhos tempos em que eu queria ficar sozinho e ele não deixava. Ele se aproximou, discreto; ia começar a falar e eu adivinhei quais eram as palavras dois segundos antes.
- Se você veio voltar a falar comigo porque agora eu sou digno de pena, acho que não é uma boa ideia – interrompi e me arrependi segundos depois, principalmente quando os olhos dele faiscaram e um sorrisinho apareceu. Nunca era boa coisa.
- Muito me surpreende que você ainda se ache no direito de poder exigir alguma coisa de mim, Sirius. Eu não devia nem sequer ter parado de falar com você.
- Que bom que você admite...
- ...você que devia ter tido a decência de nem olhar mais pra mim.
Ouch.
- Então foi pra isso que você veio aqui, pra me acusar mais? Obrigado, mas isso eu posso fazer sozinho.
Dito isso, me virei com o sangue fervendo; e o pior era que ele estava certo, como sempre, e eu estava apenas usando mais uma vez a minha incrível habilidade de piorar as coisas.
Remus ficou calado, mas não saiu do quarto, o que interpretei como um bom sinal.
- Na verdade, eu vim aqui perguntar se você não ia descer. E então você ia entender que eu estava fingindo que nada aconteceu, e você fingiria também, e esse seria o nosso acordo de paz. Mas não deu muito certo.
- Não.
- Só não me faça ter que pedir pra você falar comigo, eu acho que isso seria bem injusto, por mais motivos que você tenha pra estar com raiva.
- Mas você vai me perdoar? – perguntei, voltando a me virar pra ele.
- Eu não vou esquecer.
- Não foi isso que eu perguntei.
- Mas é isso que eu posso responder agora – ele encerrou com um olhar e eu achei melhor não insistir.
- Que seja, então.
Ficamos calados por algum tempo, enquanto eu mexia na colcha da cama e ele nos dedos. Não era exatamente um silêncio estranho, mas pesado e cheio de coisas não ditas. Naquele momento eu me sentia como se tivesse uma boia de salvação logo à minha frente, mas não pudesse pegá-la porque podia estourar. Eu poderia parar, só por um momento, de pensar no que havia de errado na minha vida e focar no Remus, perguntar se estava tudo bem, o que tinha acontecido nesse tempo todo, e em último caso até comentar os hábitos da Lula Gigante. Mas não dava. É isso que existe de muito difícil nas amizades reatadas, você nunca sabe por onde recomeçar porque tem medo de puxar a ponta errada de novo. Eu só queria mostrar ao Remus que ainda valia a pena ser meu amigo, mas não conseguia.
- Como você está? – ele disse depois de muito tempo.
Dei de ombros. É fácil, você sabe, fingir que não se importa. Ou pelo menos era até então. Eu passei tanto tempo desenvolvendo essa arte de não me importar com tantas coisas que acabei acreditando nela. Queria dizer isso ao Remus também, mas talvez ele já soubesse.
- Talvez seja melhor assim – ele disse, como se estivéssemos realmente conversando, e então se levantou e foi para a janela. James e Peter chegaram um pouco depois. Por um momento eu entendi como aquilo tudo parecia certo; Remus esperando a lua, Peter procurando a meia, James reclamando da vassoura, e até mesmo os livros no chão e a porta do banheiro entreaberta. Talvez eu estivesse apenas muito desesperado por encontrar significados em qualquer lugar, mas é difícil não se sentir um pouco melhor quando as coisas parecem estar no lugar certo e fazendo sentido. Afinal, é só isso que importa.
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- Como você tá?
Eu consegui perguntar duas semanas depois de termos voltado a nos falar. Estávamos na biblioteca, estudando para um teste da McGonnagall. Bem, Remus estava estudando.
- Em relação a quê? – ele perguntou, sem tirar os olhos do livro.
- A tudo.
Remus suspirou como se estivesse cansado e começou a revisar o que tinha escrito, puxando perninhas em letras aleatórias e reforçando a tinta em outras. Ele sempre fazia isso quando queria ganhar tempo.
