Capítulo I – Conflito de Ambições

Nobreza nunca fez parte daquilo que sou. Eu nasci numa família de guerreiros, cuja única recomendação era o notável talento em batalha. Em minhas veias corria o sangue vermelho da guerra e aqueles que tinham o sangue azul nada mais eram para mim do que o grande câncer da minha terra.

Sempre me vangloriei de não ter nada que me ligasse aos grandes usurpadores da glória egípcia, mas a ambição me era inata e eu me considerava tudo o que aquele país precisava para crescer. É claro que eu era jovem e tolo na época, precisando desesperadamente de alguém para abalar minhas crenças e me tornar um homem de verdade.

Foram quatro as mulheres de minha vida e todas contribuíram para que eu me tornasse o que sou, começando por minha mãe devotada e minha irmã Nefert, que sempre me deu a graça de sua sinceridade avassaladora. Quando eu estava no auge da minha impetuosidade meu mundo foi sacudido por uma jovem que representava todos os meus ideais de mulher e então eu me apaixonei perigosamente pela prometida de meu inimigo. Yuri Ishtar era uma deusa entre as mulheres comuns e tudo aquilo que uma rainha deveria ser, por isso eu a quis e por isso ela se tornou uma cicatriz expostas em minha vida.

Mas de todas as mulheres que conheci nenhuma me marcou tanto quanto ela. Chega a ser cômica a maneira como ela surgiu em minha vida, vestindo roupas egípcias e nenhum adorno em seus cabelos longos e escuros. A princesa hitita vinha ao Egito como um presente para o faraó Horemheb e mal havia chegado quando os boatos a respeito dela começaram.

Seu nome era Puduhepa, a jovem e bela irmã de Kail Mursili II, o mesmo homem que me roubou Yuri. O que se falava a respeito dela girava em torno de sua educação para o sacerdócio e posteriormente seu casamento com o governante de uma das províncias hititas. Um casamento desafortunado, era o que se comentava. A princesa perdeu dois bebês durante a gestação e diziam que era estéril. Alguns ousavam afirmar que aquela era uma punição por ela não ter seguido o sacerdócio e desenvolvido seus dons premonitórios. O fato é que ela se tornou uma viúva ainda jovem e para fortalecer uma aliança recém formada com o Egito, Puduhepa se tornaria parte do harém do faraó.

O que me intrigava na época era a suspeita de esterilidade. Se Mursili queria enviar um presente desses a um governante velho e sem filhos, o melhor seria que a jovem em questão fosse uma viúva com pelo menos uma criança para certificar que ela seria capaz de dar ao governante um herdeiro. Eu conhecia o caráter de Mursili II muito bem para saber que ele não era um tolo, muito menos que aquela era uma decisão impensada. Nenhuma moça do harém teve filhos do faraó e eu podia apostar que o imperador hitita queria mais para sua irmã do que a posição de concubina.

Independente das minhas suposições, Puduhepa chegou ao palácio de Tebas com uma escolta pequena, usando roupas muito simples e em seu rosto pairava uma expressão resignada e melancólica. A pesar da simplicidade ela era bela o bastante para atrair olhares, como uma flor que desabrocha na aridez do deserto.

Eu estava atordoado naquela noite. A multidão de nobres e puxa-sacos ainda sustentava uma ovação ensurdecedora após minha nomeação como vizir. Eu agora respondia apenas a autoridade do faraó e era tão importante quanto qualquer nobre do governo. Foi quando os músicos começaram a tocar canções alegres e as portas se abriram para dar passagem a ela.

Minha primeira reação foi o espanto pela forma como ela se apresentava. Seus olhos estavam maquiados, o corpo todo coberto pelo vestido que deixava apenas os braços de fora, o cabelo escuro todo preso em uma trança única, o que era um choque para as mulheres locais que preferiam manter os cabelos ocultos pelas perucas. A princesa não usava a maquiagem tradicional egípcia e suas jóias eram consideradas poucas e simples. Para a filha de um imperador de uma nação rica, ela estava totalmente fora dos padrões.

