Aquele que é igual a Deus, a Encarnação do Mal

Capítulo 6: Inveja – Aquele que é igual a Deus

By Darkrose

O novo cavaleiro estacou na escadaria. Estava admirado com a suntuosidade daquele lugar. Oito colunas, em estilo coríntio, extremamente ornamentadas, indo de um extremo a outro da fachada do enorme templo. Guardas em armaduras típicas dos antigos guerreiros atenienses estavam parados, cada qual em seu posto, impedindo a entrada de pessoas indesejáveis.

Saga examinava minuciosamente a gigantesca porta dupla, feita de puro ouro, atrás dos guardas. Emoldurando a porta, inúmeros arabescos compunham-na e serviam de céu e terra para antigas figuras mitológicas contarem sua história. Só então o garoto se deu conta de que eram retratos dos mitos de Atena.

Ele sorriu embevecido e teve o ímpeto de tocá-las, mas julgou seu ímpeto infantil e sentiu-se constrangido diante dos homens. Hermes estava defronte o jovem cavaleiro, mas limitou-se a deixá-lo em paz, examinando o salão do Grande Mestre.

-Acho que comecei a entender quem é o Grande Mestre... – comentou, mais para si.

O ruivo passou a mão pelos cabelos e observou o brilho no olhar de Saga. Ficou um tanto perturbado, porém sacudiu a cabeça apagando a impressão que atravessara sua mente.

-Acho que você só ganhou uma noção. O Grande Mestre é um homem muito importante, ele não fica apenas sentado dentro de uma sala com porta dourada. Digamos que ele seja um... Sacerdote. Um padre de uma Igreja Ortodoxa Grega, entende? – olhou para o garoto - Atena é nossa Deusa e o Grande Mestre é nosso padre. Ele está acima dos 88 cavaleiros deste Santuário, incluindo a elite dourada, é o único que tem acesso direto à Atena e permissão de ir até Star Hill prever o futuro do nosso mundo através das estrelas. Suas palavras são leis e o dever dos cavaleiros e amazonas é cumpri-las. Suas ordens vêm diretamente da vontade da nossa deusa e por isso nós as obedecemos. Ele é um homem honrado, honesto e completamente dedicado à Atena.

Os olhos azuis do garoto brilharam animados. Seu apreço pelo Grande Mestre duplicou depois de ouvir a explicação resumida de seu mestre. Até a tarde de hoje, o Grande Mestre não era ninguém para ele. Mas ao passar pelas magníficas Doze Casas, sua admiração por tal figura abstrata que regia o Santuário e que servia à Atena diretamente nasceu de uma hora para outra.

Hermes sorriu ao reconhecer a expressão embevecida de Saga. O novo cavaleiro de Gêmeos conservava algo da infância: a capacidade de louvar o novo e respeitar o valor dos outros.

-Sim... Eu vi coisas... Acho que foi a emoção do dia. – pensou e voltou sua atenção para um dos guardas que tentava mostrar uma face impassível diante dos dois que conversavam despreocupadamente.

Um servo estava próximo deles regando uma muda de plantas e o cavaleiro aproximou-se dele e pediu para que avisasse o Grande Mestre que desejava uma audiência com ele. O servo fez uma mesura e abriu uma fresta da porta para entrar, fechando-a em seguida. Saga empertigou-se na armadura e simulou certa indiferença, mas tentou olhar para dentro disfarçadamente.

-E então? Viu algo lá dentro? – indagou Hermes se deliciando com a chance de importunar seu aprendiz.

Saga balançou a cabeça, o olhar ainda preso nos arabescos dourados.

-Não... Aquele homem abriu uma fresta e não pude ver nada, seu corpo tampou tudo.

-Déplorable... (1) – riu sarcástico.

O garoto virou-se, encarando o mestre e só então percebeu que ele divertia-se às suas custas. Abriu a boca para protestar, quando o servo reapareceu, dessa vez abrindo as portas de uma vez.

-O Grande Mestre os aguarda. – anunciou, curvando-se numa mesura.

O antigo cavaleiro sorriu num agradecimento mudo e foi adentrando o salão, seguido pelo novo cavaleiro que esquadrinhava tudo ao redor surpreso com o esplendor do ambiente.

- Excusez-moi (2). Guten Tag (3)Grande Mestre! – sorriu Hermes, ajoelhando-se diante do trono onde o mestre estava sentado.

Saga ficou em pé, diante daquela figura sentada no trono, olhando-o abismado. Trajava uma longa veste negra com detalhes vermelhos no punho, um detalhe dourado estava sobre seu peito e um rosário de contas coloridas pendia de seu pescoço.

Mas o que realmente o deixou desconcertado e até mesmo temeroso era o rosto do homem. Ou melhor, a máscara que ele usava. Uma máscara tão negra quanto a túnica que trajava cobria todo o rosto do mestre. No lugar dos olhos, um intenso brilho escarlate refulgia ali, combinando perfeitamente com o elmo que usava. O cabelo dele era comprido e algumas mechas esverdeadas caiam sobre os ombros.

Ele estava disposto a esmiuçar ainda mais os pequenos detalhes das vestimentas daquele estranho, porém uma voz sussurrada cortou o silêncio, assustando-o.

-Niederknien, petit garçon! (4) – ordenou Hermes, entredentes, dando tapinhas disfarçados no calcanhar de Saga.

O garoto olhou para a mão do mestre e só então percebeu que ele estava ajoelhado. Corou de vergonha e ajoelhou-se imediatamente, curvando seu corpo o máximo possível e deixando o elmo ao seu lado, tentando aparentar naturalidade.

O Grande Mestre conteve o riso que lhe chegou aos lábios e permaneceu sério. Enquanto o garoto o examinava, ele também fizera o mesmo.

-Boa tarde Hermes. Soube da novidade desde que pisou a casa de Áries.

-Que pena. Pretendia surpreendê-lo, meu senhor. – sacudiu os ombros e ergueu a cabeça para fitá-lo - Meu senhor estou aqui para apresentar o guerreiro que me sucederá a partir de hoje. Ele é Saga,ganhou sua armadura hoje.

O mestre crispou as mãos nos braços do trono e fitou Hermes com a face dura, camuflada pela máscara.

-Eu deveria ser avisado para presenciar a disputa entre os guerreiros que você escolheu como aprendizes. Assim eu conheceria os participantes.

-Não quero desrespeitá-lo, mas não me recordo do senhor na minha sagração. Achei que seria desnecessário incomodá-lo com esse detalhe. Se o senhor presenciasse todas as disputas, jamais pararia no Santuário. Todos os dias em todos os lugares do mundo deve existir algum guerreiro se sagrando.

-Não seja exagerado. Eu presencio todas as disputas do Santuário, é uma regra.

-Perdoe-me, meu senhor. Sinceramente não imaginei que desse tanto valor à essas regras. Entretanto, a disputa foi válida e Saga venceu, mas se desejar, ele pode lutar novamente só para o senhor assistir.

Saga observava cabisbaixo a disputa entre os dois homens, mas ao ouvir a última fala de seu mestre, estremeceu. Tinha plena certeza de que poderia derrotar Kanon quantas vezes quisesse, mas não gostaria de impingir-lhe nova humilhação.

Shion notou a feição do garoto se contrair numa expressão dolorosa e preocupada. Suspirou pesadamente, a máscara abafou o som.

-Bem, já foi feito. Um homem não pode mudar o Destino. – encostou as costas no espaldar dourado – Aproxime-se e apresente-se garoto.

Saga levantou a cabeça e o olhou levemente constrangido. Hermes meneou a cabeça como se dissesse "Vai lá" e voltou a assumir uma face impassível.

Levantou-se, tentando fazer o mínimo de ruído, pegou o elmo e deu alguns passos, parando a menos de um palmo do trono do mestre do Santuário. Curvou-se numa mesura e retomou a postura empertigada, cabeça erguida e olhar fixo e inquisitivo, buscando no fundo daqueles olhos pintados de vermelho os olhos reais do mestre.

-Meu nome é Saga Mixalis e hoje me sagrei cavaleiro, assumindo o lugar de meu mestre, Hermes de Gêmeos. A partir de hoje, tornei-me oficialmente Saga de Gêmeos.

Shion balançou a cabeça levemente, um movimento quase imperceptível. Começou a falar num tom ponderado, mas imponente.

-Hoje Atena admitiu você, Saga, entre a elite dourada. A armadura que está trajando é um símbolo do reconhecimento dela e uma prova do seu valor. Desde a antiguidade os cavaleiros têm protegido Atena e defendido a justiça. Essa armadura só pode ser utilizada em defesa da justiça e jamais –enfatizou a palavra – deverá usá-la em benefício próprio. Entendido, Saga?

