Omake

Selene fechou os olhos com força, cravando as unhas dos seus longos dedos no apoio de braço da cadeira quando outra onda de dor a acometeu. Detestava sentir dor, ainda mais uma dor tão horrível como essa, mas não podia fazer nada para evitá-la. Se fosse uma dor originária de um ferimento de batalha, a mesma seria ignorada, abafada pela adrenalina que corria pelo seu corpo por causa da emoção do combate. O que não era o caso no momento.

Soltou um suspiro de alívio quando depois de minutos a dor passou e relaxou o corpo contra a cadeira, desviando o olhar para os vidros grossos da janela e mirando a paisagem que se apresentava lá fora. Branco foi a única coisa que cumprimentou a sua visão. A tempestade de neve não a permitia ver a floresta que se estendia ao longe e o vento uivante fazia os vidros das janelas tremularem e gemerem.

Sua contemplação foi interrompida quando viu Rhian voltar esbaforido para a sala com uma expressão nada agradável no rosto.

- E então? - perguntou a jovem, tentando se ajeitar na cadeira em uma posição mais confortável e soltando um baixo gemido quando o seu corpo protestou de dor.

- O médico falou que qualquer tipo de magia pode ser prejudicial no momento e infelizmente estamos presos aqui até o resgate chegar. Ao menos acho que ele vai mandar o resgate, a conexão foi interrompida antes dele dizer alguma coisa. - explicou e teve muito pouco tempo para desviar do vaso de flores que veio voando na direção de sua cabeça, espatifando-se contra a lareira onde o fogo crepitava intensamente.

- Isto é tudo culpa sua seu imbecil! - a jovem esbravejou e Rhian soltou um suspiro de frustração.

Culpa dele? Como poderia ser culpa dele se não foi ele que num acesso de fúria, depois de uma briga, resolveu se isolar em uma cabana no meio da floresta a quilômetros de distância de Za-Xmyr. Como Selene tinha conseguido encontrar aquele lugar o zathariano não saberia dizer, mas ele daria tudo para tirá-la dali naquele instante diante das circunstâncias.

- Vou relevar a sua grosseria por causa da situação, mas não me culpe pela sua extrema teimosia. - respondeu contrariado, dando um passo à frente para se aproximar da mulher mas parando de pronto quando a viu encará-lo com uma expressão de fúria, para logo depois a mesma desfazer-se em uma expressão de dor.

- Vai pro inferno. - rosnou entre dentes e Rhian rolou os olhos, voltando a andar e parando em frente a morena, puxando a mesa de centro que enfeitava a sala para mais perto da cadeira onde ela estava e sentando-se sobre a mesma, segurando uma das mãos da jovem e sentindo o aperto forte dela sobre os seus dedos. Quando a mão dela relaxou entre a sua e Selene soltou um suspiro de alívio, ele percebeu que o pior tinha passado. Por enquanto.

- Dois minutos. - comentou ao dar um breve relance para o relógio sobre a lareira. - Os intervalos estão ficando menos espaçados. - continuou e recebeu um olhar descrente de Selene diante de tal absurdo dito.

- Verdade? Eu juro que não tinha percebido. - debochou a jovem e Rhian trincou os dentes para não responder no mesmo tom para ela.

- Espero que o resgate chegue aqui antes que o pior aconteça. - murmurou, desviando o olhar para a janela por onde podia ver a tempestade de neve intensificando-se lá fora.

- Você é um oficial das forças armadas, frequentou a academia militar, este tipo de situação não estava inclusa no pacote do curso de primeiros socorros não? - perguntou incrédula, apertando a mão dele com força quando sentiu outra contração assolar o seu corpo.

- Estava, e daí? - continuou o homem, se fazendo de desentendido diante da indagação da esposa. Não queria nem cogitar a hipótese de que teria que fazer o parto do próprio filho, não com todos os seus nervos em frangalhos. Embora externamente ele não aparentasse nada para não deixar Selene mais nervosa do que já estava.

- Preciso explicar o "e daí"? - respondeu no mesmo tom sarcástico.

- Selene, sinceramente, me dá arrepios só de pensar que terei que me enfiar entre as suas pernas...

- Como se você já não tivesse feito isso antes, várias vezes por sinal, sem reclamar, e lembro que até gostou! - o interrompeu com um rosnado entre dentes para depois soltar uma risadinha divertida ao ver rubor escurecer ainda mais a pele do rosto do homem.

- É diferente, muito diferente. - Rhian enfatizou e segurou um gemido quando sentiu outro aperto da mão de Selene sobre a sua, indicando outra contração. - Menos de um minuto... isso não é bom. - murmurou com o coração aos pulos, apurando os ouvidos para ver se conseguia ouvir alguma coisa, qualquer coisa que não fosse o barulho do vento soprando indicando que a tempestade estava ficando ainda mais forte o que pioraria as chances do resgate os encontrar.