Observando-a mais atentamente eu fiquei intrigado com o fato de que ela parecia tão segura de si, mesmo com sua simplicidade, que ninguém poderia duvidar que ela era uma princesa. Ela sorria quando devia sorrir, ela reverenciou o faraó de maneira apropriada, ela foi apresentada aos presentes como mandava o protocolo e em momento algum a falta de jóias, ou adornos pareceu significativa. Ela sempre seria uma princesa, não importavam as condições.

Ela não olhou em minha direção em hora alguma, manteve-se silenciosa e observadora, sempre respondendo quando questionada e com grande elegância. A pesar dela ser uma mulher de beleza notável, o faraó Horemheb parecia pouco entusiasmado com a idéia de ter mais uma concubina a seu dispor. Talvez a idéia dela ser uma viúva o incomodasse, ou talvez ela não fosse exatamente o tipo de beleza que interessasse ao faraó, mas eu não conseguia entender que tipo de homem dispensaria uma jovem como aquela.

O banquete transcorreu sem mais complicações e todos os presentes tinham algo para falar a respeito da princesa, tanto para o bem quanto para o mal. Como de costume, ela escolheu um nome egípcio para sua nova vida. Tia-Sitre, era como ela decidiu ser chamada daquele momento em diante. Ela se intitulava a filha de Rá.

A noite passou mansa e quente, enquanto eu revirava na cama incômoda num ataque de insônia. Era o tipo de sensação que eu tinha uma vez ou outra. A sensação de que algo grande estava para acontecer. Eu queria voltar pra minha casa em Memphis, onde eu poderia ter a cabeça preenchida com todo falatório das minhas irmãs, mas levaria pelo menos uma semana para que eu pudesse fazer isso.

Quando o dia amanheceu fui informado de que o faraó solicitava minha presença. Odiava ter que obedecer às ordens de alguém tão vil quanto Horemheb, que só chegou onde estava graças ao casamento com uma das filhas da rainha Nefertiti, mas por bem ou por mal, eu estava subordinado a ele.

Segui diretamente para a sala do trono, onde Horemheb me esperava sentado no alto de sua tolice e vaidade. Ele me encarou com olhos avaliativos e pela primeira vez um relance de sensatez passou por seus olhos escuros. O faraó ordenou que eu me aproximasse.

- Espero sinceramente que tenha gostado do banquete de ontem. Sua nomeação como vizir causou grande repercussão entre os nobres e sacerdotes. – Horemheb disse com desinteresse. Controlei o riso diante da presença dele.

- Foi um banquete estupendo. Eu humildemente agradeço, mesmo achando que o reino teve um motivo mais interessante do que minha nomeação para comentar. – eu disse solenemente – Sua nova concubina, a princesa Tia-Sitre, é realmente uma visão. O imperador Mursili II sabe realmente dar um presente.

- A princesa Tia, com certeza ela é uma jovem atraente. – Horemheb se mexeu em seu trono como se estivesse sentado sobre escorpiões – Mas eu não vejo qualquer futuro para ela aqui. – aquela foi uma declaração perigosa que me deixou aturdido.

- Acho que não entendi direito, majestade. – eu tentei não parecer muito chocado. Horemheb desviou seu olhar para um dos murais que adornava a sala.

- Eu não sou mais um homem jovem, Ramsés. Já é hora de pensar em um sucessor apropriado, uma vez que os deuses me negaram um herdeiro próprio. – o faraó disse seguramente.

- Não estou entendendo, majestade. – eu o encarei por um longo momento. Ele já tinha idade avançada e habilidade para governo nunca foi seu ponto forte, mas Horemheb tinha alguma organização para manter os assuntos de Estado sob controle.

- Acho que você entendeu muito bem. Só os deuses podem dizer quanto tempo mais eu tenho e não pretendo perdê-lo com mais uma concubina. Desconfio que não posso ter filhos e diante disso eu preciso nomear um sucessor. – Horemheb me encarou por um longo momento – Você é um homem ambicioso e visionário, um tanto arredio e impulsivo, mas acho que suas habilidades administrativas e seu carisma são fundamentais se você quiser se sentar no trono de Hórus. Só há um problema. Você ainda não tem uma esposa e certamente nenhum filho, o que torna sua posição tão vulnerável quanto a minha.