- Eu estou... cansado, Sirius. E vou usar uma expressão bem idiota agora, mas acho que dá pra dizer que, em relação a você, eu estou com o coração partido.
- Não é idiota...
Definitivamente, não. Eu sabia do que ele estava falando. Nos últimos meses eu tinha tentado desenvolver um pouco da tão louvada habilidade de se colocar no lugar do outro. Tentei imaginar como me sentiria se Remus fizesse comigo algo equivalente ao que eu fiz com ele. Tentei imaginar como me sentiria se eu fosse ele. Só fez com que eu me sentisse pior ainda, então acho que funcionou.
- Eu nunca te vi chorar – comentei, do nada. Remus riu e pousou a pena perto do tinteiro.
- Não... eu suponho que não.
- Você chora, Moony?
- Menos do que deveria.
Nós rimos e ficamos um pouco calados. Eu ainda estava pensando em corações partidos; há algum tempo, pra mim isso era apenas uma expressão boba sobre amor, e agora ganhava uma dimensão completamente nova. Será que dá pra consertar, eu pensava.
- Eu sei que você não perguntou, mas eu me sinto perdido – eu falei.
- Perdido?
- Sim. Desde que... bem, desde que aquilo aconteceu, eu nunca sei bem qual é o próximo passo, o que eu devo fazer em seguida... Esse tipo de coisa. Eu ficava pensando... onde está o Remus agora? O que ele está pensando de mim? Ou pior: será que ele ainda pensa? Eu não sabia mais o que fazer e, bem, ainda não sei direito.
- Mas nós já nos falamos agora.
- É diferente... Não que eu esteja reclamando, mas é. Eu não sei mais onde pisar.
Remus não falou, mas segurou a minha mão em cima da mesa. Era uma coisa estranha de se acontecer; nós não nos tocávamos muito, salvo empurrões habituais e quando ficávamos bêbados. Mas ele segurou, sim, e eu fiquei olhando pros nossos dedos entrelaçados uns bons dois minutos antes de perceber que ele estava falando.
- Você promete não fazer mais isso?
- Incitar a morte de colegas?
- Qualquer coisa desse nível. Qualquer coisa que possa fazer com que eu não confie mais em você. Uma vez você disse que queria me proteger; bem, então faça isso direito.
- Eu faço. Qualquer coisa, Remus, eu faço.
Ele sorriu e apertou mais a minha mão. Por um momento eu pensei que fôssemos tentar um abraço desajeitado, mas continuamos cada qual no seu lugar.
- Então é isso - ele disse.
Eu ainda não me sentia completamente perdoado, mas acho que isso se devia mais a minha própria culpa do que ao perdão do Remus em si. De qualquer modo, algumas cortinas se abriram na minha cabeça, e eu já conseguia respirar um pouco mais livremente. Remus não tinha me rejeitado por completo, afinal, e no momento isso era tudo o que eu precisava.
- Sirius, se você não se importa, eu vou precisar dessa mão pra escrever.
- Oh.
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James recebeu a primeira carta com notícias ruins dos pais no começo de novembro. A mãe dele estava doente e nós sabíamos o que aquilo significava; os Potter já não eram mais tão jovens. Mas a tristeza só conseguia ter dois efeitos em James, e ambos extremos: ou ele se recolhia completamente ou se expandia ainda mais. Nesse primeiro momento aconteceu o segundo efeito, e James não tinha mais limites.
- Não. Faça. Isso.
Era Remus falando, no momento em que percebeu que James iria atrás de Lily Evans mais uma vez. Ele tinha se tornado uma pilha de nervos ambulante e até eu tinha percebido que levar um fora nesse momento não traria o melhor dos efeitos. Ele tentou argumentar – teria feito isso se fosse eu quem tivesse dito –, mas desistiu. O jeito foi descontar no meu aniversário, que por muito pouco não caiu na lua cheia. A proximidade já era o suficiente para deixar Remus em um estado muito particular de irritação e cansaço antecipado – ele ficava muito quieto, pra evitar descontar nos outros.
- Sirius, olha aquilo – ouvi Peter falar.