-Sim, senhor!

-Muito bem, você tem as bençãos de Atena. Zele por nossa deusa, defenda a justiça e a paz na Terra, proteja e ajude os necessitados. Faça tudo isso com seu coração e sua alma de guerreiro e eu lhe garanto que jamais estará sozinho, Saga. Os deuses estarão com você.

Saga sentiu-se contagiado e revitalizado pelas palavras do mestre. Não conseguiu disfarçar a emoção que sentia. Com a voz embargada, agradeceu:

-Lembrarei das suas palavras, senhor.

Shion levantou-se do trono e ergueu um braço, num gesto majestoso.

-Este é o início de uma nova vida Saga. Que Atena esteja com você. – virou o rosto na direção do outro homem que ainda estava prostrado – E com você também, Hermes.

Hermes assentiu, levantando-se.

-Que assim seja, meu senhor.

Hermes e Saga fizeram uma nova reverência e abriram a porta, retirando-se do salão.

XXXXXXXXXX

O sol estava quase se pondo e eles fizeram o caminho de volta, passando por todas as casas. Ao chegar em Gêmeos, Saga fez menção de deixar a armadura lá, mas acabou desistindo, afinal deixara a urna em casa.

A verdade é que somente depois que toda a torrente de acontecimentos chegara ao fim é que o garoto começou a pensar no irmão e no que ele sentiria ao vê-lo com o traje dourado.

Quanto mais pensava nisso, menos queria chegar em casa. Não sabia o que dizer ou como dizer, se é que precisava dizer algo. Tentou distrair seu pensamento com questionamentos banais. Virou-se para conversar com seu mestre, mas Hermes também parecia imerso em problemas inimagináveis para ele.

Saga estranhou isso, afinal julgava que Hermes só tinha como função treiná-los e que hoje definitivamente seria um dia de festa para ele. Decepcionou-se e muito diante do rosto de seu mestre.

-Mestre?

O ruivo continuava com a expressão carregada. Seu corpo andava ao lado do novo cavaleiro, mas sua mente estava a anos-luz dali.

-Tio Hermes? – chamou Saga com um sorriso provocativo.

O outro piscou algumas vezes até se dar conta de que estava com o garoto.

-Quantas vezes lhe pedi, ordenei, praguejei e ameacei para que não me chame de "tio"? – indagou num calculado tom de irritação, mas definitivamente brincalhão e cansado.

-Sinto muito, mas o hábito continua. Assim como você e "petit garçon".

O homem sorriu e jogou a franja para o lado.

-Você e Kanon são privilegiados. Além de terem sido treinados por mim, vocês ganharam aulas gratuitas de francês e alemão. Realmente maravilhoso, um cavaleiro de ouro trilingüe.

Saga sorriu e sentiu vontade de indagar novamente sobre as origens de seu mestre, mas resolveu respeitar os segredos que ele conservava.

-Afinal o que você ia me falar?

-Uma dúvida besta. Por que o mestre usa máscara? As mulheres que usam máscara! Ele é homem, certo?

Hermes encarou Saga e começou a gargalhar. Um riso límpido e confortante, descontrolado. O garoto foi contagiado pelo súbito ataque do mestre e disparou a rir também. Depois de um bom tempo, os dois sentiam as bochechas e as barrigas doloridas de tanto rir.

-Sinceramente... – Hermes parou e tentou controlar o riso que teimava a voltar – Sinceramente, eu não sei. Nunca pensei nisso, mas deduzo que seja parte da tradição. O Grande Mestre não é amazona. Ele é um homem, mas eu não garanto nada! – tornou a gargalhar com a piada duvidosa, mas pigarreou, reassumindo sua postura séria – Ele é um lendário cavaleiro que juntamente com Dohko de Libra, o Mestre Ancião dos Cinco Picos, lutou na última Guerra Santa contra o maior inimigo de Atena.

-O mestre é um cavaleiro? Atena tem um grande inimigo?!

-O Grande Mestre é o cavaleiro de Áries, Shion. O mestre daquele menininho da primeira casa, Mu.

-Nossa! Mas e essa guerra? Foi recente? Você lutou nela, mestre?

O homem encarou Saga com legítimo espanto e sorriu embaraçado. Passou a mão pelos cabelos e a sensação de culpa voltou a afligir sua mente. Amaldiçoou novamente a capacidade que Saga tinha de fazer as perguntas mais indevidas nas horas mais impróprias.

-Não participei dessa guerra... Essa guerra não foi recente. Aconteceu há 200 anos atrás, aproximadamente. Atena enfrentou seu antigo inimigo, o senhor do mundo inferior...

Saga arregalou os olhos, surpreso.

-Hades? – balbuciou o nome, incerto e temeroso.

Hermes meneou a cabeça num silêncio respeitoso e olhou adiante. A luz da casa estava apagada, Kanon deveria ter saído ou ainda estava descansando, recuperando-se da luta da tarde. Olhou de relance para o novo cavaleiro de Gêmeos e pediu desculpas mentalmente, tanto para Saga quanto para Kanon. Tinha uma vaga impressão de como seria o relacionamento dos irmãos daqui pra frente.

Entretanto, adiante seria um problema dos dois. Hermes não levou em consideração esta variável da equação. Sua conta se restringiu até o instante que um deles ganhasse sua armadura.

XXXXXXXXXX

Os dois adentraram a casa e Saga verificou com alívio que seu irmão tinha saído. Foi até o quarto e tirou a armadura, guardando-a na caixa logo em seguida. Hermes observou a face relaxada do garoto e adivinhou seus pensamentos. Virou-se e foi até seu quarto.

Procurou no fundo do seu armário um bolo de cartas. Retirou-as e colocou em cima da cama. Estavam amarradas com uma fita de cetim envelhecido, provavelmente algo que a filha de seu mestre, Cora, deixou pra trás, e leu o endereço e o destinatário delas. Pegou papel, envelope e caneta e começou a redigir uma carta.

"Santuário de Atena. Grécia, 1973.

Caros senhor e senhora Mixalis.

Lembram-se de mim? Sou aquele estrangeiro no Parthenon, Hermes. Levei seus filhos para o Santuário para treiná-los.

Sinto muito por não terem recebido nenhuma resposta dos garotos, mas eu precisava da total atenção deles aos treinamentos e, infelizmente, a carta dos senhores seria uma distração.

De qualquer maneira, estou escrevendo para os senhores para avisar que o treinamento foi concluído com êxito. Hoje, Saga tornou-se o mais novo cavaleiro de Gêmeos e agora faz parte da elite dos defensores da deusa Atena. Kanon foi igualmente treinado, mas foi derrotado por seu irmão. Agora ele dará sustentação para Saga em caso de problemas graves aqui no Santuário.

Atualmente, como os senhores devem saber melhor do que eu, os garotos têm 15 anos. Cresceram bastante, estão quase da minha altura e a tendência, creio, é de crescer ainda mais. Agora eles usam cabelos compridos como os do pai (o senhor ainda tem cabelos compridos? Agora começo a entender de onde os dois tiraram essa idéia...).

Enfim... O que eu realmente quero deixar claro é que cumpri minha promessa. Com meus treinamentos e com a boa vontade de seus filhos, eles se transformaram em homens fortes e honrados (starke und geehrte Männer, como eu disse na minha língua).

Acho que agora, se não for tarde demais, é possível estabelecer laços familiares sem prejuízos para com os garotos.

Minha missão chegou ao fim. Foi um prazer guiar Saga e Kanon até aqui e desejo do fundo do coração que eles continuem seguindo o caminho de Atena.

Perdoem-me por qualquer inconveniente, mas de qualquer forma, tudo está feito e o caminho não tem mais volta.

Hermes."

Ao assinar a carta para os pais dos gêmeos, o mestre teve a ligeira impressão de que assinava sua sentença de morte. Riu desse temor e dobrou o papel, colocando-o dentro do envelope e lacrando-o com cera de uma vela antiga que achou no criado-mudo. Achou aquele lacre antiquado, mas não perderia seu tempo procurando cola.

Com seu garrancho, escreveu no envelope o nome e o endereço dos destinatários. Examinou longamente o envelope em suas mãos e novamente sentiu-se culpado pelo que fez, entretanto sabia que era tarde demais para arrependimentos.

Olhou para seu quarto saudosamente e sentiu um certo aperto no peito. A hora que tanto adiara finalmente chegara. Treinou os garotos, um deles assumiu seu lugar e agora sua raison d'être (5) finalmente chegara ao fim.