- Faça alguma coisa Rhian! - Selene esbravejou quando outra contração a atingiu, indicando que faltava pouco para o bebê nascer e nada da ajuda chegar. Rhian sentiu o coração vir à garganta e o seu corpo todo congelar. Estava sozinho nesta situação e não haveria como escapar dela.

Inspirando profundamente para se acalmar, ele mirou diretamente nos olhos azuis da esposa e viu o brilho da dor e do medo neles. Selene estava apavorada e demonstrava isto em gritos de raiva contra o marido. Mas, por dentro, ela estava em um estado de nervos maior do que o rei e implorava com os olhos para que Rhian lhe desse um pouco da sua força para poder conseguir encarar aquela situação.

Acenando positivamente com a cabeça como se aceitando o desafio, o zathariano soltou a mão da jovem e surpreendeu-se quando rapidamente ela voltou a entrelaçar os seus dedos, implorando com os intensos orbes claros que não a deixasse sozinha. Deu um sorriso confortador para ela, levantando e inclinando-se para beijar a testa suada da morena.

- Eu vou preparar tudo, me espere. E não vá ter esse filho antes de eu voltar. - gracejou, soltando-se vagarosamente do aperto dela e deixando a sala mais uma vez. Selene acompanhou com os olhos ele partir e mordeu o lábio inferior ao sentir outra contração cruzar o seu corpo.

Sentiu vontade de gritar, de chorar, de rir, vontade de fazer tudo ao mesmo tempo. Sentiu vontade de contrariar as ordens do médico e transportar-se diretamente para a Terra em uma viagem sem escalas. Queria a sua mãe ao seu lado, queria ter os olhos azuis confortadores dela sobre si e a sua voz suave a acalmando, dizendo que tudo estaria bem. Mas tudo o que tinha era Rhian, uma lareira e uma maldita tempestade de neve que a impedia de ter essa criança em um hospital bem equipado e com médicos formados. E o melhor: com analgésicos.

Minutos depois que pareceram horas, Rhian retornou a sala com uma bolsa pendurada sobre um dos ombros além de uma bacia d'água nas mãos. Lentamente acomodou a bacia sobre o piso de madeira ao lado do carpete, que fazia conjunto com o jogo de sofás, e deixou a alça da bolsa deslizar pelo braço até a mesma cair suavemente no chão ao lado da bacia. Com passos decididos ele rodou pela sala, recolhendo todas as almofadas que encontrara e as arrumando contra o pé do sofá.

Logo em seguida ajoelhou-se ao lado da bolsa, tirando de dentro da mesma algumas cobertas e um lençol que ele forrou em frente as almofadas. Arrumou as cobertas do outro lado da bacia, colocando no topo delas algumas toalhas limpas. E, por fim, retirou de dentro da bolsa uma caixa de primeiros socorros que continha alguns instrumentos cirúrgicos esterilizados. Não pensou que encontraria um kit de emergência dentro da cabana, mas ficou extremamente feliz ao abrir os armários do banheiro da suíte a procura de alguma coisa que pudesse ajudá-lo no parto e encontrar aquela caixa.

- Tudo bem aí? - perguntou ao aproximar-se de uma Selene ofegante enquanto passava um braço sob os joelhos dela e outro sob as costas, a erguendo no colo cuidadosamente e a levando até a área preparada no carpete, a deitando contra as almofadas de maneira delicada.

- Ao que tudo indica você decidiu fazer este parto, hum? - gracejou a jovem, gemendo logo em seguida ao sentir outra contração, desta vez mais forte do que as anteriores.

- Tenho outro alternativa? - Rhian deu um discreto sorriso para ela, o que fez Selene sorrir automaticamente de volta.

O zathariano não era de sorrisos, não era muito expressivo emocionalmente, o que foi a razão das brigas nos últimos meses e do quase fim de um casamento de quatro anos, mas ele sabia ser carinhoso quando preciso. Ou atencioso. A único problema era que ele ainda não tinha aprendido direito a compartilhar a sua vida com outra pessoa. Mas sabia que o homem não era um caso perdido, apenas um caso que levaria tempo para resolver.

Os seus pensamentos foram interrompidos quando outra contração a fez se contorcer de dor e soltar um grito rouco.

- Por Serenity... isso dói! - ofegou com o peito arfante e suor descendo pela sua pele já rubra diante do esforço. Os olhos azul gelo de Rhian ganharam um tom mais claro quando o homem a mirou com ternura, deslizando os seus dedos grossos e calejados pela bochecha molhada de Selene num gesto afetuoso.