- Ainda não vejo aonde quer chegar. – respondi frio.

- Achei que fosse óbvio. – Horemheb retrucou em tom de desafio – Se você tem alguma intenção de ser faraó um dia, o melhor a fazer é encontrar uma esposa, mas você se recusa a casar com qualquer nobre do reino e rejeitou as filhas de Nefertiti quando elas lhe foram oferecidas. O que um homem como você pode desejar em uma esposa?

- Eu tenho procurado por uma mulher corajosa, que não se deixe cegar por vaidades e ambições, uma jovem bela e amorosa.

- Sabia que a princesa Tia governou uma província hitita inteira após o falecimento do marido? Ela enviou tropas para o irmão durante a guerra contra o Egito e há quem diga que durante a noite ela se trancava num templo para pedir pela vitória. Ela é uma jovem muito bela, nobre e criada para ser a rainha ideal. Ela pode não ser a deusa da guerra, mas também não é uma mulher qualquer. – Horemheb me encarou como se soubesse de algo que eu desconhecia. Aquilo me irritava. – Eu vi os olhares que você lançava a ela e ouso dizer que ela, mesmo não sendo voluptuosa, o atrai.

- Não nego que ela seja atraente, majestade, mas eu jamais cobiçaria algo que lhe pertence. – Horemheb riu.

- Nós dois sabemos que isso não é verdade, Ramsés. – o faraó respondeu – Você cobiça meu trono e estava encantado pela minha concubina, então eu estou apenas facilitando as coisas pra você. Como minha concubina, eu posso dá-la a qualquer um que julgue merecedor. Então eu lanço a você um desafio.

- Qual seria? – eu o encarei desconfiado.

- Case-se com ela, tenha pelo menos um filho, e eu tornarei você meu sucessor. – Nem todas as palavras do universo seriam suficientes para descrever o meu estado após aquela conversa.

Aquilo era algum tipo de brincadeira de muito mau gosto, mas não importava. Eu não podia recusar um desafio proposto pelo faraó sem afetar minhas chances de chegar ao trono. Eu estava encurralado e muito em breve eu estaria preso a uma princesa hitita totalmente desconhecida. Aquilo ia dar a Neferet motivo pra zombar de mim por toda uma vida.

Horemheb me encarava com uma expressão convencida e levemente ansiosa que me fez ranger os dentes em resposta. Ao menos a princesa era bonita e dificilmente aquilo era o fim do mundo. Eu poderia ter outras esposas...Quando fosse um faraó.

Aquilo foi um golpe baixo, mas Horemheb jamais chegaria aonde chegou jogando limpo. E eu que subestimei o velho agora me via atado em sua armadilha. Engoli a seco meu constrangimento e endureci o olhar numa tentativa patética de me manter no controle da situação.

- Está bem. Eu aceito a oferta, mas vejamos o que Mursili II achará a respeito do destino de sua irmã. – eu o desafiei de volta. Horemheb riu um riso sem graça.

- Mursili II não terá do que reclamar. Estou dando a irmã dele a um pretendente mais jovem e um alto funcionário do governo. Além disso, vou informá-lo de meu plano de tornar você meu sucessor, isso não lhe parece bom o bastante? – Horemheb me encarou com olhos sagazes – Mursili II dormirá feliz sabendo que sua irmãzinha será a rainha do Egito, esposa de um faraó jovem, ao invés da reles concubina de um faraó velho.

- E quando pretende informar à princesa Tia-Sitre de sua decisão, senhor? – assumi minha derrota ao perguntar isso, mas antes que tivesse uma resposta as portas da sala do trono se abriram e o mestre de cerimônias anunciou em alta voz a presença de Tia-Sitre, a concubina real.

Eu confesso que sobressaltei e me virei para encará-la. Como na noite anterior ela usava poucas jóias e nenhuma peruca egípcias. Admito que gostava da maneira como o cabelo ondulava até sua cintura, caindo como uma cascata negra. Tia-Sitre era um espírito pairando sobre o piso de pedra, agindo como se nada ao seu redor fosse de fato importante ou no mínimo digno de perturbar seus movimentos fluidos e pensamentos impronunciáveis.