Arrumou seu quarto, dobrou seus lençóis e roupas, guardando-os no armário. Pegou suas roupas velhas, de quando chegara no Santuário e vestiu-as. Constatou, com desagrado, que elas não lhe serviam mais, estavam curtas e puídas. Sacudiu os ombros e dobrou-as, guardando no fundo do armário.

Devido às circunstâncias, acabou obrigado a vestir sua roupa costumeira e deixou as cartas dos gêmeos em cima do criado mudo.

XXXXXXXXXX

Saga estava sentado na mesa da cozinha comendo tranqüilamente um lanche improvisado quando ouviu a porta ranger. Kanon adentrou a casa e parou diante das costas imóveis do irmão que tentava a todo custo se concentrar no que comia.

-Kanon! Você chegou? Sente-se, preparei um lanche.

Ao ouvir sua própria voz calculadamente animada e indiferente, Saga sentiu nojo de si mesmo. Relembrou as palavras do irmão.

"Saga, você é falso que dói."

Balançou a cabeça para si mesmo, confirmando o quanto era falso e dissimulado.

-Obrigado, mas não estou com fome.

Kanon aproximou-se da pia e encheu um copo com água. Bebeu-a com largos goles. Os olhos azuis do novo cavaleiro esgueiraram-se curiosos na direção do irmão e avistou com pesar hematomas, cortes e feridas.

"Essa foi golpe baixo, Saga"

Saga ficou pensando em diversas maneiras de abordar o assunto, mas não achou nenhuma argumentação satisfatória. No quarto, enquanto se trocava, notou que também tinha alguns cortes e hematomas, mas nada muito feio ou doloroso. Apenas o habitual, como se tivesse treinado no dia. Suspirou infeliz com a sua capacidade de abordagem e terminou de comer.

Kanon observou de soslaio seu irmão comendo e encheu outro copo d'água. O clima estava tenso e notou o esforço sobre-humano que Saga fazia para manter-se natural. Claro que estava decepcionado por ter sido derrotado, entretanto não esperava que Saga deixasse ficar daquela forma.

Eram ou não eram irmãos? Uma derrota, uma vitória, era o suficiente para separá-los? Era isso que os diferenciava? Justamente eles que eram idênticos como reflexos no espelho?! Justamente eles que dependiam um do outro, que sustentavam um ao outro, que apoiavam um ao outro? E o laço fraternal que os unia? Simplesmente foi cortado por causa de vários pedaços dourados dentro de uma caixa dourada que Hermes deixava eles olharem uma vez ou outra? Tudo o que passaram juntos foi uma mentira, um engano? A enorme e suntuosa casa de Gêmeos, no Santuário, tinha mais valor que a família que eles eram? Ser cavaleiro de Gêmeos era algo realmente superior em comparação com um simples aprendiz derrotado?

Essas perguntas começaram a girar na mente de Kanon enquanto ele notava a mastigação ritmada e calculadamente indiferente de Saga. Terminou de beber a água e continuou olhando-o de esguelha. Se fosse para o quarto daria a impressão de que estava bravo e magoado com o irmão, mas se ficasse o clima só pioraria. Além disso, tinha plena certeza que Saga guardara a urna da armadura lá e não sabia se estava preparado para encará-la no momento.

O cavaleiro de Gêmeos sentia os olhos de Kanon fixos em seu corpo. Tentou ignorá-los juntando as migalhas de pão num canto.

-Você saiu faz tempo? – puxou um assunto qualquer, apenas para quebrar o clima terrível que se instalara entre ambos.

O gêmeo pôs o copo na pia. Entendeu perfeitamente a dúvida que Saga tinha. Essa pergunta nada mais era do que a maneira educada que o irmão encontrou de se informar sobre quanto tempo ele permaneceu desacordado.

-Sim... Acordei em torno das 3 da tarde. Não dormi ontem à noite.

-É mesmo... – Saga abriu a boca para dizer algo, mas limitou-se a calar.

Os dedos de Kanon tamborilavam pela pia úmida. Não estava disposto a continuar com aquele clima mórbido. Virou-se para sair quando quase topou em seu mestre.

-Tio Hermes?! – exclamou assustado.

-Nada de tio, petit garçon. Hermes... H-E-R-M-E-S. Entendeu? Mas que cara é essa? Pensou que eu era algum tipo de ilusão ou fantasma? – sorriu debochado. – Aprenda mais essa comigo, Kanon: ninguém, em nenhum lugar do mundo, será capaz de criar à imagem e perfeição esse homem magnífico que eu sou! O maravilhoso Hermes!

Saga e Kanon riram da falsa modéstia do mestre. Kanon observou o homem se desviar dele e roubar um pedaço de pão da mesa. Parecia tão calmo e agia com tanta naturalidade que se sentiu estranho e sujo por compactuar com a dissimulação de Saga. O mestre continuava sincero e o tratava da mesma maneira como se aquele pesadelo da hora do almoço nunca tivesse acontecido, como se ele tivesse acabado de acordar de um sonho louco.

Os olhos cristalinos do mestre olharam atentamente para os dois. Notou que eles estavam sérios, embora o clima tenso estivesse temporariamente desanuviado.

-Kanon você está bem? Está cheio de ferimentos! Vá tomar um banho e depois desinfete os cortes. A caixa de primeiros socorros está no lugar de sempre, isso se vocês a guardaram no local de sempre. – riu, ao ver a imagem do quarto bagunçado dos dois.

O garoto sorriu. Ficou realmente feliz em saber que seu mestre ainda se importava com ele mesmo tendo sido derrotado. Saga também sorriu. Sabia que Hermes não iria segregá-los por causa de uma derrota. O mestre os encarou com certa surpresa.

-Oras, por que essas caras? Afinal o que estavam pensando? Vocês dois ainda são meus petit garçons. – fez uma pausa, os encarou e riu - Acham ridículo? Admito, é ridículo, mas ainda assim é inevitável... Eu os vejo assim. Saga, o menininho dos por quês, e Kanon, o menininho das palavras certas nas horas indevidas.

Ele olhou bem para os meninos e sentiu um grande pesar invadir sua alma.

-Quero que saibam que gostei de treinar vocês. Foi agradável viver com os dois como uma família. – passou por eles e afagou o cabelo dos dois apressadamente, como fizera com os meninos da primeira vez que os vira - Vou sair! Não destruam a casa, ok?

Acenou para eles e fechou a porta, assoviando. Enquanto seu rosto sorria, seu coração era oprimido.

XXXXXXXXXX

Hermes deu ordens para um servo enviar a carta no correio. Assim que o homem se afastava, olhou para o céu. A lua já estava no alto. Era uma noite quente e abafada. Ele arfou de leve enquanto subia a colina.

Chegou no topo e parou a alguns metros de distância, sondando o local. Tudo estava escuro e deserto, a única coisa que ouvia era o canto insistente e irritante das cigarras.

Tomou cuidado para esconder seu cosmo. Aproximou-se da casa rústica de madeira. Cuidadosamente, empurrou a porta entreaberta, provavelmente devido ao calor, e adentrou-a, tentando não fazer ruídos.

A sala estava escura, tomada pelo breu e Hermes temeu topar com algo e fazer um estardalhaço. Aguçou a visão e com ajuda do luar, esquadrinhou o piso de madeira e o espaço que tinha de transpor para chegar até o seu objetivo.

Com a elegância e a leveza de um bailarino, caminhou suavemente por entre os colchões espalhados no chão. Tentou não vislumbrar os rostos adormecidos, pois estava num verdadeiro ninho de serpentes.

Embora fosse um mulherengo incorrigível, Hermes achava mais que suficiente se envolver com apenas uma amazona. Uma amazona era mais que suficiente.

Apenas uma amazona para amá-lo ou matá-lo já era perfeito.

Empurrou a porta no fim do corredor e verificou com desprazer que estava trancado. Suspirou e bateu uma vez, de leve. Quase que imediatamente a porta foi aberta. Antes que a mulher pudesse gritar, ele pôs o dedo nos lábios, pedindo silêncio e indicou os corpos exaustos das aprendizes.

Cora fechou a porta à contragosto e o encarou, braços cruzados e possivelmente cara de poucos amigos, imaginou o homem. Ela estava com a máscara.

-O que quer aqui? Os bordéis de Atenas estão fechados?

O homem sorriu diante da pergunta irritada, sarcástica e enciumada.

-Quero conversar com você. Vamos lá fora? Não quero acordar suas alunas.

-Não tenho nada para falar com você. Suma daqui.