- Você sabe que eu estou aqui com você, não sabe? - falou baixinho e Selene assentiu com a cabeça.

- E nunca vai me deixar? - continuou a jovem em mesmo tom e Rhian deu outro pequeno sorriso para ela, o que para Selene foi o suficiente.

- Agora... como você está? - perguntou divertido, começando a prepará-la e agradecendo que a jovem escolhera um vestido para usar naquela manhã, o que já facilitava e muito as coisas.

- Tendo um filho! - respondeu Selene atravessada para poder aliviar a tensão. - Como você acha que eu estou? - completou, fazendo um enorme bico e o zathariano riu.

- Muito parada para o meu gosto? - brincou o homem e a jovem franziu as sobrancelhas negras. - Faça força princesa. - continuou em um tom divertido ao sussurrar na orelha dela.

- É rainha! - rebateu presunçosa, sentindo outra contração e começando a empurrar o bebê. Com um gemido, fincou os dedos nas almofadas do assento do sofá às suas costas e começou a fazer força, deixando o instinto tomar conta do seu corpo neste momento.

A dor novamente assolou Selene e a sua barriga contraiu violentamente. Suor emanava dos seus poros e as suas bochechas rubras eram apenas um dos vários sinais do esforço que ela fazia. Mais uma vez soltou um forte gemido acompanhado logo em seguida por um grito de dor quando teve que fazer mais força para empurrar o bebê, chegando a se curvar sobre o próprio corpo para ajudar no processo.

- Está quase lá. - Rhian murmurou com a voz em um tom distante.

Sentia como se não tivesse controle dos seus membros diante do que presenciava. As suas mãos ameaçavam tremer, mas o seu cérebro rapidamente as ordenava que ficassem firme. O seu coração batia em um ritmo enlouquecido contra a sua caixa torácica, fazendo o seu peito pular, suor escorria pela sua testa e rosto e a cada grito de dor de Selene a sua alma se apiedava do sofrimento da esposa.

Mas era por uma boa causa. Era por uma causa maravilhosa, foi o que pensou quando viu o primeiro sinal de que o seu filho estava nascendo.

- Quanto mais eu vou ter que empurrar? - Selene gemeu, agarrando com força o forro do sofá e o puxando, fazendo o mesmo rasgar em várias partes.

- Está quase lá, já estou vendo a cabeça. - respondeu Rhian, puxando a toalha onde tinha colocado os instrumentos para mais perto do seu corpo, junto com as outras toalhas e a bacia d'água. - Só mais um pouco meu amor. - murmurou o homem em incentivo e Selene o mirou com os olhos levemente largos. Rhian não costumava chamá-la por apelidos carinhosos e por isso Selene sempre achou que tais palavras não faziam parte do vocabulário dele.

Quando percebeu que a jovem tinha ficado extremamente quieta e imóvel, ele desviou o olhar da criança que nascia para o rosto da esposa que o observava atônita.

- O que foi? - perguntou confuso e Selene apenas deu um sorriso à ele, sacudindo a cabeça de leve antes de outra contração atingi-la a lembrando de que ela tinha que fazer força. Os seus dedos se fecharam sobre os pelos do tapete macio onde estava deitada, arrancando alguns fora pois a dor fez todo o seu corpo parecer estar se partindo ao meio quando a cabeça da criança passou pelo canal.

- Rhian Hans'Ark-Ra! Quando isto acabar eu vou desmembrá-lo e trancar todas as partes em várias dimensões diferentes! - Selene falou entre dentes, continuando a fazer força diante de cada contração que atacava o seu corpo, fazendo todos os seus músculos retesarem e os seus nervos estalarem diante da tensão. Os seus braços tremiam pela pressão que ela empregava nas mãos ao segurar os pelos do tapete e as suas pernas estavam doloridas por estarem flexionadas por tanto tempo, além de servirem de ponto de apoio para o peso do seu corpo cada vez que ela tinha que empurrar o bebê.

Suor transbordava do seu corpo, molhando a sua roupa e fazendo o ambiente parecer muito mais quente do que a tempestade de neve do lado de fora da casa indicava. Por entre os olhos semicerrados, Selene podia ver Rhian trabalhando entre as suas pernas, ignorando veementemente cada ameaça saída de sua boca. Ele parecia uma estátua de pedra inabalável com aquela expressão séria no rosto e as sobrancelhas claras franzidas em concentração, mas Selene sabia, sabia melhor do que ninguém que por mais que o seu marido estivesse tentando ser forte por ela, ele estava, na verdade, desmoronando por dentro.