Os olhos dela não encararam os meus em momento algum, para ela eu não existia ou não era digno de atenção. Uma nobre pretensiosa como todas as outras, ávida por colocar suas mãos na coroa o quanto antes. Eu gostaria de ver sua expressão imperturbável rachar ao meio quando ela fosse informada de seu novo destino.

- Como vê, Ramsés. Eu não perco tempo com assuntos desta magnitude. – Horemheb respondeu sorrindo. – Dormiu bem, adorável princesa?

- Muito bem, majestade. – ela respondeu educadamente – O grande faraó solicitou minha presença, aqui estou. – o corpo dela se curvou numa reverência graciosa e por um segundo pensei que ela fosse tão frágil quanto uma flor que se curva diante do vento. Como Mursili podia mandar alguém tão jovem e delicada para um país estranho?

- De fato eu solicitei sua presença para comunicar-lhe algo importante. – Horemheb disse firmemente – Primeiro permita-me apresentá-la ao meu mais novo vizir. Princesa, este é Ramsés. Acredito que não tenha tido a oportunidade de ser apresentada a ele no banquete da noite passada. – ela então se virou para mim e com sua elegância habitual fez uma breve reverencia.

- É um prazer conhecer a um servo leal de sua majestade. – ela respondeu friamente enquanto eu retribuía a reverencia.

- Adorável princesa, o que acha de meu amigo Ramsés? Ele lhe agrada? – Horemheb e eu avaliamos a reação dela. Tia não tornou a me olhar, limitou-se a lançar um sorriso leve.

- Se ele agrada a vossa majestade, então agrada a mim também. – foi a resposta educada dela. Juro que vislumbrei no fundo daqueles olhos escuros um brilho contido. Ela não estava falando a verdade, aquela pequena cobra.

- Creio que não há uma única jovem em todo o Egito que não tenha desejado secretamente, ou não, ser a esposa de Ramsés. Sempre foi um homem astuto, um general da mais alta qualidade, jovem, ambicioso e leal. – Horemheb continuou seu discurso.

- Um homem de muitas qualidades, eu vejo. – ela respondeu delicada.

- De fato, também é um dos meus servos mais bem quistos e por isso decidi presenteá-lo. – Horemheb sorriu para ela como um gato.

- O que um homem com tantas qualidades pode desejar mais para sua vida? – ela questionou num gesto simpático.

- A única coisa que ainda não tem, eu suponho. Ramsés não tem nenhuma esposa ou concubina, também não tem filhos, mas ainda é jovem e está em tempo de mudar isso. Decidi dar a ele uma das jovens de meu harém para que se case e acabe logo com esta imagem de homem inconstante. – o faraó disse firmemente.

- Uma decisão nobre, majestade. – a voz dela vacilou e eu tive que conter o riso. A serpente estava cercada.

- Imagino que sim, mas Ramsés tem um gosto exigente para mulheres. Não basta ser bela, sua futura esposa deve entender de administração, ter boa índole, educação primorosa e ser forte o bastante para ser vista por ele como uma igual. Além disso, ela deve saber por de lado sua própria vaidade em prol de um bem maior.

- Conheci apenas uma mulher com tantas qualidades, grande faraó. Infelizmente, ela é a esposa de meu irmão mais velho e a tawannana do império Hitita. – senti uma pontada no peito ao ouvi-la falar de Yuri. Talvez ela soubesse dos meus esforços para tornar Yuri minha esposa, talvez ela estivesse fazendo apenas um comentário inocente, mas o fato é que Ishtar continuava sendo um assunto doloroso para mim.

- Sem dúvida a princesa é muito gentil e modesta. – o faraó respondeu.

- Não tenho intenção de me igualar à grande Ishtar, meu senhor. – ela soou modesta e sincera.

- Mas a senhora governou sozinha uma província importante após a morte de seu marido e pelo que sei é conhecida por sua caridade e dedicação. Foi instruída para ser a esposa de um grande governante e soube que é uma das figuras mais simpáticas ao povo hitita, sem mencionar sua inegável beleza. – Horemheb disse lisonjeiro e a princesa perdeu a fala – Sua modéstia não tem sentido e por isso eu acredito que seria a companheira ideal para Ramsés.

