Luz Embaixo D'Água por Maya

Capítulo 1

Quero que a Minha Vida Faça Mais Sentido

This road is crooked, cracked and wrong

They've got the odds stacked nice and high

I don't know how they got along

Me, I just internalise.

Harry pensou nele mesmo enquanto entrava na água. Ou... talvez não.

Ele pensou na pessoa que ele via refletida nos olhos dos outros.

Harry Potter.

O Menino que Viveu.

O menino cuja miraculosa derrota sobre Voldemort tornara-se absolutamente fútil, pois ele havia sido incapaz de impedir sua ressureição. Porque ele havia sido uma parte vital do seu retorno, mais poderoso que nunca.

O menino que havia sido quase idolatrado, mas não conseguira ao menos salvar seu colega de escola.

Apenas outra criança desamparada, mas que denotava mais problemas pois Voldemort o queria morto, e ele não tinha ninguém que cuidasse dele.

Harry Potter, o menino que falhou.

Aquele com quem todos eram tão legais. Aquele de quem todos tinham pena.

Era como... ser o herói de uma história, por quatro anos, e de repente voltar a ser um mero espectador. Um incômodo insignificante, enquanto a gélida guerra cinzenta girava como um turbilhão pelas janelas de Hogwarts.

Todos tinham uma expressão cansada, tensa, no rosto que logo transformavam num sorriso falso quando Harry passava. Agora ele podia ouvir seus pensamentos: pobre, ferido Harry, nós não podemos fazê-lo sentir-se mal...

Como se ele ainda fosse aquela criança.

Havia sido assim por três anos, e niguém havia desistido um pingo sequer de sua incessante labuta em tentar fazer Harry se sentir melhor.

A pena é algo tão sem remorso, tão esmagadora... algo que você oferece quando vê algo fraco, mas não tem a energia para sentir desprezo. Algo tão longe do amor.

A pressão daqueles olhares comiserados empurrava-o contra os cantos, para o fundo das classes, pra baixo das suas cobertas na cama.

Qualquer lugar onde não houvessem cartões de Dia dos Namorados que todos mandavam, todos imitações do tributo de Ginny Weasley no segundo ano. Jogos de Quidditch onde Ravenclaws e Hufflepuffs pareciam perder de propósito, para que Harry pudesse ter sua vitória, extasiado como no terceiro ano.

Harry tornara-se quase resignado. Se eles queriam fazer algo por ele, para que impedi-los? Era tudo... inevitável, e inteiramente inútil.

E agora isso.

A indignidade final, o último gesto insultoso contra a criatura patética e ferida.

O Triwizard Tournament, três anos depois.

Deixa o Harry se recuperar, deixa ele ganhar, deixa ele ver que nada de mal aconteceu; nós podemos todos bater palmas e o órfão ficará feliz. Não vai ser ótimo?

Ele quase jogou tudo na cara deles, aquelas terríveis caras piedosas.

Mas no fim ele cedeu, como sempre.

Se aquele era o preço, se eles precisavam convencer-se de que ele havia se recuperado da ressureição de Voldemort para poderem continuar com suas vidas... então que fosse.

Harry amava alguns deles. Queria deixá-los contentes.

Então ele voou com sua Firebolt de encontro ao Dragão. Aceitou o convite de Parvati Patil para o baile e dançou com ela até o momento em que ela flutuara de volta para o namorado, Dean Thomas. (Daí ele havia tomado um pouco da água que Seamus Finnigan havia transfigurado em rum, apenas o bastante para dar-lhe o alívio do entorpecimento, mas não o suficiente para preocupar alguém.)

Harry lembrava-se do baile claramente, o calor e a luz no salão sobrepujando-o. Ele havia sentido náusea e tonteira no decorrer da noite, tentando sorrir para todos que passavam por ele. Recebendo os sorrisos de Hagrid e sua esposa, Dumbledore, Hermione e Ron, como se não fossem forçados.

Finalmente um nevoeiro cercara-o, as luzes ofuscantes misturando-se aos cabelos das pessoas. Era como uma luz forte direcionada a uma pintura ainda molhada, e a tinta escorria, cores mudando e embaralhando-se.

As figuras de Hermione e Ron dançando tornaram-se uma só mancha. Os olhos azuis de Dumbledore derreteram-se de encontro ao céu no teto do salão. Os cabelos negros de Padma Patil de repende correram como um rio pelo salão para formar intercessões com o gritante branco-loiro de Malfoy, que estava sentado na mesa Slytherin, embriagando-se sistematicamente.

Um pesadelo. Harry no fim deitou a cabeça sobre os braços, um desespero urgente tomando-o lentamente, e fingiu estar apenas cansado.

A segunda tarefa não seria nada comparada a isso.

Ele havia ido ao banheiro dos monitores, legitimamente dessa vez pois é claro, ele era um deles. Como poderia o pobre Harry não ser monitor? Ele havia desvendado a pista.

