Palavras do Autor: "Pois é, segunda parte no ar. Se gostaram da primeira, espero que curtam o desfecho. Abraços a todos, feliz ano novo! E não deixem o pecado te seduzirem! Ou deixem...sei lá! uhauhaihai
Apresento-vos...
A última noite do Hospital Fletchfield
Parte II
Maynard se torturava assistindo aos últimos momentos do garoto. Com as mesmas roupas que chegou, ali estava ele sobre a maca, sujo de sangue e lama. O pedaço de ferro ainda atravessado no abdome. A pus amarelada e fedorenta escorrendo misturada ao sangue quase preto gotejava da maca dentro de um balde sujo colocado ali.
O peito do rapaz subia e descia lentamente, revelando a dificuldade que tinha em respirar. Vez ou outra tossia, como se estivesse engasgado, e então cospia sangue sobre si mesmo. A esta altura seu sangue já estava enchendo os pulmões, matando afogado lentamente o garoto.
Mas talvez não fosse isso que o matasse primeiro. Suas vísceras, na certa, estavam todas moídas. Se o estômago e o intestino foram perfurados, sua cavidade abdominal estaria agora repleta de ácido clorídrico e enzimas digestivas, que destruiriam os outros órgãos. Mas antes que os órgãos fossem digeridos, a infecção tomasse conta ou seu pulmão se enchesse de sangue, muito provavelmente a hemorragia o mataria.
A hemorragia é a mais traiçoeira situação a que o organismo pode ser exposto. Quando se perde muito sangue, a pressão sanguínea cai, desencadeando um reflexo que vai promover o aumento dessa pressão, para não faltar sangue aos órgãos vitais. Em contrapartida, o aumento da pressão vai fazer com que mais sangue saia pelo ferimento, que vai reduzir mais ainda a pressão, desencadeando um reflexo mais intenso, que vai tentar subir a pressão, e mais sangue vai se perder... E assim se repete o ciclo vicioso. Até que não haja mais sangue para suprir o cérebro... E então, a morte.
Maynard concluiu que todo esse processo devia mesmo ser muito doloroso. Pois mesmo sedado, vez ou outra o garoto tinha acessos de espasmo, contorcia-se todo e gemia de dor. Era hora de aumentar a dosagem do sedativo.
No final das contas, a morte pode ser um alívio. Com ela não há mais dores, nem sofrimentos e nem nada. Mesmo. É o fim de tudo, quando as cortinas baixam e a luz não se acende. Tudo que se fez e se cultivou perde o sentido. Perde-se no espaço, no tempo e na memória dos que ficaram.
Mas ainda assim um alívio... Sim. Para o jovem se torcendo em seus últimos instantes, a morte seria bem vinda. Que ele deixe seu corpo para trás e vá descobrir se há algo além. Que ele deixe as dores e todas essas insuportáveis imposições da vida material. E que tudo se apague para ele. Para sempre.
Pela última vez seus músculos contraíram-se, sua mão apertou com força o lençol sujo. Seu rosto já pálido e todo machucado virou-se para Maynard. Os olhos o encaravam, imploravam por salvação, por alívio. A boca abriu-se, prestes a pedir. E o que se ouviu foi último gemido de agonia.
A pupila se dilatou num estalo. A cabeça pendeu. E as últimas palavras morreram na garganta. A vida se fora. E enfim o alívio viera.
Para o jovem e para Maynard.
O médico puxou o lençol e tapou o corpo.
Empurrando a maca sobre suas rodinhas, foi levando-a ao necrotério.
Percorria os longos corredores brancos do hospital, perdido em pensamentos. E subitamente foi despertado por um grito agudo e desesperado de uma mulher. Dobrou a esquina à frente uma senhora desesperada. Corria aos berros para cima de Maynard que, assustado, afastou-se da maca.
A mulher avançou sobre o corpo, arrancou o lençol e reconheceu aterrorizada a face do filho. Agarrada à suas roupas ensangüentadas ela desabou em choro.