-Você vai querer ouvir o que tenho a dizer, Cora. Seu sonho vai se realizar.

A mulher sentiu seus olhos se arregalarem. Prendeu a respiração e se conteve para não demonstrar nada. Abriu a porta e saiu da casa, sendo seguida por ele, ambos silenciosos. Caminharam apressados como dois fugitivos e só pararam próximos de uma campina vasta e escura.

Hermes ficou calado, estudando a melhor maneira de iniciar a conversa. Contar piadas, provocá-la e coisas do tipo seria simples, mas dessa vez falaria a sério com ela. Cora suspirou, exasperada, e cruzou os braços. Sabia que ele só começaria a falar com um incentivo.

-Fale logo, Hermes. Tenho que voltar para ver minhas alunas.

Ele sorriu debochado e provocativo.

-Precisa niná-las? Não acha que já passaram da idade?

-Sua boca só se abre para ridicularizar as pessoas e situações, mas para falar coisas úteis você a mantém fechada. Teve sua chance, Hermes de Gêmeos.

Ela virou as costas e se afastou, porém foi detida pela mão dele puxando seu ombro.

-Fique. Não vou mais brincar. – fechou os olhos e suspirou – Hoje, ao meio-dia, eu deixei de ser cavaleiro. Meus aprendizes lutaram e Saga ganhou. Eu o apresentei para o Grande Mestre de tarde.

-E daí? Quer que eu deseje os parabéns? – ela sorriu sarcástica.

O cavaleiro teve a nítida impressão de ter visto os lábios delas se contraindo num sorriso desdenhoso que só ela sabia fazer.

-A questão é que hoje deixei de ser cavaleiro. Não tenho mais motivos para ficar aqui.

Ela soltou um longo suspiro e sentiu o hálito quente avançar por sua face coberta pela máscara.

-O que vai fazer?

Hermes sentou-se no chão de terra e inclinou o corpo para trás, apoiando-o com as mãos. Fitou o céu e espreitou o brilho das estrelas. No momento que julgou adequado, anunciou:

-Bem... – ele passou a mão pelo cabelo e tirou a franja dos olhos – Estou aqui para descobrir. Tenho uma dívida com você. Se eu te pagar ficarei aqui mesmo, na sua terra. Caso recuse, voltarei para a minha terra e procurarei as autoridades competentes para me julgar.

A mão dela aproximou-se dos cabelos dele, mas retraiu-se assim que pensou ter roçado neles de leve.

-Você é peixe pequeno. O que as autoridades poderão fazer?

-Não sei... Sei apenas que você tem razão. Não passo de um... – calou-se e fechou os olhos, tentando apagar a palavra que ecoou em sua mente – Depois que seu pai me achou e me treinou, tive consciência que meus atos foram terríveis, mesmo que eu justificasse como cumprimento do dever. Passei todos esses anos sem ter uma noite decente para dormir, imagens terríveis assombravam meus sonhos. E o pior de tudo – ergueu a cabeça e procurou o rosto dela – é que não me arrependo. Acho até que gosto, afinal dessa maneira acabei conhecendo seu pai, meu mestre, e por intermédio dele, você.

Cora suspirou e cravou as unhas nos antebraços, disfarçadamente. Queria acordar daquele sonho a qualquer custo. Desde que o conhecia, antes mesmo dele adotar o nome "Hermes", ele era assim. Terrivelmente ambíguo, achando pontos positivos egoístas no meio de catástrofes.

-Você deveria ter tendência a ser assim, mas depois que serviu aqueles malucos preconceituosos tornou-se esse ser doentio e ambíguo.

O homem se levantou. Ficou diante dela, em silêncio, e encarou a máscara impessoal que ela usava. A tragédia do teatro grego. Meneou a cabeça para si mesmo, aprovando o modo como essa máscara combinava perfeitamente consigo e com sua atual situação. Esticou a mão para tocá-la, mas a mulher recuou e assumiu uma postura defensiva.

-Enjoei da sua máscara. Quero ver seu rosto, faz tempo que não o vejo.

Ela desfez a postura e deixou os braços penderem ao lado do corpo. Ele estendeu o braço e tirou a máscara dela lentamente. Sentiu que lhe faltava o ar, estava realmente emocionado por vê-la novamente.

-Cora... Você continua linda. Muito linda. Senti tanta falta desses seus olhos, dessa sua boca... Dessa sua expressão tranqüila e desafiadora ao mesmo tempo. Sim... Você é muito linda. Muito... – suspirou, embevecido diante da visão do rosto daquela mulher – Me faltam palavras no seu idioma para descrever tudo que me passa pela cabeça.

Cora se aproximou até sentir o hálito quente dele. Não sabia o que fazer com as mãos e acabou segurando a barra da sua túnica leve e sem mangas. Fitou o rosto dele tomada por melancolia, desejo e saudade. Abriu a boca e antes de conseguir exprimir o que queria, deixou um sopro quente escapar de seus lábios incertos.

-Fale na sua língua... Faz tempo que não o ouço vociferando em alemão.

-Poderia lhe falar em francês... A língua do amor, ma cherie. (6) – sorriu, igualmente hesitante, afagando os cabelos sedosos e levemente avermelhados da mulher, deslizando o dorso da mão pela face macia, delicada e úmida de suor, típicos da noite grega.

-Quando eu te vi pela primeira vez, você falou comigo em alemão. – ela replicou, tirando a máscara da mão dele e deixou-a cair no chão.

O ruído do objeto atingindo a terra agiu como um sinal para ele. Sem pensar e sentindo o corpo inflamado pelo desejo que conteve por tantos anos depois da briga infantil, Hermes lançou-se sobre Cora e começou a falar tudo que pensava no seu alemão duro e seco, intercalando palavras com beijos e carícias, comprimindo-a contra seu corpo. Cora não compreendia quase nada do que ele dizia, mas entendia uma coisa ou outra. Acariciava os cabelos dele, retribuindo seus beijos urgentes e deixou-se tombar no chão, sentindo a grama pinicar suas costas.

A ânsia por se completarem novamente os uniu e ambos relembraram nostalgicamente sua juventude. Abraçaram-se com força, pois sabiam instintivamente que era a última vez, mas não deixaram a certeza abalar o torpor que os tomava.

O ex-cavaleiro de Gêmeos fitou o rosto dela por um longo tempo, desejando absorvê-lo por completo. Fechou os olhos e sorriu para si. Era um fim perfeito. Se tudo acabasse daquela maneira, seria perfeito.

Encostou as costas na grama enquanto ela se aconchegava em seu peito. Seus olhos fixaram-se num ponto qualquer do céu estrelado. No fundo sabia que seu fim não seria perfeito e que a procurara simplesmente porque não queria voltar para sua terra. Não tinha ninguém lá e não tinha a menor lógica ser julgado por algo que fizera há muito anos, que todos procuravam esquecer e que o deixavam oscilando entre arrependimento e apatia.

No fundo, tudo o que mais queria era que Cora aceitasse seu pagamento e cobrasse sua dívida.

XXXXXXXXXX

Metal contra metal rangeu de forma sinistra. As mãos pálidas e enrugadas, donas de juntas nodosas, puxaram um fio de qualquer jeito e atirou-o ao chão, desdenhosamente, junto a um emaranhado de fios cortados.

O fio estava envelhecido, mas ainda assim era possível vislumbrar um certo viço nas cores que tinha. Azul cristalino e vermelho vinho.

-Fim. – sentenciou Átropos, deixando a tesoura de lado por um instante.

Outra mulher, Lachesis, pegou a balança dourada e guardou-a no devido lugar.

-Hoje foi um dia cheio... – comentou Clotho, ainda encarando o brilho dourado da balança – Quem diria! O fio delicado conseguiu derrotar esse fio mesclado...

-É o Destino. Ninguém escapa dele. – disse Átropos, indiferente, voltando a pegar a tesoura.

-Hoje teve duelos até depois da Hora Morta! Os homens não se cansam de arriscar a vida por motivos cretinos. – falou Lachesis, examinando a Trama do Destino.

-É o Destino. Ninguém escapa dele. – repetiu Átropos como um mantra, fazendo Lachesis revirar os olhos de puro tédio.

-Vejam irmãs! – alardeou Clotho, mostrando a tapeçaria – Outro fio começou a se entrelaçar no caminho de um dos fios gêmeos!

-Esse fio foi o que a balança escolheu? – indagou Lachesis, examinando o fio que se entrelaçava ao fio rubro.

-O próprio. – confirmou a donzela.