- Acaso não agrado a vossa majestade? – ela perguntou com a voz tremula. Achei que fosse uma simulação barata, ou que ela fosse se entregar ao ódio por ver suas ambições frustradas, mas o que eu vi nos olhos escuros dela foi tristeza genuína. Pelas estrelas e todo firmamento, juro que aquela mulher era intrigante.

- A princesa me agrada imensamente, mas acho injusto ver sua beleza e qualidades serem desperdiçadas enquanto permanece neste palácio como uma mera concubina, quando pode ser a esposa de um funcionário da mais alta posição. Um homem jovem que fará seu coração gentil mais feliz do que um velho como eu.

- Não creio que meu irmão pensará desta maneira. Isso pode causar um grande mal entendido com o imperador Mursili II. – eu tinha que admitir que ela era esperta e eloqüente.

- Mursili é um homem razoável, tenho certeza de que ele entenderá e verá tudo com bons olhos, adorável princesa. – Horemheb sorriu novamente – É do meu agrado que se torne a esposa de Ramsés, mas antes disso acredito que ele gostaria de apresentá-la a família e fazer os preparativos necessários, não é mesmo?

- Absolutamente, majestade. – respondi altivo – Minha mãe e minhas irmãs ficariam deleitadas com tal oportunidade e isso daria a chance para que a princesa Tia se acostume com Memphis. – finalmente eu e a princesa nos encaramos diretamente. Ela não pronunciou uma única palavra, manteve a postura impecável e abaixou a cabeça em sinal de respeito e aceitação. Juro que ela pareceu disfarçar uma lágrima.

- Que dia feliz! Espero poder anunciar o noivado em breve. Ambos estão dispensados por hora. – o faraó proclamou como se aquilo fosse de fato a melhor noticia de todas.

Eu e a princesa Tia deixamos a sala do trono em silêncio. Fiquei desconcertado por não saber o que dizer a ela diante da situação. Como eu poderia? Ela não passava de uma estranha suspeita, um pequeno mistério de olhos escuros, audácia e cabelos ondulados. Caminhamos pelos corredores adornados do palácio, ouvindo nada além dos nossos passos na pedra.

O que estava se passando na cabeça dela? Por que seus olhos pareciam tão distantes e melancólicos? Ela seria uma rainha assim que Horemheb habitasse o Vale dos Reis, então eu representava uma frustração tão grande que ela não se dignava nem mesmo a me encarar? Ou talvez eu não fosse exatamente seu pretendente ideal.

- Acho que gostaria de saber. Partirei para Memphis no fim desta semana e você deverá me acompanhar. – eu disse num esforço inútil de desfazer o constrangimento entre nós.

- Meu senhor pode ter a certeza de que eu e minha dama de companhia estaremos prontas para a viagem na data prevista. – o tom de voz dela era solene – Não se preocupe com isso.

- Bom. – eu respirei fundo – Espero que saiba que me sinto honrado pela gentileza do faraó em dá-la a mim. Espero que Memphis a agrade.

- Se agrada ao faraó e a meu irmão, então eu tenho pouco a falar. Eu viverei em sua casa, eu comerei de sua comida, eu respirarei o ar de Memphis, isso é tudo. – talvez fosse o fato de ter nascido em um país cujo clima era gélido no inverno, mas o coração daquela mulher me parecia mais frio do que o ouro.

- É sempre assim tão fria, ou estou sendo contemplado com uma pequena amostra da esmerada educação de uma princesa hitita? – retruquei indignado.

- Sinto muito se não lhe pareço simpática, mas se bem me lembro acabamos de nos conhecer. – ela continuou com sua argumentação impecável.

- Sou uma frustração tão grande em seus planos de conseguir a coroa, ou um mero vizir não é capaz de saciar sua ambição de poder? – questionei petulante.

- Não vim para o Egito desejando a coroa, perdi um irmão querido por causa dela. Tão pouco busco por poder nesta terra que odiou a minha por tantos anos. – ela respondeu encarando-me com olhos tão firmes que eu cheguei a recuar. Ela era uma princesa.

