Delírio
(Capítulo Extra)
(Delírio de Clare já totalmente despertada durante a luta, misturando imagens do presente e do passado)
"Vida e morte...".
O que era a vida? O que era a morte?
Dois reflexos de uma mesma face em um semitransparente espelho
d'água.
Luz e sombra misturadas em um mesmo ser.
Uma bênção amaldiçoada.
Uma maldição abençoada.
O preço da vida é a morte.
A morte consume a vida e, paradoxalmente, a torna passível de
se valer a pena.
"A linha tênue entre a vida e a morte...".
Eram os pensamentos de uma jovem de olhos prateados, de cabelos
curtos e claros...
Cada segundo perdido, mais sangue, mais vida, mais morte...
Era uma noite tomada pela quase total escuridão.
Não havia estrelas e a pequena luz da lua passava
encoberta entre nuvens plúmbeas.
Uma pequena garotinha de longos cabelos castanhos e olhos claros
corria por uma densa floresta respirando ofegantemente.
Estava quase se rendendo ao cansaço, mas não podia
parar.
Tinha de continuar.
Cada segundo perdido era como se mais uma gota de sangue fosse
derramada...
"A linha tênue entre a vida e a morte...".
Uma dor latejante num mundo semelhante.
A dor do sangue, sangue vermelho – cor das paixões lascivas,
do medo fulminante, do perigo iminente.
Vermelho (preto-e-branco!).
Céu plúmbeo como o tilintar dos aços.
Uma melodia descompassada, ritmo de uma tempestade marinha, ressoava
pelas nuvens sem fim.
O que era descompassado?
A melodia dos aços ou as palpitações de seu
próprio coração trêmulo?
Não sabia.
Não chegaria a saber.
Una era a sensação envolta naquela fusão –
quase total.
O tempo não corria.
O tempo parecia se estagnar.
Seu corpo se movia na mais alta velocidade que conseguia com
aquelas pernas de criança, porém não saía
do lugar em sua mente.
A floresta, tão densa, cheia de árvores homogêneas,
tudo mesma cor, mesmo tamanho, mesmo caminho...
Só a dor que diferia.
A dor crescia a cada passo, latejava a cada respiração,
doía a cada palpitação – uma diferença
naquele mundo de semelhanças ao seu redor.
O que era o mundo?
O mundo não importava.
O mundo era nada.
A dor lhe consumia, mas não por ser tudo, ainda não
o era.
Se fosse, já não existiria nem mundo, nem dor, nem
nada...
Lutava por ódio.
O ódio era a sua dor?
Ou a dor não existia mais, o ódio que a consumia quase
totalmente?
Já era totalmente.
Não sabia mais o que era realidade, o que era ilusão...
Só sabia que sua mais pura realidade era o seu profundo ódio.
Lutava, mas não sabia mais com quem e nem por quê!
Apenas lutava para saciar seu desejo de vingança reprimido.
Não importava mais quem era seu oponente.
Deixou-se envolver completamente naquele despertar...
... De seu próprio corpo envolto naquele ódio tão
sangrento.
Começava a seguir os rastros de uma sombra.
Sombra de uma parte de seu coração, só ela
via, só aparecia para aquela pequena garotinha.
Seguir aquela sombra era tudo que lhe restava, mesmo que já
soubesse que se encontraria diretamente com a morte.
Literalmente e não-literalmente.
A morte corpórea e a morte do ser tão
paradoxalmente unidas.
O ciclo exige a morte para desabrochar uma nova vida.
Não para aquela menina:
A morte se desabrochava em morte numa encruzilhada do destino.
Corpo sem vida, não o seu.
Seu corpo com vida – seu espírito sem vida.
Morte.
Morte por uma lâmina afiada de uma espada sangrenta.
Quantas vidas aquela espada que carregava tão cruelmente já
não havia enegrecido?
Lágrimas ainda eram capazes de cair por aqueles olhos
prateados tão disformes.
Lágrimas que não sabia de onde vinham – só
sabia que eram como sua própria lâmina apontando para o
seu próprio pescoço.
Lâmina de dois gumes.
Lâmina que lhe feria a alma...
Tão profundamente que tristeza e ódio agora se
misturavam num só sentimento.
Sentimento que lhe dera uma única certeza: não podia
mais parar!
Era tarde demais para voltar atrás naquele desejo de vingança
– ele já a consumia.
Só sua concretização seria capaz de acalmar
aquele coração trêmulo...
Ou a morte.
Morte em vida.
Vida em morte.
Finalmente a sombra se dissipara, mas apenas fez surgir sombra
maior:
Uma cabeça.
Apenas uma cabeça, última lembrança de seu
ser amado.
Não havia mais árvores, nem flores, nem céu,
nem nuvem. Não havia mais floresta, não havia mais
vida.
Apenas havia escuridão quase completa – a única
luz iluminava aquele lindo rosto sem sorriso aparente.
Nunca mais veria aquele sorriso tão melancolicamente belo?
- TERESA!!!!!!!!!! – gritou então com uma voz aguda,
angustiante, desesperada...
Seu coração sangrava.
Uma lâmina de aço lhe atravessava o peito trêmulo.
Aos poucos, a jovem de corpo distorcido desfalecia ao chão...
Não havia mais distorção.
Havia apenas sua beleza natural, beleza humana.
Não havia mais ódio, não havia mais dor.
O mundo fechava-se em preto-e-branco.
Apenas uma luz configurava-se em crepúsculo:
A luz de um sorriso.
- ... Te-re-sa...
Não era mais um sorriso aparente, nem melancólico.
Um belo sorriso, um sorriso sincero, um sorriso que beirava a doçura.
Doçura branda de um sorriso somente para si.
A jovem de olhos prateados então ergueu sua mão para
alcançar aquele sorriso...
Fechando lentamente seus olhos, deitando-se em sono, sono profundo...
... Expressando pela última vez em seus lábios a canção
de seu próprio sorriso...