A mulher examinou o fio com atenção redobrada e verificou que o fio avermelhado acabara se entrelaçando a um outro fio velho. Encarou Átropos indignada.

-Átropos! Como pode deixar essa coisa velha na nossa tapeçaria?! Olha que desastre! O nosso desenho sendo estragado por isso! Valia mais a pena deixar esse fio misturado que você cortou agora na trama do que essa coisa velha e desbotada!

-Não me dê ordens, Lachesis! Eu corto os fios que não tem mais utilidade e esse fio de péssima aparência ainda tem uma utilidade. Você mesma pode ver.

Lachesis observou o fio com indisfarçável repugnância e o soltou.

-Pois bem, logo terá um fim rápido e ninguém sentirá sua falta.

O silêncio voltou a reinar no Salão da Eternidade, cada mulher exercendo sua função com precisão e sem ruídos.

XXXXXXXXXX

Suspirou ao ver a casa antiga. Sua mente foi invadida por lembranças que desejava esquecer. No tempo que viveu ali era feliz. Tinha seu pai; seu primo e depois o estrangeiro que se tornou aprendiz de seu pai.

Agora tudo que lhe restava era uma casa velha onde os aprendizes do estrangeiro moravam; seu primo e somado à isso, sua casa com suas alunas.

Um silêncio perturbador envolvia a casa. Adentrou-a sem pedir licença, pois ainda considerava sua. Notou que tudo estava como antes, porém mais velho.

-Aquele inútil... Nem para restaurar a casa ou comprar coisas novas. – resmungou, sentando-se numa cadeira da cozinha.

-Ei, Kanon... Você achou alguma coisa para comer? – indagou uma voz sonolenta, vinda do quarto.

O garoto saiu de cueca do quarto, espreguiçando-se, quando sentiu a presença de alguém. Abriu o olho e deparou-se com a amazona que adorava brigar com seu mestre.

-C-CORA!? – berrou aterrorizado e correu de volta para o quarto, para se vestir.

A porta rangeu e um assovio satisfeito adentrou a cozinha.

-SAGA HOJE DEMOS SORTE! AQUELA MULHER SAIU MAIS CEDO E EU CONSEGUI PEGAR UM MONTE DE COISA DA DESPENSA DELA! VAMOS COMER COMO – o entusiasmo de Kanon murchou ao ver aquela máscara terrível – reis...

Cora balançou a cabeça reprovadora.

-Realmente vocês são aprendizes de Hermes! Então são vocês que roubam a minha dispensa?! Sabe quantas meninas eu castiguei por isso?

Kanon baixou a cabeça e entregou a comida para Cora, mas ela o ignorou. Saga saiu do quarto vestido e deu um tapa na testa ao ver a comida em cima da mesa.

-Maldição! – murmurou.

A amazona se levantou e os encarou.

-Podem ficar com a casa do meu pai. Meu pai confiou esta casa para Hermes e ele passou-a para vocês. Como Saga se tornou cavaleiro e ficou com a casa de Gêmeos, Kanon fica com a casa para morar. – o tom dela se alterou e ficou ameaçador – Parem de assaltar a minha despensa ou irei pulverizá-los. Conheço as técnicas de Gêmeos muito bem.

Ela abriu a porta, mas os gêmeos a seguiram.

-Ei, moça!

-Cora!

-Ei! Espera ai! Onde está o nosso mestre?

-Faz uma semana que não o vemos!

Cora parou, mas permaneceu de costas.

-Então vocês nunca mais o verão... Mas não creio que ele foi embora sem se despedir de vocês. Não é do feitio dele.

Saga e Kanon se entreolharam. As palavras de Hermes na última vez que o viram, de noite, começaram a fazer sentido. Quando eles voltaram a olhar para a porta, Cora não estava mais ali.

Instintivamente eles sabiam que ela sabia o paradeiro do mestre, mas também sabiam que ela nada diria. Voltaram a atenção para a comida sobre a mesa e começaram a preparar o café, pesarosos e com a irritante certeza de que nunca mais o veriam.

Mastigaram pão e beberam um café morno, adoçado com o adeus que prendiam nos lábios. Adeus palavras emboladas e salada de línguas. Adeus tio Hermes. Ele odiava ser chamado de tio, mas justamente por isso era "tio".

Os dois serviram-se com mais café e o líquido escuro e amargo travou na garganta sufocada ao invés de ajudá-los a digerir a situação.

XXXXXXXXXX

Saga voltou para casa tarde. Não tinha muito que fazer no Santuário, mas ainda assim procurava se enturmar com os demais cavaleiros, embora a maioria dos dourados estivessem ocupados treinando aprendizes para substituí-los. Eles não eram tão velhos, eram até novos, mas já preparavam uma nova safra de jovens guerreiros.

Encontrou seu irmão deitado no colchão de Hermes, adormecido. Meses se passaram e conforme os monossílabos de Cora, ele nunca mais voltou. O garoto sentou-se na cadeira bamba da cozinha e repassou mentalmente as coisas relevantes que aconteceu nesses tempos entre ele e seu irmão.

No decorrer da semana sem notícias do mestre, Saga e Kanon procuraram pelo quarto de Hermes alguma pista que pudesse esclarecer seu paradeiro, mas foi inútil. A busca só não foi totalmente infrutífera porque eles encontraram uma pilha de cartas amarradas com uma fita de cetim, endereçadas para eles.

Assim que tocaram nos envelopes perceberam como o quarto estava organizado e notaram a disposição das cartas, num local visível e chamativo. Somente nesse instante os gêmeos perceberam que Hermes calculara tudo isso. A visita de Cora, na semana seguinte, só serviu para confirmar as suspeitas de ambos.

Saga desfez o laço e deixou a fita de lado. Ao ler o nome dele e do irmão sentiu uma alegria indizível ao constatar que seus pais não os esqueceram como ambos julgavam. Eles leram e releram as cartas e as arrumaram do jeito que o mestre deixara, por ordem de data.

Com desagrado perceberam que o espaçamento entre as datas de envio foram aumentando exponencialmente até simplesmente pararem. A princípio, as cartas eram enviadas semanalmente. Depois quinzenalmente. Mensalmente. Semestralmente. Anualmente... E assim foi até parar. A última carta datava de 1970. Fazia 3 anos que não recebiam mais notícias de seus pais. Ou melhor, fazia 3 anos que Hermes não recebia notícias de seus pais.

Será que poderiam chamá-los de "pais" ou seria muita ousadia? Fazia anos que não os viam, precisamente 9 anos. Os irmãos lembravam-se vagamente de seus pais, o modo como eles os tratavam, a empregada da casa, o costume de celebrar o aniversário no Parthenon... Saga e Kanon preservavam essas lembranças com muito esforço, cada um contando ao outro, pedaços fragmentados das memórias para manter as lembranças vivas, sonhar e talvez, enganar a si mesmos.

Entretanto, desde que leram as cartas, logo depois de Saga ser sagrado cavaleiro, nenhum dos dois voltou a conversar como antes. Agora, os fragmentos de memórias corriam o risco de serem apagados de suas mentes oprimidas por crimes ignorados, por uma armadura dourada.

Saga retomou a análise sobre sua família. Nem ele e nem Kanon sabiam do que os pais gostavam, o que eles faziam, se tinham outros filhos, no que trabalhavam. A vida deles mudara totalmente assim que adentraram o Santuário. Brincavam pouco, estudavam muito e treinavam até a exaustão.

Os gêmeos se aplicaram diariamente ao treino, cada um à sua maneira. Entretanto, no fim de tudo, apenas um foi contemplado. Agora, lá estavam os dois, se evitando, se esquivando, se estranhando.

Infelizmente, Hermes se esqueceu de ensinar-lhes sobre comunicação ou sobre como conviver com a derrota, como dividir o teto com a pessoa que roubou um sonho de infância, um sonho partilhado. Realmente os cálculos do mestre limitaram-se até o instante em que um dos dois ocupasse seu lugar.

O garoto suspirou de leve, sentiu-se como um bandido. Temeu ter suspirado alto demais e ter acordado Kanon. Não queria acordá-lo, queria evitá-lo o quanto pudesse, aproveitar os instantes solitários para organizar suas idéias. Ele era um bandido e Kanon era uma vítima, mas o que podiam fazer? Era uma batalha, um dos dois tinham de ganhar. O mundo era dualista, tudo que existe na face da Terra possui seu oposto e necessita dele para existir.

Luz e trevas, yin e yang, dia e noite, céu e inferno, bem e mal. As coisas se apresentavam assim diante de qualquer um.

