Acordei com o sol castigando meus olhos. Há muito tempo não sentia meu corpo tão pesado. Quer dizer, desde que aquela pessoa se foi... Mas quem? Tentei me lembrar e somente via um vulto passando pela porta, o que me deu um aperto forte no coração.

- Querida, você está bem?

Ele me olhava tão preocupado e demorei a pensar no porquê. Então, percebi o quanto estava pressionando meu peito com as duas mãos abertas, como se sentisse uma dor imensa. E de alguma maneira, aquilo era verdade, apesar de ilógico.

- Estou. Acho que foi só o susto de ter deixado a janela aberta e acordado com tanta claridade.

- OK – ele estranhou, mas não insistiu no assunto. – Agora vamos dar um jeito nas nossas malas, senão nem sairemos daqui amanhã!

Estava tão confusa que mal entendia a animação de meu marido. Não me lembrava de ver um sorriso tão sincero no rosto dele havia anos.

- Amanhã?

- A mudança! Como você consegue esquecer? Estamos contando os dias para isso acontecer e de repente você nem se lembra mais?

- A viagem! Meu Deus, que cabeça a minha! Já devo ter arrumado algumas coisas, senão amanhã não conseguiremos ter nada pronto para...

- Você sabe que precisa arrumar somente suas roupas.

- É uma loucura deixar essa mobília toda aqui, meu bem!

- Não é. Quando planejei essa guinada na nossa vida, queria de verdade recomeçá-la. Levar muitos objetos dessa casa seria um atraso.

- OK, não discutirei mais. Mas algumas coisas precisam ir comigo. Coisas pequenas, você nem vai notá-las – acrescentei, ao vê-lo rolar os olhos em desagrado.

- Faça como quiser. Mas todas as malas precisam caber no carro. Ou fora dele. O importante é não nos demorarmos.

Ele se levantou e foi para o banheiro. Eu sabia bem o que aquilo significava: iria se arrumar enquanto eu prepararia o café. Depois de tantos anos casados, adquirimos manias incorrigíveis.

Ao chegar na cozinha e ver o calendário, era como saber que os meses passaram rápido demais. Os anos nem foram sentidos direito, e só o espelho soube me alertar disso com uma exatidão cruel. Pensando em meu marido e em todo aquele tempo juntos, lamentei porque nem sequer tivemos um filho. Tivemos esperanças apesar dos dois abortos espontâneos, e nada aconteceu. Compramos esta casa com a certeza de praticamente povoá-la. O máximo que conseguimos foi entupi-la de conforto, procurando recompensar o fato de podermos apenas nos apoiar no fato de nos amarmos. Não é pouco. Mas nem esse amor foi o bastante para progredir, para gerar um fruto tão eterno...

- Mônica!

O grito me despertou para uma catástrofe. Esqueci-me completamente dos waffles, que queimaram tanto quanto algum neurônio meu. Além disso, minha mão também estava queimando e não percebi isso tão rápido como deveria. Quando tentei fazer algo, Wendell já tinha me tirado da cozinha e estava procurando alguma coisa.

- Deve ter algum pano por aqui! Não é possível!

- Não precisa, querido. Por favor, vamos para o hospital logo!

Era impressionante como minhas reflexões se esvaíram com a dor. Primeiro, parecia anestesiada, como se aquela bolha de sangue nem estivesse ali. Depois, mal conseguia raciocinar, pois alguém estava me rasgando e eu não sabia como fazer aquilo parar.

No hospital, após ser atendida e nos acalmarem – Wendell resolveu se fingir de forte, mas estava preocupado demais e sua pressão subiu além do esperado –, tentei relaxar e proibir minha mente de fazer especulações do quanto eu era infeliz. Eu não sou infeliz, nem era! Imagine se ele soubesse de novo que fico remoendo esse assunto, uma vez que combinamos não nos atormentar por conta disso?

- Não se preocupe, amor. Partiremos outro dia, a mudança pode esperar. Já falei com a imobiliária.

Ainda bem que ele não é muito hábil em descobrir o que estou pensando. Não quando estou estranha desse jeito!

- Desculpe por estragar tudo! Fiquei tão distraída e nem sei o motivo.

- Você acordou assim. Aliás, nos últimos dias acorda esquisita, tem pesadelos de noite, mas geralmente melhora ao se levantar. O que aconteceu de diferente hoje? Que sonhos ruins são esses?