O suor que escorria pela testa de Rhian era o primeiro sinal do seu nervosismo. Os ombros largos e fortes encolhidos e tesos eram o segundo sinal. Podia ver o peito dele subir e descer em uma respiração descompassada, ver como os olhos azul gelo estavam brilhando e avermelhando lentamente em um sinal de que lágrimas estavam por vir. Quis sorrir outra vez, mas a dor que assolava o seu corpo a impedia de manifestar qualquer outra emoção que não fosse o sofrimento.

Mas era um sofrimento bom. Estranhamente, apesar do medo, da insegurança, da própria dor física, no fundo o seu coração dizia que compensava. A incitava a ser forte, a continuar firme, porque a recompensa iria ser maravilhosa. Os seus braços fracos pareciam formigar de ansiedade para segurar o seu filho e a sua mente protestava pela demora da mãe natureza. Não porque queria que todo aquele sofrimento acabasse, mas porque queria ver o seu bebê.

Os olhos de Selene comicharam com as lágrimas de felicidade que estavam por vir à medida que ela sentiu que faltava pouco, realmente muito pouco para a criança nascer. E quando outra contração fez o seu corpo todo estremecer e mais um empurrão a fez soltar um grito agudo de dor, tudo isto pareceu ser abafado pelo choro fino que ecoou na sala, sobrepondo-se ao silvo do vento vindo tempestade de neve.

Rhian sentiu o seu corpo todo paralisar quando a pele macia e molhada de sangue e fluídos tocou as suas mãos grandes. O seu coração sobressaltou-se quando o choro chegou aos seus ouvidos e os seus olhos turvos mal puderam enxergar aquela figurinha tão diminuta, tão frágil e que protestava por ter sido tirada do seu confortável lar para ser trazida para este mundo que poderia não ser perfeito, mas que ele jurava pela sua vida que tornaria perfeito apenas para ela.

Com uma delicadeza que ele desconhecia em si próprio, o zathariano trouxe o bebê contra o seu peito, maravilhando-se pelo fato de que aos poucos o choro dele diminuía, sendo reduzido a simples resmungos. Fascinado, desviou o olhar do rostinho redondo e sujo da criança e mirou Selene, surpreendendo-se ao ver uma criatura tão bela na sua frente.

O rosto dela estava vermelho por causa do esforço. O suor, os gritos e os movimentos do parto a deixaram com uma expressão cansada, cabelos revoltos e com a roupa molhada. Mas o brilho que havia nos olhos dela, as lágrimas que rolavam pelas bochechas rosadas e o enorme sorriso que adornava os lábios vermelhos a tornavam a mulher mais linda que Rhian já vira na vida, o fazendo se sentir como se estivesse se apaixonando novamente por ela.

Com movimentos lentos, Selene esticou os braços na direção dele e o homem prontamente entendeu o que ela queria. Relutante, aproximou-se dela, sentando-se ao seu lado ao mesmo tempo em que pegava uma das toalhas e envolvia o bebê nela. A criança já tinha parado de chorar e no momento em que foi acolhida pelos braços da mãe, ela virou dentro da toalha e encolheu-se contra o peito de Selene, soltando um longo bocejo que fascinou os pais de primeira viagem.

- É uma menina, nós temos uma menina. - disse Rhian em um sussurro para não quebrar o encanto e Selene assentiu com a cabeça, não conseguindo emitir uma palavra. Um bolo estava entalado na sua garganta, os seus olhos pareciam que não parariam tão cedo de produzir lágrimas e o seu corpo tinha vontade de segurar o bebê e nunca mais largar.

- Ela é perfeita. - conseguiu dizer por fim com a voz embargada, sem desviar os olhos do rosto da recém-nascida.

- Ela é nossa. - completou o zathariano em um tom de adoração. - Como vamos chamá-la? - perguntou depois de alguns segundos admirando a cena maravilhosa na sua frente que mãe e filha formavam. Selene ficou calada por um tempo, encarando o bebê em seu colo como se contemplando qual era a melhor maneira de batizá-la.

- Estela. - disse por fim e Rhian surpreendeu-se, tocando levemente no ombro da esposa para poder lhe chamar a atenção.

- Tem certeza? - perguntou com as sobrancelhas franzidas quando viu os orbes azuis da jovem sobre si. Estela fazia parte do seu passado, um passado bom e que deixara saudades. Selene era o seu presente e futuro e nos últimos meses muitas das brigas deles envolvia o fato da insegurança da esposa em relação a sua semelhança física com a ex-amante de Rhian.

- Tenho. - completou Selene em um tom suave, acariciando com a ponta dos dedos os cabelos claros e ralos da filha que agora dormia a sono solto em seus braços.

Rhian sorriu, dando um beijo leve na testa da esposa para depois também acariciar as bochechas do bebê com a ponta dos seus dedos antes de dizer:

- Bem vinda Princesa Estela.