-Eu poderia não ter lutado. Mas então daria a armadura de mão beijada para Kanon e ele também não me perdoaria. Nós dois poderíamos ter conversado e combinado de não lutar um contra o outro. Mas Hermes seria forçado a escolher um de nós ou então eles nos abandonaria e procuraria outros garotos para treinar e passar a armadura. Maldição... O Destino brinca conosco... – murmurou para si, tamborilando o tampo da mesa, irritado.

O sumiço do mestre agravou a situação entre eles. Saga tinha a impressão de que um abismo os separava. Para não humilhar Kanon ou passar a impressão de que estava esnobando-o, começou a deixar a armadura de Gêmeos no Santuário há um mês.

Derrotado com a constatação daqueles fatos, Saga decidiu fazer qualquer coisa naquele instante, menos pensar. Quanto mais pensava, pior se sentia. Vasculhou a despensa e começou a improvisar um jantar. Poderia ter comido no Santuário ou com Aquiles, amigo de seu mestre, e Aiolos, mas desistira. Não podia deixar seu irmão de lado e correr o risco que o abismo entre eles crescesse ainda mais.

Tanto ele quanto Kanon passaram a vida inteira treinando e agora, de uma hora pra outra, tudo se acabou, um ganhou e outro perdeu. Um está na luz e o outro nas trevas. Era uma situação cruel e desumana que nenhum dos dois jamais imaginara passar.

Eles eram uma família, só tinham um ao outro. Saga compreendia o fato de Hermes ter escondido que treinava os dois para disputarem algo, mas não aprovou o método utilizado.

Agora a comunicação entre os dois estava comprometida. Talvez, irremediavelmente comprometida. Saga sentia que ferira o orgulho de Kanon derrotando-o com um golpe que desenvolvera numa noite insone. Mas o que fazer? O mal já estava feito e não tinha mais o que fazer.

-O que tem pro jantar?

A voz sonolenta de Kanon acordou Saga de suas divagações. Virou-se abruptamente e o fitou constrangido e assustado.

-Salada. Sem acesso à despensa da Cora estamos sem nada.

Kanon esfregou os olhos e o encarou indiferente.

-Você poderia ter comido no Santuário. – fez uma pausa e exibiu um sorriso caústico - Lá, pelo que eu soube, a elite dourada pode comer no refeitório uma refeição especial. Café, almoço e jantar. Agora você vai ter que se contentar com a humilde refeição da minha casa.

Saga suspirou. Colocou uma travessa na mesa e temperou-a com azeite e sal. "Minha casa"? Então seu irmão o considerava um convidado inesperado, um visitante desagradável, um invasor?!

-Prefiro comer aqui. – replicou sério, tentando ignorar o despeito de Kanon.

-Não se importa de comer com um perdedor? Talvez isso seja contagioso ou não seja bem visto pelas pessoas do Santuário. Assim como não é de bom tom que as pessoas descubram que nós somos gêmeos. – continuou sorrindo, enquanto pegava uma folha de alface e a enfiava na boca.

-Não vim comer com um perdedor. Vim jantar com meu irmão... Se quiser pode aparecer no Santuário e contar a todos que somos irmãos. Hermes não está mais aqui para forçar você ou à mim a ficarmos calados. – replicou cansado, sentando-se e encarando a travessa sem apetite.

-Não estou com vontade de conhecer ninguém do Santuário... Eles nem se deram ao trabalho de saber quem foi o cara derrotado por você... – encarou Saga com certa repugnância e pegou pratos e talheres – Além do mais, você não manda em mim. Mesmo sendo meu irmão mais velho, ou sendo o cavaleiro de Gêmeos, você definitivamente não manda em mim. – sorriu debochado e imitou o irmão – Sim Kanon... Se quiser pode aparecer no meu Santuário e contar a todos que somos irmãos. Hermes não está mais aqui para forçar você ou à mim a ficarmos calados. Eu deixo! Eu, o grandioso e poderoso, Saga de Gêmeos, permito que você, Kanon vá para o meu Santuário! Aliás, também permito que jante comigo. Veja quantas honrarias eu lhe concedo. Erga as mãos à Atena e agradeça a deusa!

Saga revirou os olhos e serviu-se da salada.

-Não seja ridículo Kanon. Eu não disse e nem pensei em nada disso. Ao invés de se sentir tão coitadinho, você deveria jantar logo antes que essa porcaria que eu fiz perca totalmente o sabor.

Os olhos de Kanon esquadrinharam o rosto exausto e contido do irmão. Sentiu-se invadido pela nostálgica lembrança dos tempos em que não tinham obrigações, cuja única obrigação era fugir dos treinos e se esconder do mestre.

Ele sabia que no fundo, Saga se esforçava muito para parecer bem, para não magoar seus sentimentos, para respeitar sua derrota, para tratá-lo como sempre. Para o irmão, a armadura nada mais era que uma conseqüência, nada muito importante. Ou pelo menos era isso que queria aparentar. Entretanto para Kanon, aquela atitude bondosa, respeitável e modesta de Saga o tirava do sério. Apenas aumentava sua vontade de torturá-lo, incriminá-lo e ser mais e mais sarcástico e ácido.

Saga sempre foi assim, impecável. Irrepreensível. Perfeito, embora tivesse inúmeras imperfeições. Saga sempre foi assim, mas antes nada disso o incomodava. Entretanto, agora, Kanon julgava as atitudes responsáveis, impecáveis e perfeitas do irmão um verdadeiro fardo.

Será que no fundo, tudo que queria era chamar a atenção do irmão? Tudo o que queria era que Saga o humilhasse? Tudo o que queria era ver a alegria incontrolável e não calculada do irmão, esfregando a armadura em sua cara diariamente? Ele percebeu que Saga não trazia mais a armadura para casa. Agora, nem admirá-la ao longe como fazia com o mestre poderia. Até isso Saga queria privá-lo? Saga se esforçava tanto para não magoá-lo, tanto para não esnobá-lo... Será que Saga não percebia que essa preocupação só o magoava e fomentava seu despeito e sua sensação de inferioridade perante ele?

Kanon sentiu que sua análise estava prejudicada pela fome ou por qualquer outra coisa que não conseguiu identificar. Acabou rendido por aquelas coisas verdinhas que caíram em seu prato.

-Então vamos jantar antes que essa salada pareça pior do que realmente está. – começou a comer a salada, distraído e cansado.

O silêncio instalara-se totalmente na mesa sendo quebrado somente pela mastigação de ambos. Assim que terminaram o jantar vegetariano, Kanon achou um pão velho e dividiu dando uma parte para o irmão. Molhou sua parte no azeite que sobrara na travessa vazia e comeu em silêncio.

A verdade é que não se importava com a armadura. Durante todo esse tempo sem se falarem direito, Kanon lembrou que desde o princípio Hermes queria levar somente Saga para o Santuário. Por insistência do pai que ele levou ambos. Quem viu o mestre e falou com ele primeiro foi Saga, não ele. Quem queria brincar de cavaleiro era Saga, não ele. Ele apenas foi tragado nessa correnteza. Apenas queria brincar e ter as mesmas coisas que seu irmão mais velho. Era crime querer algo? Era crime querer as coisas que o irmão queria?

Na verdade, Saga era um espelho para si. Ele imitava o irmão. Mas quem não imita ninguém? Todos somos cópias de alguém, não existe originais. Educar crianças não era isso? Ações contínuas e demonstrações visíveis do que se pode ou não fazer, do certo e do errado? Não se exigia delas que imitem as atitudes certas dos adultos e ignorassem as erradas?

Os homens nada mais eram que espelhos. Todos eram espelhos e cada um refletia uma imagem para outro e outro e assim sucessivamente... Um círculo que variava, ora virtuoso, ora vicioso.

Ele olhou para seu irmão que comia o pão seco e sorriu levemente descontraído. Aquelas lembranças eram a chave de tudo.

-Nunca quis a armadura. Apenas me deixei levar pelas circunstâncias, embalado pela voz cheia de sotaque estranho do tio Hermes... Nada além disso. – pensou e tomou fôlego, disparando - Já que você tem acesso à comida do refeitório, você poderia pegar e trazê-la aqui pra gente comer. Melhor do que esse capim. Já que um de nós se deu bem, então vamos usufruir os benefícios juntos.

Saga ergueu os olhos e cruzou o olhar com o do irmão. Viu que ele parecia tranqüilo. Não saberia dizer o que Kanon pensara, mas sentia que o abismo estava para diminuir. Talvez jogando terra e mais terra, até tampar aquele enorme buraco... Seria trabalhoso, mas as pessoas só conseguem as coisas se esforçando. Ele numa ponta e Kanon na outra... Sim, talvez os dois conseguissem derrotar esse abismo.