- Não me lembro dos sonhos, mas tenho uma sensação ruim toda vez que acordo. Uma sensação de perda.

Wendell desviou o olhar. Afastou-se de mim, e resolveu não me encarar.

- Ainda podemos adotar, se você concordar.

- Por que você sempre pensa que o problema é este?

- Pelo o que eu sei, o único problema que existe no nosso casamento é este! Você acha mesmo que eu não queria um filho? Nem por isso fico cobrando você o tempo todo.

- Preferia as cobranças! Você pouco se importa em perceber o quanto a nossa vida está sem sentido!

- Sem sentido porque tomei a iniciativa de mudá-la? Quer ficar enfiada em Londres para o resto da vida? Pois eu não quero, e achava que você tinha concordado comigo!

- Concordei. Eu quero sair daqui. Mas não vou negar, sinto como se estivesse deixando algo para trás! Saudade não sei do quê! Pode me chamar de louca se quiser. Mas tem algo errado, e disso eu tenho certeza.

Ele olhou para mim, intrigado. Senti-me segura para desabafar de vez.

- Nossos vizinhos sabem da mudança, porém ontem fiquei acenando para Nancy e ela parecia não me ver. Quando estou andando no segundo andar, tenho a nítida impressão de que nem sempre ele foi daquele jeito. Tenho calafrios só de pensar em mexer em minhas caixas antigas, as de fotos e recordações, você sabe. Diga se há sentido em tudo o que eu disse! Se isso é normal! Se não é para ter pesadelos de noite tendo um constante medo de estar na própria casa e, pior, não reconhecê-la? Moramos lá desde que casamos, e isso já tem 26 anos!

A cada palavra minha, as feições dele pioravam. Assombrado, ele continuava me olhando como se eu fosse louca e simultaneamente como se compreendesse profundamente todos os meus receios e conclusões imprecisas. Tentei perguntar a opinião dele sobre o assunto, mas ele correu até a cama e me abraçou forte. Desajeitado por ser alto demais, não notou que esbarrou o braço em minha mão esquerda ferida. Reprimi um grito, pois aquela queimadura tinha um jeito muito amigável desde a última vez que a vi, e ela latejava ainda.

- Você entende agora o porquê de irmos embora? Seremos mais felizes sem essas impressões, sem os fantasmas das nossas frustrações rondando como urubus.

Impressionante como me dá vontade rir até hoje da falta de habilidade dele com palavras e comparações! Ele deve ver novela mexicana enquanto estou fora de casa, não é possível.

- Eu te amo, e preciso muito viver mais feliz com você. Longe daqui. Acredite que nós temos uma chance de melhorar nosso casamento, de sermos pais, de mudarmos nossa vida mesmo não sendo dois adolescentes. Francamente, Mônica, eu fiz essa escolha e não quero me arrepender dela justo agora.

Naquele momento, me ocorreu um entendimento. Se ele fez uma escolha, havia outra alternativa além de tentar salvar nosso casamento...

- Por favor, você aceita seguir mais um impulso meu?

Desvencilhei-me dele e me surpreendi ao deparar-me com a vermelhidão de seus olhos.

- O que você quer fazer?

- Esperar você ter alta e ir embora daqui, sem nos despedirmos de ninguém, sem sequer passarmos em casa. Tenho as passagens aqui, não há necessidade de mudar mais nada.

- Eu preciso pensar um pouco. O médico não me deixou sair daqui esta noite, e você está incluído nisto por causa do mal estar. Portanto – acrescentei, antes que ele tentasse retrucar que a doente era eu –, temos tempo.

- Se você precisa pensar...

- Significa que estar sozinha é fundamental. E de modo algum desisti da viagem, ou de você. Somente tenha paciência.

Ele esboçou um sorriso e saiu do quarto. A enfermeira veio em seguida dar uma olhada no curativo. Quando ela foi embora, pus-me a pensar na proposta. Já abandonaríamos tudo, não importava se fosse levando todo o passado junto ou estando somente com a roupa do corpo e alguns documentos, certo? Mônica, a que se tornou mais tarde a "certinha" da família, submetendo-se a idéias repentinas do marido. Eu devo ter mudado demais. Rebelde na adolescência, acabei me acalmando depois da faculdade, e foi mais calma que Wendell se aproximou de mim. Ou melhor, teve coragem, porque confessou ser apaixonado desde a época em que eu pulava o muro de casa às 10 da noite para voltar às 6 da manhã. Admito, ele teve coragem. E eu também, porque ele sim reflete muito antes de agir. Esse lado impulsivo de querer mudar tudo é novidade para mim. Será aquela história de crise de meia-idade? Até amante ele estava pensando em arrumar... E se ela estiver na Austrália, esperando por ele?