Engasguei com a minha cerveja amanteigada. James estava realizando alguma variação de dança medieval encima de uma mesa no meio da sala comunal, que tinha praticamente se transformado numa sala de festas – nossos aniversários vinham se tornando cada vez mais eventos públicos -, e eu estava reparando em como Lily Evans enfiava a cara em uma almofada para evitar rir. Eu estava pensando que deveria dizer pra James que esse era o jeito certo de ser ridículo na frente dela quando Remus chegou ao meu lado.
- Hoje é o meu aniversário, Moony. Você não pode ficar enfiado dentro do dormitório.
- Desculpe – ele sorriu. Fazia algum tempo que não nos chamávamos pelos nossos apelidos com a mesma frequência de antes, e a volta do costume, mesmo que lenta, era um bom sinal. – Muito barulho...
- ...por nada – eu completei.
- Você tem dezessete anos agora. Pode fazer o que quiser.
- É, eu suponho que sim. Se eu alugar um apartamento, você vem morar comigo? – eu perguntei com toda a seriedade que a impulsividade pode dar a uma pergunta. Remus riu com gosto. – Eu estou falando sério!
- Eu sei, é por isso que eu tô rindo. Você não vai morar com o James?
- James vai casar com Lily Evans e eles vão ser felizes para sempre.
- Sirius, você está bêbado.
- Não, isso é cerveja amanteigada.
- Isso é o que você pensa.
Eu queria que ele tivesse respondido, mas a coisa ficou no ar depois disso. Eu fingi que não lembrava, embora não estivesse tão bêbado assim. A contagem dos danos depois daquela festa foi considerável – muitas caixas de comida e bebida, algumas punições, mesas quebradas e consertadas diversas vezes e algumas dignidades perdidas. Mas, apesar disso, o sentimento geral depois de tudo era pesado. Havia uma estranha guerra lá fora e nós estávamos dançando com gravatas na cabeça. Os Potter estavam doentes há centenas de quilômetros de distância, e James dormia – definitivamente mais bêbado do que eu – encima da carta que tentou escrever mais tarde naquela madrugada. McGonagall veio nos repreender pelo barulho com um brilho estranho nos olhos, como se na verdade quisesse nos dar mais uma chance de poder fazer essas coisas. Peter não tocou na bebida, e olhava pra algum ponto do seu cobertor, completamente acordado enquanto a manhã chegava no castelo.
Mas Remus superou todos.
- Sirius, você já quis morrer?
- Você vai me explicar por que exatamente esse é um bom assunto para o meu aniversário?
- Tecnicamente já é o dia seguinte.
Refleti um pouco, mas eu já tinha a resposta.
- Não. Você?
- Não – ele respondeu, e ficou olhando para o dossel da cama. – Eu só estava pensando... se eu não deveria.
- Querer?
- Sim.
- É nisso que você fica pensando quando a gente te deixa sozinho? – reclamei, com a cara enfiada no travesseiro. Achei o cheiro diferente do que esperava, até reparar que estava na cama dele e não na minha. Não mudei de posição.
- Não, foi só uma coisa que eu pensei hoje. O que eu quero dizer é... eu não deveria querer? Não, não diga que é pena de mim mesmo, é só uma questão de lógica.
- Não vejo lógica nenhuma. Eu nunca quis, de fato, morrer. Não consigo imaginar, na verdade.
- Eu consigo. Só não quero. E quando a gente não quer, é por que de alguma forma as coisas valem a pena, não é?
- Se esse é o seu jeito de dizer que tem esperança, então eu concordo. Todos nós vamos morrer, sabe?
- Sei – ele concordou. Já estávamos quase dormindo. – Quando?
Logo, era o que o lado mais negativo da minha imaginação dizia. Mas nem ele podia prever a realidade: pra nós dois ainda demoraria muito mais tempo do que deveria.
- Não sei. Mas acho que paramos de fazer sentido em algum momento dessa conversa.
- É.
- Mas sabe... eu não quero sair de Hogwarts - ele falou depois de um tempo. Eu simplesmente queria que os anos se estendessem pra sempre aqui dentro.