Sorriu para Kanon, um sorriso sincero e despreocupado como há muito tempo não exibia.

-Acho que não posso fazer isso. Deve ser errado.

Kanon revirou os olhos.

-Você é muito certinho!

-Por isso você quer me tentar?

O irmão mais novo fitou Saga e começou a tirar a louça da mesa.

-Não quero te tentar Saga. – fez uma pausa e sorriu, com uma cara de quem sabia um grande segredo – Ainda não...

Saga riu da piada do irmão e Kanon o acompanhou em seu riso.

XXXXXXXXXX

Depois da noite da salada, o relacionamento entre ambos melhorou, porém vivia oscilando. Uma palavra dita de mau jeito, um olhar atravessado, alguma provocação banal e Saga já ficava na defensiva enquanto Kanon desfiava um rosário, diariamente renovado, de provocações e piadas.

Saga acabou se habituando a viver na defensiva, pisando em ovos enquanto estava próximo do irmão, mas julgava isso um incômodo. Tinha a impressão de que não mais poderia, de que não mais conseguiria ser sincero com ele e consigo mesmo.

Ficava sempre pensando nisso, enquanto vagava solitariamente pelo Santuário e os arredores. Às vezes conversava com Aiolos. Até apreciava isso, o garoto só era um ano mais novo que ele e o irmão, o que não era uma diferença tão absurda. Gostava de ouvi-lo falar sobre os treinos e comparar os mestres, mas não conseguia ser sincero com o amigo.

Intimamente culpava Hermes por isso, afinal foi ele que deixou claro que queria Kanon escondido, mantido como segredo de estado. Poderia contar tudo assim que desse na telha, mas por algum motivo desconhecido gostava do jeito como as coisas estavam. Talvez por que essa era a primeira vez na vida que realmente vivia separado do irmão.

O fato é que ninguém sabia que ele tinha um irmão e, principalmente, ninguém sabia que eles eram gêmeos. Nada de comparações, confusões ou qualquer outro possível e desagradável mal-entendido.

Agora ele era ele. Saga era Saga e ninguém mais além de Saga. Não tinha um espelho, um gêmeo, uma cópia. Era sozinho e fazia o que bem entendia, não tinha nenhum apêndice prendendo-o, imitando-o ou culpando-o.

Pensar dessa forma lhe dava a impressão de que era egoísta e desalmado, mas o garoto sentia um prazer indescritível nessa vida à parte. Analisava qual dos dois Sagas eram verdadeiros, o que vivia com Kanon ou o que passeava pelo Santuário. Gostava de seu irmão, mas estava realmente gostando dessa sensação de liberdade que jamais experimentara por todos esses anos.

Saga se sentia tão bem, tão feliz, que queria correr e gritar para todos o quanto Deus era maravilhoso e o agraciava com a dádiva de ser livre.

Cheio de amor pela vida, pela liberdade e um desejo de encontrar alguma maneira de retribuir a bondade de Atena por tê-lo escolhido como seu defensor, o jovem cavaleiro de Gêmeos saía pelo Santuário ajudando os cavaleiros ou mesmo os servos com algum serviço; brincava com as crianças, protegia garotas e matronas de homens mau-intencionados e tratava dos ferimentos e das doenças mais simples das pessoas da vila próxima dali.

Fazia tudo isso cheio de carinho e sem jamais distinguir qualquer pessoa, sem querer saber se poderiam pagá-lo; sem querer saber se eram cavaleiros, amazonas, servos ou simples camponeses; sem querer aceitar as ofertas das garotas locais que suspiravam ao vê-lo passar; sem querer, desejar ou cobiçar absolutamente nada.

Aquele modo de classificar as pessoas conforme o trabalho que exerciam, pela família à que pertenciam, pelo sexo ou idade eram simplesmente ignoradas por Saga. Ele não pensava nas convenções e realmente agia como o mestre lhe ensinara, procurando olhar além da essência, sem julgar valores absolutos, sem querer ser o dono da verdade.

Era justo. Se tratava um bem, trataria a todos igualmente. Se salvava um, salvaria a todos. Se conversava com um, conversaria com todos. Agir daquela maneira deixava Saga tranqüilo e aumentava ainda mais o desejo de fazer mais e mais coisas boas, conforme o Grande Mestre lhe falara no dia que se tornou cavaleiro.

No Santuário, Saga virou foco da atenção dos cavaleiros e amazonas dali não somente pela sua bondade, mas também por sua força. Seus golpes eram elegantes e precisos, sua cosmo-energia resplandecia por todo o lugar.

Fora isso, certo dia nas Arenas, o garoto deixou a todos deslumbrados diante do inusitado brilho da "Explosão Galáctica", golpe que Aquiles, antigo cavaleiro de Sagitário e mestre de Aiolos, jurava que não fazia parte das lições de Hermes. Se Hermes não o ensinara, então Saga criou o próprio golpe e isso elevou ainda mais a sua categoria de prodígio.

Logo, tanto no vilarejo quanto no Santuário, Saga de Gêmeos tornou-se o principal assunto de todos. As pessoas estavam pasmas diante de um garoto assim. Mesmo sendo jovem já era cavaleiro de ouro, e era tão sério, tão impecável, tão justo...

Não se exibia por ser um cavaleiro, ao contrário, encarava sua posição no Santuário como uma graça e uma vontade de Atena. Não se superestimava por ter criado um golpe, acreditava que foi mero golpe de sorte. Não era grosseiro com os servos, os tratava como iguais. Não tentava tirar vantagem dos homens humildes e das mulheres simplórias do vilarejo. Era um verdadeiro cavaleiro. Aprendiz de Hermes de Gêmeos... Mas nem Hermes se portava tão bem. O estrangeiro tinha alguns vícios condenáveis e um passado desconhecido.

Mas seu aprendiz era perfeito. Hermes fizera um bom trabalho.

Um excelente trabalho.

Saga era simplesmente perfeito. Perfeito.

Tão perfeito quanto Deus...

Sim... Saga de Gêmeos era igual a Deus.

Finalmente Atena escolheu alguém valoroso para sua confraria.

Um garoto divino... Igual a Deus.

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Semanas se passaram e seu relacionamento com Saga ia de mal a pior, assim como seu humor. A falta do que fazer, a falta de um objetivo em sua vida, deixava Kanon irritado consigo mesmo. Se tivesse ganho a armadura sua vida seria bem diferente. Mas o que se pode fazer? Saga realmente merecia ser o cavaleiro de Gêmeos...Ele tinha sido o escolhido de Hermes desde o princípio.

Ao aplacar seu inconformismo, Kanon saiu de casa. Seus dias eram recheados de tédio e fome. Passava dias inteiros sem fazer nada. Leu e releu os livros que o mestre deixara para trás, limpou a casa, mudou móveis de lugar, empenhou seu espírito a fazer qualquer atividade que lhe distraísse. Resolveu ir até o vilarejo e comprar alguma comida em troca de ajuda na colheita dos moradores.

Assim que adentrou a vila um grupo de menininhos correu até ele, mas Kanon os ignorou.

-Saga, vem brincar com a gente! É esconde-esconde!

-Você tá nos devendo! Ontem você ajudou o pai da Maria e nem falou com a gente!

O rapaz encarou os meninos e ficou parado, por alguns instantes, tentando entender o que acontecia quando uma idosa se aproximou dele, encurvada.

-Cavaleiro de Gêmeos! Que bom que veio hoje! Poderia me ajudar? Aquele ungüento que você fez naquele dia melhorou e muito meu reumatismo... Poderia fazer de novo?

Antes que pudesse responder qualquer coisa para se explicar e desfazer o mal-entendido, Kanon viu que todos do lugar estavam em volta dele, tratando-o como Saga ou como cavaleiro de Gêmeos, pedindo ajuda; agradecendo algum favor; querendo sua atenção.

Obviamente eles conheciam Saga e o confundiram com ele. Saga, seu irmão, tornou-se herói daquela gente. Ouviu algumas pessoas lhe chamarem de Deus. Viu outras se benzendo e inúmeras mãos tentando tocá-lo nos ombros ou pegar em suas mãos, e quando conseguiam tal proeza afastavam-se reverentes como se tivessem sido abençoadas por um santo.

No meio da confusão, Kanon distinguia algumas vozes no meio da multidão.

-... Atena escolheu muito bem ao admiti-lo para sua elite. O cavaleiro de Gêmeos é o melhor homem do mundo...