Céus, cheguei no fundo do poço. Em questão de minutos, coloquei uma terceira pessoa nos meus pesamentos mais obscuros! Como se não bastasse a sensação incomum. Wendell também a sente, mas disfarça melhor. Depois de nossa conversa, isso ficou claro para mim.

Talvez ele tenha razão. Merecemos uma segunda chance, um novo alento. Ainda nos amamos, e o resto é conseqüência. O passado será carregado conosco, e não é necessário ter fotos à mão para provar a existência dele. E nossos sonhos podem ser uma premonição, podemos estar indo ao encontro daquilo que sentimos falta e não entendemos o que é exatamente. A vontade de sair daqui é urgente. Se a ignorarmos, sufocaremos. Pelo menos essa é a maior certeza que tenho, mesmo quando busco desculpas para adiar a viagem.

Terei de largar meu consultório. O dinheiro investido na casa nova, na mudança e despesas enquanto a clientela de Wendell fosse pequena consumiu nossas economias. Nem a venda do consultório dele rendeu o tanto quanto gostaríamos. Quanto ao meu consultório, gostaria de mantê-lo, mas o máximo que consegui foi alugá-lo para outra dentista. Conversamos muito esses dias, é impossível cada um trabalhar em um canto. Discutimos quando eu decidi não trabalhar com Wendell outra vez, preferia virar dona de casa por um tempo e dispensar a empregada do que brigar com meu marido por causa de espaço e conhecimento.

Lembro-me de nossa formatura. Quer dizer, um foi na festa do outro, pois Wendell terminou a faculdade primeiro por ser alguns anos mais velho. Ele já tinha praticamente um consultório montado com o tempo de esforço em estágios, juntando dinheiro e comprando materiais aos poucos. Mal me formei e Wendell já quis que trabalhássemos juntos.

Foi um sonho durante meses. Cada um tinha a sua sala, podíamos nos ver com mais freqüência, saíamos. O problema veio devagar, como uma onda tímida a molhar nossos pés pouco a pouco, crescendo sem notarmos. Quando demos conta do tamanho dos palpites que dirigíamos aos tratamentos um do outro, ao ponto de invadirmos a sala alheia para discutirmos os casos mais complicados que apareciam, quase não teve casamento.

Paramos e decidimos separar nossos consultórios, porque colocar nossa vida conjugal nem começada na época em risco era uma insanidade. Brigar por causa do quanto eu apertaria o aparelho de uma menina e a deixaria usando mais o fixo do que o móvel não é atitude de pessoas normais. Wendell se chateou comigo desde aquele episódio, mas foi forçado a concordar. Era o mais sensato a fazer.

Perdida nas lembranças, mal percebi o quanto dormi naquela noite, porém não tive sonho algum pela primeira vez em dias. Despertei com os olhos castanhos de Wendell me fitando demoradamente. Ele queria uma resposta, e imagino que teve insônia somente por não saber o que eu havia decidido. Ele fica inquieto com incertezas, mesmo sabendo o quanto elas são inevitáveis.

- A alta está assinada?

- Sim. E a enfermeira me ensinou a cuidar da sua queimadura, apesar de dizer que você precisará voltar a um hospital depois de um tempo.

- OK. Na Austrália existem muitos hospitais, sem dúvida. E ainda dá tempo de pegarmos o vôo reservado para hoje?

Ele parecia uma criança. De súbito, me beijou. E eu esperava sinceramente que de onde veio aquele beijo, tivesse mais exemplares. Devíamos ter pensado naquela loucura bem antes!

Fomos direto para o aeroporto. Wendell passou em casa e trouxe definitivamente todos os nossos documentos. Quando indaguei sobre se ele ficou preocupado em voltar lá, pois disse que não o faria, recebi apenas um "Você não estava em condições" em resposta. Ele adorava ter um pretexto para cuidar de tudo. É impossível entender o machismo com suas minúcias e sutilezas gritantes.

Ignorei qualquer pensamento desagradável e aproveitei o bom humor de Wendell, que ficava cada vez mais satisfeito com a proximidade das tão esperadas 9 horas da manhã.