Ao longe dobrando o corredor vinham alguns médicos, enfermeiros e o próprio Dr. Fletchfield.
Xx
Logo depois da conversa entre Maynard e John, o jovem médico foi banheiro jogar uma água no rosto. Respirou fundo e se concentrou no trabalho que tinha pela frente. Foi então até a copa, tomou um pouco de café. Foi lá fora e acendeu um cigarro. Depois foi para a enfermaria, onde acompanhou os últimos momentos do garoto.
Nesse tempo John ficara em sua sala. Já eram quase quatro da madrugada e não havia muito que fazer. Para John a noite tinha sido bem proveitosa. Comera uma enfermeira, dera uma lição de moral em um moleque trouxa e agora degustava um copo de uísque e um charuto em sua sala. Terminaria a noite tranquilamente. Ou pelo menos assim ele esperava...
Acontece que enquanto ele acendia o charuto, na recepção uma mulher histérica gritava e xingava todo mundo. Ainda assim todos se mostravam os mais cordiais e respeitosos possíveis com ela. Empurrando quem tivesse na frente foi passando e tomou o elevador. Subiu ao andar da sala do Dr. Fletchfield e para lá se dirigiu. Abrira a porta com um chute e foi entrando como uma fera.
- John, seu louco! O que você fez?
John, como era de se esperar, saltou assustado da sua cadeira tossindo a fumaça do charuto. Os olhos arregalados encaravam a inesperada figura em sua sala.
- Sarah? Mas o que diabos aconteceu?
- Por que não atendeu a bosta do seu celular, cretino? – berrava a mulher.
John calara-se. Claro, como poderia dizer à sua mulher que desligara o celular enquanto estava com a enfermeira Lisa? Foi aí que o sentiu um aperto no coração. Alguma coisa muito séria aconteceu.
Os enfermeiros e seguranças que acompanharam a senhora Sarah até a sala de John esperavam do lado de fora. Em silêncio ouviam os gritos da mulher narrando os últimos trágicos acontecimentos. E enquanto essa conversa calorosa se desenrolava na sala de John, na enfermaria Maynard acompanhava as últimas dores do jovem.
E quando o rapaz estendera-lhe a mão pedindo ajuda, Maynard sentiu o sangue gelar-lhe na espinha. Até esperou que pudesse ouvir uma última confissão, e por isso prestou toda a atenção no que ouviria afim de guardar aquelas palavras. E ouviu apenas um gemido de dor. Ou de alívio. E ao mesmo tempo Sarah e John saíam às carreiras pelos corredores do hospital.
E foi quando Maynard levava o corpo do jovem pelo corredor da enfermaria que John e Sarah chegaram. Tarde demais.
A mulher chora histericamente sobre o corpo do rapaz.
John estava pálido como um cadáver. Olhos arregalados fitando a face rígida, fria, desfigurada e arroxeada de seu próprio filho. A mão sobre a boca segurava o choro. E os olhos imóveis apenas fitavam enquanto enchiam-se de água.
O choro de Sarah foi o único som ali no recinto. E pelo menos seis ou sete pessoas estavam presentes. Quando se deram conta John já não estava mais ali. Ele como médico sabia melhor do que ninguém que já não havia mais nada para fazer. Agora não adiantava mais. Provavelmente se o garoto tivesse sido atendido de imediato, assim que tivesse chegado, ou se John tivesse com o telefone ligado para atender à sua esposa avisando que o filho deles estava indo para o Hospital... Mas nada disso foi feito. E John deixara seu filho morrer, assim como fizera com os filhos de outros tantos pais.
Xx
Quando precisava de um refúgio, John corria para sua sala. Estava debruçado sobre a mesa. Em uma mão um copo cheio de uísque. Na outra apertava contra o rosto choroso a foto do filho.