-... o mais justo e gentil! – exclamou um comerciante

-O mais forte! Além de perfeito! Suas atitudes são irrepreensíveis...

-Ele é lindo! A mulher que ele amar será tão abençoada! Ai, ai... – suspirou uma jovem, olhando-o languidamente.

-... e então, ouvi dizer que o golpe dele faz todo o Santuário brilhar...

-Ele tem um poder enorme... O brilho que emana de seu cosmo empalidece o sol, a lua e as estrelas! É a mais pura verdade! Ouvi isso de um guarda do Santuário! E ele...

-... e só tem 15 anos! Tão jovem e tão responsável! É um prodígio! Atena realmente...

-... uma serva direta do Grande Mestre me garantiu que ele vai virar o novo Grande Mestre do Santuário!

-... mas é claro que é uma sábia decisão! Saga é justo e compreensivo. Será perfeito como Grande Mestre!

-O Grande Mestre pode descansar em paz agora que Saga está no Santuário!

-... ele transmite tanta paz em seu olhar. São olhos tão puros, tão azuis... Dá pra sentir que somos abençoados só dele pousar os olhos em cada um de nós.

-Sim... Deus existe e Saga de Gêmeos é igual à Ele! É a personificação D'Ele!

Kanon encarou a todos e sentiu um ímpeto de gritar, correr pra longe daquela seita de adoradores de seu irmão, de sumir, de ir para qualquer lugar onde ninguém soubesse da existência de seu irmão mais velho.

Como se estivesse anestesiado, o garoto abriu caminho no meio do grupo e fez o caminho de volta. Sentiu que tudo que acontecia não era com ele, o que de certa forma era verdade. Vislumbrou acenos, viu as crianças o acompanharem até a saída da vila, os adultos berrando despedidas e desejando boa sorte.

Ficou um longo tempo calado e pensativo, olhos fixos nos próprios pés, caminhando em linha reta, mas distanciando-se consideravelmente de sua casa.

Saga era amado, querido e venerado. Era o cavaleiro de Gêmeos. O bondoso e justo cavaleiro de Gêmeos. Um cara lindo e abençoado cujas garotas suspiravam. Um garoto forte e promissor, tão responsável, tão forte! Dono de um golpe que empalidece os astros. Saga brinca com crianças e cuida de velhinhas reumáticas. As pessoas o reverenciam por onde ele passa. Atena tem muita sorte por ele fazer parte da sua elite de ouro. As pessoas se sentem abençoadas só por estar diante dos olhos dele ou apenas por tocá-lo.

Saga é a personificação de Deus.

Sem que pudesse conter ou simplesmente ignorar, tentando amenizar com pensamentos conformados, Kanon explodiu, exasperado. Ele extravasou de uma só vez uma cosmo-energia assoladora que se espalhou como uma bomba, atingindo tudo ao redor.

-SAGA NÃO É DEUS! SAGA É TÃO HUMANO QUANTO EU! ELE NÃO PERSONIFICA NADA! ELE ERRA TANTO QUANTO EU! NOSSO MESTRE O REPREENDIA SEMPRE! ELE NÃO É PERFEITO! SAGA NÃO TEM NADA DE ABENÇOADO! ATENA NÃO TEM SORTE ALGUMA POR TER ELE COMO CAVALEIRO! AQUELA ARMADURA ERA PRA SER MINHA! COM QUE DIREITO SAGA A ROUBOU DE MIM? SÓ POR QUE É CERTINHO, PERFEITINHO?! EU SOU IGUAL À ELE! TÃO IGUAL QUE TODOS NOS CONFUNDEM! EU TAMBÉM SOU LINDO E POSSO TORNAR QUALQUER UMA NUMA CRIATURA ABENÇOADA EM INSTANTES! EU TAMBÉM SEI FAZER ESSES UNGUENTOS RIDÍCULOS! EU TAMBÉM POSSO BRINCAR COM CRIANÇAS! EU POSSO REPRODUZIR O MESMO GOLPE QUE EMPALIDECE OS ASTROS! COM QUE DIREITO SAGA PODE VIRAR DEUS?!

O garoto caiu de joelhos no chão de terra. Sentia o coração bater aos pulos, a respiração descompassada e o gosto salgado de lágrimas. Passou a língua em volta da boca e as sorveu, mordendo o lábio inferior em seguida até sentir gosto de sangue.

-Saga... Você me tirou tudo que tenho, tudo que eu quis... Por todos esses anos me enganou, me usou... Hoje em dia eu percebo como fui tolo por cair em seus truques. Você nunca se importou comigo ou com o nosso laço fraterno. A única coisa que você queria era a armadura e a reverência de todos. Você me fez sentir mal e culpado, quando eu me surpreendia desejando a armadura. Eu fiquei vários meses tentando me conformar, tentando me lembrar das palavras de Hermes e do acordo entre ele e nossos pais. Tudo mentira... Tudo para me conformar e para tentar manter a nossa amizade, já que você é o único parente que me restou...

Kanon se levantou, passou a mão pela franja, desgrudando-a da testa e fitou o céu, num misto de decepção e ódio.

-É... Chega de mentiras Saga. Você pode ter me enganado, mas não vou deixar você enganar essa gente. Nem esse povinho da vila ou as pessoas do Santuário. Chegou a hora de você mostrar sua verdadeira face... Sua falsidade, sua falta de escrúpulos, sua indiferença perante os sentimentos alheios... Você não é Deus, Saga, meu irmão... Você é o próprio Mal e eu vou provar isso para todos.

O garoto se afastou decidido, estava disposto a ir até o fim no seu novo objetivo.

XXXXXXXXXX

Fiando, fiando sem parar, as Moiras continuavam a fiar sem cessar. A Trama do Destino nem mesmo chegara ao seu meio, ainda era apenas o começo de algo mais grandioso e respeitável.

Lachesis examinava alguns fios e distribuía-lhes funções variadas, tudo com o objetivo de adornar a tapeçaria. Seus olhos perspicazes viram que tal qual a profecia que fizeram, o fio rubro, o derrotado, começara a desviar seu caminho conforme sua irmã Clotho fiava incansavelmente.

-A profecia está se cumprindo... – murmurou a mulher.

Átropos exibiu um sorriso desdenhoso e anuiu de seu lugar.

-É como eu sempre digo, irmã... É o Destino. Ninguém escapa dele.

Notas:

"Deplorável", em francês.

"Com licença, desculpe", em francês.

"Boa tarde", em alemão.

"Ajoelhe-se, garotinho", primeiro alemão e depois francês.

"Razão de ser, de existir", em francês.

"Minha querida", em francês.

Confissões da autora empolgada (e com dúvidas cruéis )

Nossa! Kurumada manja de mitologia, mas de matemática não saca nada! XD Vamos à matemática de CDZ:

-Shion tem 200 e cacetadas.

-Saga se torna cavaleiro e zoa o Santuário aos 15 aninhos, em 1973.

-A diferença de idade entre Saga e Mu é de 8 anos.

-Logo, Mu tinha 7 anos quando Saga finalmente mandou Shion pro além XDDD (o vovô se atrasou pra pegar o trem da morte XD)

-Mas Mu foi treinado por Shion...

Agora alguém me diz (pensa rápido! XD): Com quantos anos Mu foi treinado? Entre 4 e 5 anos?! oO""" (dúvidas cruéis XD)

Isso é absurdo, mesmo num universo de cosmo-energia! Ù.u

Outro absurdo que eu mantive (e até arranjei uma "explicação" para isso) é o fato de ninguém (eu disse NINGUÉM) conhecer a existência dos gêmeos! XD

Kurumada cabulou as aulas de Matemática, fumou e bebeu todas e daí nasceu cdz! XD Salve Kuru-Kuru XD De qualquer maneira, estou amando por os pingos nos "is" que faltam na vida do Saga XD

Fiquei chateada... O mestre do Saguinha morreu TT Eu gosto tanto do Hermes ú.u Imagino que os leitores da fic vão amar, soltar fogos e etc, afinal não vai mais rolar salada de línguas, mas ah... ú.u

Mas enfim... Vou fazer uma side dele com a Cora!! XD Já tenho escrito faz praticamente 2 anos e vou lançar logo XD Por isso leitores, peço que a acompanhem É só eu lançar um capítulo de outra fic que eu faço e daí lanço essa XD

Me prolonguei demais por hoje... Vou indo XD

Bjao pra todos Pra Flávia-Shunrei e pra Akane Kittsune, fã de casais coadjuvantes XD (Hermes e Cora agradecem a preferência XD)

Até a próxima XD