- Então por que está aqui? – eu insisti na provocação. Até onde uma princesa tão controlada poderia ir numa discussão? Até onde aquela serpente podia rastejar sem deixar sua mascara cair?

- Eu sou uma mulher, por infortúnio do destino. Para alguém em minha posição as opções são poucas. Ou sirvo ao meu país fazendo um bom casamento para selar a paz, ou dedico minha vida ao sacerdócio. – ela disse firme e mais uma vez seus olhos a traiam. Ela estava infeliz. – Eu fui casada com um nobre e perdi meu marido antes de ter um filho. Isso me tornou uma inútil indesejável, apenas um peso morto dentro de Hatusa e para o meu irmão. Eu não posso lutar em uma guerra, não posso servir em um templo, só me restava casar outra vez e ser útil ao meu país de alguma forma. É por isso que eu estou aqui.

- Eu não acredito em você. Talvez em sua motivação, mas não acredito que seu inesperado revés a agrade. Ninguém é tão desprovido de vontade própria. – eu a provoquei e o que recebi foi um sorriso enviesado.

- Você não entende minhas atitudes porque é um guerreiro e eu fui educada como uma sacerdotisa. Eu não faço as coisas acontecerem por minha vontade, eu não devo servir a mim e sim a algo que vai além de mim. Se eu fui dada a você então os deuses devem ver algum propósito nisso, então não me cabe julgar a vontade deles.

- Quem lhe deu esta ordem foi um homem e não um deus. – foi minha resposta impensada.

- Não está blasfemando? Acaso o faraó não é um deus vivo nas terras do Egito? – ela retrucou a provocação e me fez calar a boca – Não devo questionar os motivos de um deus, ou de um rei.

- Se neste momento você pudesse ser sincera, se pudesse agir por sua própria vontade, o que você faria? Aposto que nem mesmo saberia o que fazer. – eu insisti e ela sorriu indiferente.

- Se eu pudesse agir de acordo com a minha vontade, eu mataria você. – ela respondeu objetiva.

- Então acho que devo me considerar sortudo por você ser minha noiva contra sua vontade.

- Sem dúvida isso manterá sua cabeça no lugar por muito tempo. – ela retrucou sínica – Se não se importa, eu gostaria de ficar sozinha.

E eu sei que devia aprender com meus erros, mas eu iria desafiar Tia com palavras muitas vezes antes de entender o que movia aquela mulher. Talvez eu jamais a entendesse de fato, talvez eu permanecesse ignorante sobre tudo o que dizia respeito a ela, mas decifrá-la passou a ser a missão da minha vida no momento em que ela me deixou sozinho naquele corredor.

Ela não era Yuri, espontânea e vibrante. A energia dela era fluida, cálida, firme e inquestionável, como a força das águas do Nilo. Tia-Sitre era resignada em seus deveres, controlada em seus sentimentos, racional e metódica como um matemático. Eu não conseguia imaginá-la comandando um exercito com aquele temperamento, mas tenho certeza que ela aceitaria o desafio se isso representasse a concretização de algo maior do que ela mesma.

Ela comandaria exércitos, ela enfrentaria o deserto sozinha, ela morreria de fome, ela se atiraria de um penhasco e faria tudo com a mesma determinação inabalável. Horemheb tinha razão. Ela nasceu para ser uma rainha.

O barco deixou o porto de Tebas no fim da semana, seguindo em direção a Memphis. Era uma viagem curta e eu esperava estar em casa o mais rápido possível. O Nilo fazia parte do meu cotidiano dês do meu nascimento, mas eu nunca deixei de me surpreender com sua beleza.

Tia estava sentada no convés, observando a superfície exuberante do rio. Perdida em seu próprio mundo de devoções e subordinação ela contemplava a paisagem, mas seus olhos tinham o mesmo brilho dos olhos de uma criança diante de uma mesa de doces. Olhando o Nilo ela era quase real, como uma miragem no deserto.

- É bonito, não é? – eu perguntei me aproximando. Era a primeira vez que trocávamos palavras dês do dia que ela foi dada a mim.