O moleque era, com todas as letras, um filhinho de papai. Tinha tudo que o dinheiro pudesse comprar. Estava nas melhores festas, com os melhores carros e as melhores mulheres. Usava as melhores roupas, os melhores sapatos e as melhores drogas. Dirigia como um louco pela cidade, desafiava guardas de trânsito. As leis não se aplicavam ao filho de alguém tão poderoso quanto John. Bem a verdade, seu filho era como os moleques que ele tanto desprezava. Mas ainda assim John o amava. A única pessoa que realmente amava. E só se dera conta do quanto amava seu filho agora, que ele estava morto.
Da sua família ele queria distância. Aquele bando de caipiras aproveitadores! E sua mulher não era muito diferente. Uma socialite vazia, que passava o dia em salões de beleza, academias e dando festinhas para exibir a mansão para as amigas. E John vivia aos tapas com seu filho. Mas no fundo sentia orgulho do garoto. Era um jovem esperto, sabia tirar proveito das situações, já estava conhecendo desde cedo as regras do jogo na Cidade do Pecado. Seria alguém como o pai. Seria, se o próprio pai não tivesse acabado com sua vida.
Céus, e como isso o torturava! John sabia que podia confiar a fortuna ao moleque. Sabia que o garoto se daria bem na vida. Tinha tudo para isso. E de repente esse futuro brilhante que planejava se perdeu... Por sua culpa! Agora se sentiu realmente sozinho. Por sua própria culpa! Viu um caminho incompleto à sua frente, seus desejos e planos se sublimaram bem em frente aos olhos e ele mais nada pode fazer. Não agora. Agora é tarde.
E tudo por sua própria culpa!
- Foi sua culpa, John! – Sarah entrou gritando.
- ...
- Que merda foi essa? Você não vê seus pacientes? E por que não atendia à porra do celular? – Sarah, fuzilava o homem cabisbaixo cada vez com mais perguntas, e frente ao silêncio do marido irritava-se cada vez mais.
Cansado da voz estridente da mulher, daqueles olhos azuis de maquiagem borrada e daquela boca esticada por plásticas e que só sabia falar besteiras, John explodiu.
Arremessou o copo de uísque na parede. Sarah calou-se de imediato.
- Chega! A culpa é minha! Sim, está bom? Satisfeita bruxa?
- Do que me chamou?
- Não enche meu saco e dá o fora daqui! – berrou ele a plenos pulmões.
- Você matou nosso filho!
- Eu sei!!
Com movimentos grosseiros e rudes John empurrou a mulher para fora da sala e bateu a porta. Voltou e desabou novamente sobre sua cadeira. A cabeça pendia para trás enquanto os olhos fitavam o teto e milhares de pensamentos lhe corriam a mente.
Eis uma verdade que teria que aceitar: Seu filho era um daqueles moleques imprudentes que tanto abominava. Era igual aos outros que deixara morrer na enfermaria. Mas ainda assim era seu filho. E para John esse fato o diferenciava dos demais, isso o tornava digno do melhor atendimento que pudesse dar, de todo o esforço que ele pudesse mover para salva-lo. Seu filho merecia a vida do próprio pai, por que por mais que fosse drogado e irresponsável, ainda era seu filho.
E agora que não o tinha mais que John percebera o quanto o amava.
Chega a ser curioso a natureza humana. O ser humano é capaz de enxergar problemas em todas as situações, mas tem uma dificuldade imensa em enxergar e valorizar as coisas que lhe fazem feliz. E por esse mesmo questionamento John passara agora.
Tudo aquilo que podia fazer, como tomar vinhos caros, fumar charutos, torrar dinheiro com supérfluos, enfim, todas as coisas que jogara na cara de Maynard não o faziam feliz de verdade. Agora John percebera que não era realmente feliz. O que mais o aproximava desta felicidade era o amor não pronunciado pelo filho. E não a companhia do garoto, pois ele não estava nem aí para o para o pai. O que o deixava satisfeito era ver, de longe, que o garoto crescia, que progredia, que tinha um bom futuro. Era reconfortante ver que uma cria sua tinha um belo futuro pela frente.