- Eu também - respondi. - E também acho que você sempre espera que eu esteja meio inconsciente pra falar coisas importantes comigo.
- Não é tão importante assim, é só um pensamento. Mas posso te pedir uma coisa?
- Desde que eu possa me lembrar dela amanhã, sim.
- Não vamos mais falar sobre sair daqui no ano que vem.
- Mas no ano que vem nós vamos pensar nisso o tempo todo.
- Eu sei, é justamente por isso.
- Certo - respondi, sem pensar muito. Mas ele tinha razão, mais do que todos os outros. Para Remus, não existia vida fora de Hogwarts depois de conhecer o que havia dentro dela. De certa forma, pra mim também, mas entendia que pra ele as cosias tomavam uma proporção mais irrecuperável.
- Sabe do que eu tenho medo? - ele continuou, me fisgando de um sono profundo.
- Do quê? - perguntei automaticamente, e ele se virou pra me encarar de lado.
- De um dia, daqui a muito tempo, e se tudo ficar bem, nós quatro sermos apenas caras normais que um dia estudaram juntos e que se lembram dos rostos um do outro, e só. De um dia esquecer do por que de tudo aqui fazer tanto sentido.
- Faz sentido porque estamos todos aqui.
- E quando não estivermos mais? Quando tivermos todos as nossas próprias vidas.
- Nós não vamos ter, Remus. Não tem mais jeito, lembra? - eu ri, mas, de alguma forma, muitos anos depois aquilo seria estranhamente trágico. - Não acho que exista alguma maneira de nós quatro termos vidas independentes um do outro.
Ele riu também. Estava quase amanhecendo lá fora e tínhamos que parar de filosofar e apenas dormir. Mas Remus ainda estava de frente pra mim e, antes de dormir por doze horas initerruptas, ainda tive um momento para pensar; agora que ele tinha falado, eu também tinha ficado com medo. Medo de esquecer como eles eram, os gestos, as palavras, o sentido que nós inventávamos para cada coisa que fazíamos. Medo de que, de alguma forma, a "entidade" Marotos deixasse de existir com o passar da juventude.
Decidi que não ia deixar isso acontecer, e só então dormi.
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- Eu juro que ela estava rindo.
- Não é possível – me respondia um incrédulo James no almoço do dia seguinte. Tínhamos perdido o café da manhã.
Como que atraído pela simples menção do nome de Lily Evans, Snape passou perto da nossa mesa para sair do salão, não sem antes se virar por um momento para encarar James. As trocas de olhares dos dois agora eram mais rápidas e mais silenciosas, mas se tornaram mais ácidas. James não estava com o humor necessário para ser apenas idiota, e quando isso acontecia ele podia se tornar particularmente perigoso; mas dessa vez algo o continha. Lembrei do eu havia dito a ele no nosso já distante quarto ano, sobre ficar longe do Snape para se aproximar de Lily, mas nunca tinha levado aquilo a sério. Será que agora já era um preço justo?
- E você e Remus? – ele perguntou, voltando ao seu prato sem fazer nenhum comentário maldoso sobre o Snivellus. Não era respeito; era uma guerra fria.
- Tudo bem, eu acho. Ele anda esquisito porque nós vamos nos formar.
- E quem não está esses dias? – e voltou a comer, melancólico. Ver James daquele jeito só não me deixava tão mal quanto quando Remus me ignorava porque eu já tinha imaginado cenários piores – como, por exemplo, ele também não falar comigo. Aí seria demais. – Sabe o que nós devíamos fazer? – ele disse, baixando um pouco a voz. – Sair do castelo.
Trocamos um dos bons e velhos olhares. Sim, aquilo seria bom, pelo menos na medida em que andar pelos arredores de um vilarejo com um lobisomem completamente formado pudesse ser considerado uma coisa boa. Remus achava que talvez, só talvez, nós nos endireitássemos com o tempo, mas mal sabia ele que nunca envelheceríamos o suficiente para parar de sentir prazer em desafiar o perigo.