Ao fazermos o check-in, a funcionária foi simpática como o habitual e esperado. Porém, quando explicamos que não tínhamos malas, deu-se uma pequena confusão.

- Vocês vão viajar sem malas?

- Vamos. Achamos melhor.

A mulher nos olhou desconfiada.

- Não pretendemos roubar o avião, se é isso que está pensando! – eu disse, risonha.

- De qualquer maneira, irão passar pelo detector de metais. Não roubariam nem se quisessem, senhora Granger.

- Do que você me chamou?

- Mônica, essa moça não tem amor ao emprego e resolveu fazer gracinhas durante o expediente. Não devemos satisfações para ela. E não me importa se ela finge não saber ler um simples documento, troca nossos sobrenomes... Com todo o respeito, faço votos para que seja demitida sem um olho roxo. Tenha um bom dia.

Espantada e visivelmente irritada, ela devolveu nossas passagens sem retrucar. Também não quis saber se Wendell estava apenas sendo irônico ou se aborreceu de verdade, então somente o trouxe para mais perto de mim enquanto andávamos. Ele retribuiu com um beijo, então julguei que a situação incômoda já tinha passado.

Granger. O sobrenome não é incomum, mas onde ela o leu? Peguei meus documentos na bolsa e os analisei. Em todos estava escrito "Mônica Wilkins". Quando Wendell percebeu o que eu estava fazendo, soltou um "Francamente!", e decidiu dormir o que não conseguiu na noite anterior. Eu não dei atenção para ele, voltando a imaginar no quanto desejava ser mais realizada afetiva e profissionalmente. Pensando que o avião deixava em Londres todo o sentimento de vazio e saudade que me invadiam quando eu fechava os olhos e parecia ver um vulto me mirando por um tempo, e depois virando as costas e indo embora. Até pensei ser Wendell partindo, mas cheguei a rir da insana conclusão. Ele cogitou a possibilidade, mas não a levou a sério. Não era ele. Era algo que fazia parte de mim, mas não passava de uma silhueta. E minha paz de espírito clamava que essa fosse a resposta.

A primeira impressão da nova casa era encantadora. Wendell certamente pediu alguma sugestão para minha irmã, reconheci detalhes da decoração das paredes. No mínimo, Ártemis passou por aqui antes de nós dois. Ela me ajudou da outra vez, não sei porque não pensei que ela o faria de novo.

Maravilhada com o fato de ter menos espaço – éramos apenas um casal, não precisávamos de vários quartos e salas –, passei a me ocupar com o jardim. Era gratificante cuidar dele. Nunca o tinha feito, apenas admirava ver as flores bem cuidadas. Julguei ter perdido tempo em não ter reservado um tempo para isto antes.

Por algum motivo, havia uma edícula. Wendell disparou a intenção de guardar as tralhas que acumularíamos por lá, porém rejeitei a idéia. Tinha outros planos para aquele lugar. Ocuparia-o com artigos de jardinagem e faria um pequeno escritório. Passaria boa parte do dia em casa, queria organizar as contas também. Sempre o fiz, pois trabalhava menos do que Wendell. A esperança de engravidar me fez tentar relaxar o máximo possível, e isso significava abrandar a dedicação ao ofício. Wendell me convenceu disso com o passar dos anos. A empregada limpava a casa enquanto ele não estava, pois a idéia de ter uma estranha mexendo em suas coisas era assustadora. E, para ele, o que os olhos não vêem, o coração não sente. Ela deixava o almoço pronto, e quando eu encaixava pacientes de última hora, ela fazia o jantar. Eu não trabalhava nos finais de semana durante os últimos 17 anos. Porém, ao pensarmos na mudança para cá, despedi Diane. Passei uma semana sem ela e sobrevivi, então acreditei que não seria difícil lidar com isso por aqui.

Saí da edícula e comecei a admirar o interior da casa. Como a mobília estava toda lá, comprada previamente, não foi difícil nos instalarmos e ajustarmos algumas coisas. Arrastei Wendell para fazer compras, pois precisávamos de roupas – somente naquele momento, ele se detestou por não ter trazido ao menos a minha mala –, e aquilo não podia esperar.

Tanto se cansou de andar pelas lojas que implorou para ir ao supermercado. Diante daquele pedido quase desesperado, comecei a rir da aversão dele a compras, lojas e provadores. Era quase insuportável, ele nem se interessava em comprar as próprias roupas.

- Você é melhor do que eu para decidir essas coisas.