- Uma visão admirável. – ela respondeu sem me olhar – Dizem que o Nilo é um presente dos deuses, agora eu entendo o porque.

- É verdade o que dizem? – eu perguntei me sentando ao lado dela – Que você tem premonições? – ela riu.

- Achei que estaria livre da especulação aqui, vejo que me enganei. – ela disse sem tirar os olhos do rio – É verdade sim.

- Aposto que me viu em uma delas. – eu debochei.

- Meus sonhos nunca são óbvios como você pensa. Às vezes só consigo entender o que dizem quando já é tarde de mais. Não vejo as pessoas como elas são, normalmente elas aparecem disfarçadas como animais, ou forças da natureza.

- Como códigos? – eu perguntei interessado.

- Algo assim. – ela respondeu distante.

- Aposto como já sonhou comigo. – eu a provoquei com um sorriso pretensioso.

- Não perco meus sonhos com pessoas pretensiosas. Além do mais seria fácil reconhecer você. – ela respondeu indiferente.

- Por quê? – eu insisti.

- Seus olhos. – ela disse rindo de forma zombeteira – São cada um de uma cor, eu me lembraria disso facilmente.

- Já sonhou com o Egito alguma vez? – eu perguntei e ela guardou silêncio.

- Nunca sonhei com pirâmides, ou palácios. – ela disse baixo.

- Mas sonhou com alguma coisa, o que é? – eu conseguia ser irritante quando queria uma resposta.

- Eu já sonhei com o Nilo. – eu sorri diante da resposta.

- Então você sonhou com o melhor do Egito. O que isso lhe diz? – questionei especulativo.

- Que os deuses vêem um futuro para mim nesta terra, mesmo que eu não veja coisa alguma.

Tentar descobrir qualquer coisa além disso era inútil. Tia não falava a menos que fosse questionada e minha criatividade estava bem reduzida com tantos acontecimentos inesperados. No geral, ela não me incomodava como achei que faria. Ela era silenciosa como um gato e observadora como uma coruja, não desperdiçava palavras sem motivo.

Chegamos à Memphis ao entardecer de um dia quente. Eu achava peculiar o fato de Tia andar apenas com uma dama de companhia e nenhuma outra serva. Elas jamais conversavam na presença de terceiros, o que me levava a crer que a serviçal era surda muda. Assim que nós descemos do barco, Neferet veio ao nosso encontro.

Minha irmã não era a pessoa mais discreta do mundo, nem a mais sutil. Ela apareceu adornada com pelo menos três de suas jóias mais caras e vistosas, com os seios amostra e uma peruca curta de tranças e contas douradas. Diante de Tia não poderia haver imagem mais contrastante. Minha futura noiva usava enfeites pequenos e o cabelo preso numa trança única que descia como uma corda até a cintura.

Elas se encararam longamente e em silêncio. Eu via no rosto de minha irmã a confusão obvia. Tia por sua vez a observava com interesse divertido. Era a hora de fazer apresentações.

- É bom vê-la, irmã. – eu saudei Neferet, que voltou sua atenção para mim.

- Fico feliz que esteja em casa, irmão. – ela respondeu – E quem é sua convidada?

- Eu esperava fazer as devidas apresentações durante o jantar, mas já que você é a mais curiosa e irritante das minhas irmãs, acho que não tenho escolha. – eu sorri diante da cara indignada de minha irmã – Esta é a princesa Tia-Sitre.

- A princesa hitita? – minha irmã perguntou chocada e recebeu minha confirmação. Neferet se curvou brevemente em honra à Tia – É um prazer recebê-la, alteza.

- Não serão necessárias tantas cerimônias no futuro, Neferet. Tia-Sitre foi dada a mim pelo faraó em ordem de se tornar minha noiva. – Neferet teria engasgado se houvesse algo em sua boca naquele momento.

- É um prazer conhecê-la, Neferet. – Tia curvou-se elegante, saudando minha irmã.

- O faraó lhe deu uma princesa. As coisas estão mudando no Egito. – Neferet respondeu atravessado. – Venham, todos estão esperando por vocês.