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"Não era assim que eu imaginava a conquista da sua independência, mas não acredito que ainda haja alguma coisa que se possa fazer. Olhe pelo Regulus, se for possível."
Eu olhava para uma vitrine de Hogsmeade nas vésperas do Natal enquanto essa parte da carta do meu pai ecoava na minha cabeça. Estava atrás de presentes, mas a primeira coisa que vi foram os cartazes de recrutamento do Ministério pregados em todo lugar. O que está acontecendo lá fora, eu me perguntava.
Nas palavras do meu pai, quase sempre sutis demais pra eu poder perceber qual lado ele estava tomando, eu procurava indícios do que estaria se passando pela cabeça da minha mãe àquela altura. Eu já sabia que meu nome tinha sido queimado da tapeçaria e que ela provavelmente faria a cabeça de Regulus – junto de Bellatrix – e já havia decidido que não me importava mais, mas estava ficando cada vez mais difícil acreditar nisso. Eu passaria o resto da vida tentando pensar que era apenas raiva, mas existia uma mágoa enorme por nada ter saído como era pra ser. Eu nunca diria isso para ninguém, mas houve vezes em que eu senti um desejo enorme de ser exatamente aquilo que esperavam de mim, só pra que tudo ficasse bem. Mas não seria assim, eu não teria conseguido nem mesmo se tentasse. E, de qualquer forma, eu já tinha outra família.
Família essa que estava me esperando há três passos do Três Vassouras. Ainda não iríamos fazer a nossa pequena excursão pelos terrenos da escola por causa do movimento do Natal, então estávamos aproveitando Hogsmeade do modo normal.
- Olhem – James chamou quando nos sentamos à uma mesa, colocando uma coisa que parecia uma pedra de rio bem no meio dela – Comprei pra Lily.
- Eu ia perguntar se dessa vez você acha que ela vai aceitar algo de você, mas estou mais curioso em saber o que diabos é isso – Remus falou.
- Eu sinto que dessa vez ela aceita. Isso é uma... bem, eu não sei exatamente o que é, mas é bonito, e tem flores dentro.
De fato, era bonito. Tinha o formato de uma pedra arredondada e quase o tamanho de uma mão, com várias florezinhas do lado de dentro.
- Isso é âmbar – eu concluí.
- Deve ser artificial. Mas essa não é a melhor parte – ele explicou, tocando levemente o topo da coisa com a varinha. Algumas luzinhas se acenderam do lado de dentro e se moviam, como pequenos vagalumes, apesar de o interior parecer ser rígido também.
- É bonito mesmo – eu falei, meio distraído, percebendo que não tinha comprado nada pro Remus ainda. Tinha alguma coisa na minha cabeça desde o meu aniversário e eu não conseguia lembrar o que era; tinha apenas uma vaga lembrança de que era potencialmente genial. Mas, considerando o estado em que eu estava naquela noite, havia também a possibilidade de não ser nada. Ainda assim, eu gostaria de me lembrar, e sabia apenas que algum modo era relacionado a ele.
- O que você quer que eu te dê? – eu perguntei, seguindo o exemplo dele em algum dos meus aniversários anteriores.
- Não sei – ele respondeu depois de um tempo. James e Peter ainda cutucavam o presente de Lily. – Mas não me dê uma coisa daquelas, senão eu nunca me caso com você.
Ele riu, então eu o acompanhei, mas não tinha entendido direito. Era difícil reconhecer algumas das piadas de Remus sem um ouvido treinado, mas acho que eu teria considerado aquela normalmente se ela não tivesse se alguma forma ligado a parte do meu cérebro que tinha esquecido a minha conclusão genial do mês anterior.
Tinha a ver com Remus, sim. Mais do que eu pensava.
- Não, vai ser mais discreto – eu comentei.
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Desde o abençoado dia em que Remus resolveu voltar a falar comigo, estávamos pisando em ovos. Bem, pelo menos eu estava e não tinha coragem o suficiente para falar diretamente sobre o que tinha acontecido. Nunca teria, na verdade. Só me restavam duas escolhas; continuar assim, temendo fazer tudo errado de novo, ou recomeçar com mais cuidado. Escolhi a segunda opção e era essa a conclusão genial que eu não conseguia me lembrar.