Mas agora era tarde... E John sentiu-se amargamente arrependido de não ter dito – ao menos não se lembrava de ter feito isso – que amava seu filho.
Fechou os olhos com força para não deixar que as lágrimas escorressem. Afinal, ele mesmo dissera ao menino que "homem não chora". Doloroso era descobrir que estava muito errado.
Que vontade tinha de desaparecer! De gritar. De explodir. De mandar tudo o inferno. De voltar no tempo. De corrigir o erro.
Mas não havia como corrigir. Estava feito. E a culpa era tão somente dele. E de mais ninguém.
John matara o filho. Tirara de si mesmo a única coisa realmente importante em sua vida medíocre e cheia de falsas aparências. Sentiu-se então um coitado... E desprezava o sentimento de pena. Isso que lhe doeu ainda mais.
E...
A porta de sua sala se abriu com violência. A luz branca que entrou delineou a silhueta de uma mãe enfurecida.
- Você não merece viver, criatura desprezível! – esbravejava ela – Eu te odeio com todas as minhas forças!
Pesaroso John levantou-se da cadeira e encarou a mulher com os olhos vermelhos.
- Você nunca deu a mínima pro moleque, bruxa!
- Ah! Quer dizer que a culpa é minha?
- Não. A culpa foi minha... Mas não venha se fazer de boa mãe. Você é uma ótima perua, isso sim! Mas mãe não...
Sarah rangeu os dentes com um gemido de fúria. Sacou da bolsa uma pequena pistola e apontou para John.
- Vou acabar com você, maldito!
John, por sua vez, não se mostrava muito alterado. Até mesmo sorriu debochado para sua esposa.
- Guarde suas balas para você... – ele abriu uma gaveta e tirou um revólver calibre 38.
- Mas o que...
E antes que ela pudesse perguntar qualquer coisa John a interrompeu.
- A gente se vê no inferno, bruxa...
Dito isso apontou o revólver para as têmporas e sumariamente puxou o gatilho.
Xx
Havia sido uma noite e tanto para Maynard.
O dia amanhecia e o jovem médico havia feito uma parada na padaria para um capuccino e um cigarro antes de ir pra casa. Teria algumas poucas horas para dormir antes de outro plantão.
Observava o horizonte avermelhado coalhado de prédios enquanto pensava no que acontecera.
Tivera uma dura, porém valorosa, lição do Dr. Fletchfield. E então o próprio dá um tiro na cabeça depois de saber que fora o responsável pela morte do filho. E depois sua mulher também se mata.
Fletchfield cometera erros. Não teve controle da situação. E Maynard prometera a si mesmo que teria. Prometeu a si mesmo que aprenderia a jogar conforme as regras.
Depois desta noite o jovem médico se viu cheio de coragem e disposição para sair daquele lixo em que morava e para melhorar a porcaria do seu salário. Agora Maynard caíra na realidade, despertara enfim.
E daqui para frente seria uma trajetória de sucesso. Sem erros, sem falsas ilusões, sem ideologias baratas. Daqui para frente a ideologia seria ele próprio. Seu objetivo era construir seu futuro. Queria viver bem, numa casa boa, dirigir bons carros, fazer boas viagens. Tirar o melhor do que o dinheiro pode oferecer. E agora estava disposto a dar duro por este novo objetivo.
Maynard jogaria conforme as regras da Cidade do Pecado. E agora iria longe.
Jogou a bituca fora e tomou o último gole de café. E foi para casa com um sorriso ambicioso na face.
Encostado na janela do ônibus banhado pela luz vermelha do amanhecer, Maynard pensava no seu mais novo problema: achar outro emprego. Afinal, o Hospital Fletchfield já era.
Fim...