Meu tempo de sossego foi curto. Minha mãe e minhas irmãs organizaram um verdadeiro banquete para me esperar, o que me deu pouco tempo para descansar da viagem e menos tempo ainda para Tia se habituar aos meus familiares nada discretos.

Foi um jantar barulhento, com música e muito falatório. Tia-Sitre mantinha-se firme em sua educação e postura, interagia melhor com minhas irmãs do que comigo, talvez fosse coisa de mulher. Ela comeu bem, bebeu vinho e sorriu quando necessário para ser gentil com suas anfitriãs.

Ao final do jantar ela se retirou discretamente e me deixou entregue aos chacais mais ferozes do Egito. Minhas irmãs atiraram todo tipo de pergunta contra mim. De todas elas, Neferet parecia a mais desconfiada de toda situação. Minha irmã farejava no ar quando algo estava errado e não descansava até ter uma resposta satisfatória. Talvez ela fosse a única em quem eu poderia confiar.

Eu chamei Neferet ao meu escritório para uma audiência breve. Ela me seguiu apressada, com seus olhos de raposa a espreita. Em silêncio nos fechamos na saleta e ela me encarou quase furiosa. Neferet me divertia.

- Então você viaja à Tebas e volta não só com o título de vizir, como também arranja uma noiva! Que tipo de jogo é este, Ramsés? – Neferet questionou apaixonadamente.

- Um desafio de Horemheb, o filho da mãe quer me testar. – eu respondi – Isso é um segredo de Estado, está bem?!

- Diga de uma vez! – ela retrucou impaciente.

- Ele me desafiou. Ofereceu-me Tia como esposa e se eu me casar com ela e tiver ao menos um filho, ele fará de mim seu sucessor. – o queixo de Neferet caiu.

- Ele ainda pode ter um herdeiro natural. – ela disse logicamente.

- Nem ele acredita que isso seja possível. Por isso está tentando assegurar que o império tenha um futuro contínuo comigo. Preciso de um herdeiro.

- Se ele lhe fez tal oferta, por que lhe deu como noiva uma princesa que todos dizem ser estéril? Você não devia se animar com isso. – ela rebateu.

- Nenhum médico confirmou a esterilidade e ela já teve duas gestações.

- E perdeu ambas!

- Eu sei disso. Talvez a culpa fosse do falecido marido. O que importa é que ela ainda é jovem e ainda pode tentar. – respondi convicto.

- Isso está me parecendo uma piada de mau gosto. Ela ao menos tem os atributos que você busca em uma rainha ou o fato dela ser uma princesa hitita bastou para que visse nela alguma semelhança com Yuri? Nossa mãe não suportará outra decepção.

- Então confie em mim, irmã. Ela não terá mais decepções vindas deste filho. Eu serei faraó um dia e terei uma criança com esta mulher. Escreverão em templos meu nome glorificado e conseguirei isso por causa dela.

- Fala como um nobre ambicioso, igual a todos que odeia. – Neferet respondeu.

- Mas serei diferente de todos quando conseguir o que quero. – e esta foi a crença que me fez seguir adiante por toda uma vida.

Nota da autora: Bem, primeira fic sobre Anatolia Story. Quando terminei de ler a história não deu pra evitar a pena que eu senti pelo fato do Ramsés ficar "sozinho". Sim, eu sei que ele teve um monte de concubinas, mas em que essas mulheres o ajudariam quando ele mesmo parece tão empenhado em encontrar uma que tenha sido talhada para ser rainha? Então eu fui a caça de fatos sobre a vida do faraó Ramsés I e me deparei com o nome da única rainha que ele teve. Não há muitas informações sobre ela, apenas que ela não era uma nobre egípcia. Ela pode ter sido a filha de um companheiro de exercito de Ramsés, ela pode ter sido a filha de um mercador, ou de um agricultor. Tia-Sitre é um mistério e este é meu pequeno tributo a ela e Ramsés. Há apenas uma imagem conhecida deles e está no templo construído pelo filho da Ramsés, o faraó Seti I. Nesta imagem, Ramsés e Sitre estão de mãos dadas.

Espero que gostem da história e comentem.

Bjux

Bee