Talvez ele tenha razão, mas nunca vou entender de verdade essa repulsa. Prefiro pensar no nervoso como um reflexo dele ter de ir ao consultório e formar uma nova clientela. Alguns pacientes recomendaram os serviços dele para parentes ou conhecidos, mas nem todas as pessoas que conhecemos tinham qualquer ligação com a Austrália. Não foi fácil, porém ele tem por onde começar. Nem isso é suficiente para tranqüilizá-lo, eu sei. E compreendo, pois quando ele sair, tratarei de cuidar da minha nova vida. E disfarçarei a inveja que sinto dele por estar continuando a carreira.

Depois das compras, percebi há quanto tempo meu estômago não via comida decente. Claro, comida de avião e lanche de estrada não satisfazem ninguém acostumado à comida caseira. Parei em um restaurante simpático, porque as economias já estavam sendo muito generosas durando naquele tempo todo de gastos irremediáveis e nada modestos. Sentei-me procurando acomodar as sacolas, e percebi que minha mão queimada fazia muita falta para carregar metade delas, no mínimo. Uma mulher sentada na mesa ao lado deve ter-se compadecido daquele curativo enorme e veio me ajudar:

- Deve ser difícil carregar todas essas sacolas sozinha – disse, sorrindo amigavelmente.

- Com essa mão machucada, se torna mais pesaroso. Muito obrigada pela ajuda, depois conseguirei pegá-las melhor estando nas duas cadeiras por perto.

- O que aconteceu com sua mão?

- Queimei-a no fogão. Foi um pequeno lapso – devo ter ficado vermelha, mas foi bom não poder ter certeza.

- Todas nós estamos sujeitas a isso. Aliás, meu nome é Sienna.

Levantei-me para cumprimentá-la um pouco desajeitada, sem conseguir coordenar bem a cadeira com uma mão só.

- Mônica Wilkins. Acabei de me mudar para cá.

- Bem se vê. O pessoal daqui está acostumado a pedir antes de sentar. Não entendo, mas chega a ser mecânico!

Nossa conversa foi muito boa. Resolvemos conversar na mesma mesa, descobrimos afinidades. Ela era jornalista. Embora isso não tivesse relação alguma com minha profissão, sempre admirei muito quem conseguia escrever, tinha um dom para impressionar e influenciar as pessoas com palavras.

- Você faz o quê?

- Sou dentista. Mas agora não estou trabalhando, porque a mudança acabou com o dinheiro para investir em um consultório novo.

- Que pena! Mas como pretende juntar dinheiro para montar um por aqui? Conheço uma escola ótima que está precisando de um dentista. A que trabalha lá é um amor, mas ficou grávida e vai tirar licença.

- Sério? Agradeceria muito se me passasse o endereço dessa escola!

- Claro! Sem problemas quanto a isso.

- Você escreve artigos para jornais, revistas, ou trabalha em televisão?

Falamos tanto de trabalho depois disso que nem perguntei nada sobre a vida pessoal dela. Senti-me um pouco egoísta e um tanto fria naquele momento.

- Divagamos tanto sobre profissão e a cidade, não é?

- Você tem razão. Aliás, reparei nas sacolas de lojas masculinas. São para seu marido?

- Sim. Ele não tem a mínima paciência para escolher as próprias roupas!

- Meu marido costuma gostar de escolher roupas para ele, mas se eu não estou junto, ele pega qualquer coisa para se ver livre da loja rápido. Acaba comprando pouco, de vez em quando traz uma peça que não combina com nada. Homens!

- Muito impacientes de vez em quando.

- Em compensação, minha filha é bem calma.

- Quantos filhos vocês têm? – eu sabia que em algum momento, a conversa tomaria este rumo.

- Dois. Um é adolescente e às vezes me tira do sério, porém já teve épocas piores. E tem a menor, que é um amor de criança. Eu só espero que continue assim quando chegar nos problemáticos 16 anos, por exemplo! Aliás, meus filhos estudam na escola que indiquei a você.

- Deve ser complicado ser mãe de um adolescente. Mas depois que ele cresce e se torna uma pessoa honrada, podemos rir de como foi difícil ele chegar até lá.

- Você não tem filhos e criou uma boa idéia do que é tê-los.

- Talvez – respondi, um pouco sem graça.

- Já pensou em adoção?

- Sim. Muito. Mas tinha esperanças ainda.