Nas férias de fim de ano ele me ajudou a escolher um apartamento pequeno onde eu pudesse me instalar. James estava com os pais, Peter com a mãe. Meu pai e meu tio Alphard tinham me ajudado secretamente com mais dinheiro do que eu contava, mas mesmo assim resolvi não abusar – eu não fazia a menor ideia do que poderia ser viver sem garantia alguma, seja da escola, seja da minha casa.
- Pra que você quer uma janela desse tamanho se não abre as cortinas? – ele perguntou, abrindo-as e inundando a pequena sala de estar com o que restava do sol do inverno e uma rajada de vento frio.
- Pra não deixar o vento entrar, talvez? – eu falei, fechando de novo. O prédio ficava no limite entre o mundo trouxa e o bruxo, e não era difícil reconhecer esses últimos, porque andavam sempre desconfiados. Havia uma garagem, e eu tinha planos pra minha vaga. – O que foi?
- Nada – ele respondeu, fechando a fresta da cortina que tinha aberto pra olhar a rua. – É só que é um pouco estranho, não é? Estamos aqui escolhendo um lugar pra você morar. É como se estivéssemos, você sabe, vivendo. No mundo real, eu quero dizer.
- É. Eu não tenho muita certeza se quero viver no mundo real com dezessete anos, mas tudo bem. E eu poderia te oferecer chá agora, mas não tem nada na minha cozinha nova.
Saímos agasalhados dos pés à cabeça para um pub bruxo ali perto. Ali havia menos propaganda do Ministério, e fiquei muito agradecido com isso.
- Não gosto dessa sensação de que estão tentando nos recrutar o tempo todo – eu comentei, apontando um dos poucos panfletos.
- Eu também não. Mas acho que não temos muita escolha, temos?
Mesmo que tivéssemos escolhas, elas seriam anuladas por tudo que aconteceria depois. Mas naquele dia em particular, eu talvez ainda pudesse ter escolhido outra coisa. Só que estávamos em dezembro de setenta e seis, os bruxos formavam pequenos grupos desconfiados em pubs e todos evitavam se olhar nos olhos na rua. O lugar onde eu iria morar sozinho pelos próximos anos não era uma mansão escura e esquisita. James Potter passava a maior parte do tempo preocupado com coisas que iam além do seu controle. Remus tinha voltado a ser meu amigo por motivos que só ele podia entender e eu já havia percebido que, por estarmos recomeçando, ainda poderíamos fazer tudo diferente. Nada mais fazia tanto sentido quanto antes, e de repente Peter parecia ser o mais sortudo de todos nós.
Acho que foi a partir daquele momento, na verdade, que eu percebi que não, não era mais uma questão de escolha.
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N.A.: GENTE EU NÃO MORRI
Fazem exatamente dois anos e um dia desde a última vez que eu atualizei essa fic, e por isso eu peço milhões de desculpas. Eu sei como é horrível estar acompanhando uma fic e de repente ela parar de ser postada. Nesse meio tempo me aconteceu muita coisa, desde falta de tempo até problemas pessoais que me fizeram me afastar um pouco do fandom por um tempo e, consequentemente, parar de escrever fics. Mas eu precisava terminar Summer, e esse capítulo foi escrito durante esses dois anos (lenta, eu?). Um dos meus objetivos era só voltar quando conseguisse atingir de novo o tom dos outros capítulos, mas se eu não tiver conseguido totalmente, culpem o tempo que passou demais e a minha falta de prática, he. Eu redescobri o amor de escrever fics, de escrever o Sirius e tô muito feliz por isso, espero que vocês possam me perdoar por ser tão relapsa. Também tive tempo de sobra pra reler e revisar tudo várias vezes. Em breve vou editar os outros capítulos com as mudanças (não foi nada no texto, só pontuação e a formatação louca do site). E era isso. Sejam amor e continuem acompanhando Summer, porque eu vou continuar escrevendo :)