- Entendo, apesar de não concordar. Filho é filho, o importante de verdade é o laço que se cria, não o sangue. Pode apostar nisto.

- Eu devia ter enfiado isto na cabeça há mais tempo.

- Você me disse em algum momento da conversa que a mudança vai servir para você reconstruir sua vida. Faça isso por completo, então. Pense na possibilidade.

- Prometo que irei refletir sobre o assunto.

Fiquei entusiasmada com o comentário. A maioria das pessoas me dizia que era frustrante não gerar um filho, não ter a herança genética. Minhas irmãs não concordavam, minha mãe também não, mas sei como elas ficavam me olhando a cada batizado e aniversário dos meus sobrinhos. Tenho dúvidas se elas julgavam minha insistência em tentar engravidar, ou se estavam frustradas por eu não conseguir.

Combinei com Sienna de continuarmos a conversar quando fosse possível por telefone. Ela prometeu me ajudar a não me perder tanto na cidade. Em troca, prometi ensiná-la algumas metodologias, pois ela estava com receio da matéria que teria de começar no mês seguinte, sobre estética dentária. Adorei poder ajudá-la com algo que domino, e planejei até os últimos detalhes de como sanar as dúvidas dela. Mas também dei algumas dicas, pois sempre havia uma parte sobre estética na revista. Sienna não estava acostumada com esse tipo de matéria, por isso os termos técnicos eram importantes.

Passei dias arrumando a edícula, transformando-a em lugar inspirador e tranqüilo para descansar ou controlar as finanças. Decidi comprar alguns livros (médicos ou não), trazer uns móveis que não se enquadravam tão bem no quarto de hóspedes. Minha amiga era uma visita freqüente, conversávamos muito sobre toda a pesquisa dela para compor a matéria central da revista. Tratamentos de beleza. Isso incluía dentes aparentemente saudáveis, porém os métodos para isso eram mais complicados do que as pessoas imaginam. E cuidar da saúde bucal ao invés de deixar os dentes chegarem em um ponto deplorável é muito melhor. Ou substituir esmaltes por conta, fazer raspagens para equiparar o tamanho dos dentes sem isso ser necessário... São muitas técnicas. Indispensáveis para alguns, apenas.

Apesar das compras feitas, tive de reduzir minhas intenções ao máximo. Não podia pedir mais dinheiro para Wendell, sabia que nossas economias estavam no fim. Não dariam para mais uma semana sem trabalho. Eu estava muito ansiosa para ajudar meu marido, poder voltar a contribuir em casa, ter domínio do orçamento por completo, e não somente por auxiliar nas contas e decisões sobre o dinheiro do Wendell.

Fui até a escola indicada por Sienna. Porém, eles queriam me testar antes de me contratar de vez como substituta da outra dentista. Era um emprego temporário, porém o colégio tinha muito respaldo na cidade. Passei uma semana trabalhando com Lyra, a dentista grávida, e ela foi notando minha experiência. Achava maravilhoso estar ali, mesmo sendo uma experiência. Nada contei para Wendell, a fim de não suportar a reação negativa dele antes de ter tudo acertado. E a matéria também mantive em segredo. Ele acharia ridículo, certamente.

Ele indagava muito sobre o que me ocupava o dia inteiro além do jardim, os vizinhos e os afazeres da casa, e eu sempre dizia que era surpresa. Ele não ficou muito satisfeito, porém se resignou a aceitar minha insistência em não revelar nada.

Em uma das noites em que ele estudava um caso complicado e resolveu ler durante a noite, fui até a edícula. Pus-me a ler "Sonho de uma noite de verão". Não faço idéia de quantas vezes o li, pois adoro o livro, adoro Shakespeare... E não hesitei em comprar o livro outra vez, já que deixei tudo em Londres.

Pensei em Sienna e seu conselho. Veio à mente a idéia de um filho. Eu sabia que se fosse menino, Wendell não me perdoaria se ele não se chamasse Edgar, por causa de Poe. Mas se fosse uma menina, não pensaria duas vezes: Hermione.

E eu tinha esperança de conseguir meu Edgar ou minha Hermione. Ou até os dois. Somente pensando nisto, o vazio diminuía devagar. Contudo, não sumia completamente. O sonho ainda era nítido como um passado próximo. Mas procurei ignorar o assunto e não falar mais com Wendell sobre isto.

Tinha medo de descobrir a importância daqueles sonhos. Ou a realidade inexplicável contida neles.