Havia achado a Gillyweed cuidadosamente colocada sobre seu travesseiro pelo leal Dobby, ainda fingindo uma devoção que há muito devia ter desaparecido.

Deus, ele estava agradecido pelo frescor da água agora, o verde impenetrável fluindo à sua volta, absorvendo-o e protegendo-o dos olhares. Ele quase desejou poder ficar ali para sempre.

E se ele ficasse? Pensou Harry de repente. Ele sabia que a Gillyweed podia ser dissipada com um pensamento. Ele podia deixar-se afundar até o profundo e seus pulmões explodiriam com o esforço da respiração. Então não haveria nada além de silêncio e água deslizando para sempre.

Mas pensou em como todos se sentiriam... e como ele iria provar que estavam certos. Ele se tornaria aquela criança fraca que eles o acreditavam ser, incapaz de agüentar a pressão.

Harry nunca havia sido do tipo que escolhe as saídas fáceis. Até nesse momento, ele podia lutar. Até nesse momento, ele queria lutar.

Ele tinha que encontrar Ron, então. Encontrar Ron, e esperar ao lado de todos os reféns, e ganhar pontos e elogios por sua valentia.

Encontrar Ron.

Harry nadou pelas águas que o cercavam, indiferente a todos os perigos que não conseguiam tocá-lo. Nadou agradecido, sentindo os afagos da água contra o seu corpo cansado.

Nadou até encontrar o lugar onde os sereianos viviam, onde os reféns estavam amarrados, seus olhos fatigados procurando pelo vermelho vivo dos cabelos de Ron.

Foi quando algo adentrou seu peito e torceu seu coração como se fosse uma chave de portal, virando o centro do seu ser e transportando-o para outro mundo, muito mais assustador e imediato.

Ele olhou em pânico para o verde vazio do lago, e desperadamente para os rostos desconhecidos dos reféns. Parecia que a Gillyweed não havia funcionado e ele estava se afogando, nessecitado de oxigênio e com a vista falhando, recusando-se a ver o que estava à sua frente.

Ele não pôde evitar ver.

Ali no lago, as águas enraivecidas emprestando reflexões como luz através de um vidro turquesa ao seu rosto pálido, mechas do cabelo cor de prata boiando nas correntes preguiçosas, estava Draco Malfoy.

Harry esqueceu-se completamente da Gillyweed, engasgando-se com a água, debatendo-se em pânico, convencido de que estava se afogando.

Ele não conseguia respirar.

Mais tarde, ele percebeu que havia entrado em estado de choque.

Meio sem jeito, ainda engolindo água, ele debatia-se em uma tentativa inútil de colocar a cabeça entre os joelhos. Ele havia ouvido falar que era bom para... para...

Deus, o que estava acontecendo?

Malfoy recusava-se a ir embora. Ele permaneceu amarrado à rocha, seus cabelos descrevendo desenhos prateados contra o verde. Era como se o lago houvesse sofrido uma invasão hostil por Slytherins.

Poderia ser alguma piada? Não, Dumbledore mataria Malfoy se ele tentasse algo do tipo.

Devia ter havido algum erro, Harry decidiu. Ou talvez o enigma houvesse sido vítima de artimanha diabólica, passando a significar ter que resgatar seu pior inimigo.

Deus, eu preciso saber!

Harry tinha consciência do papel que devia atuar. Era para ele chegar aos reféns primeiro, e depois ficar para trás esperando pelos outros competidores. Era isso que o heróico Harry fazia.

E de repente, ele não pôde mais agüentar aquilo.

Eu estou cheio dessa merda!

Eu preciso saber.

Harry partiu as cordas que prendiam Malfoy. Ele iria levar seu refém, e descobrir que diabos estava acontecendo!

Ele não era mais uma criança estúpida. E se houvesse a possibilidade dos reféns morrerem, ele teria considerado abandonar Malfoy ali.

Não havia sido tão difícil segurar Ron. É claro, havia sido menos desconfortável tocar em Ron.

Ele decidiu-se por envolver Malfoy pela cintura com uma mão, agradecendo a Deus que o garoto era magro.

Um aspecto positivo de Malfoy? Alertem o Ministério.

Harry assumiu uma expressão impassível no rosto, tentando minimizar o pânico que queria agarrar as pessoas pelos colarinhos, exigindo uma explicação. Ele inspirou água profundamente algumas vezes.

Então ele surgiu para a luz.

Claridade à sua frente. Simplicidade.

Nesse momento, Harry não se preocupou com o que os outros iriam pensar. Ele queria razões, e as queria agora.

Ele deslizou através da superfície do lago, inspirando o ar calmante.

O céu logo acima era lindo, de um azul simples, acalmando o tumulto no cérebro de Harry. Ele desejou que a Gillyweed se dissipasse e começou a nadar levemente, facilmente, de encontro à costa.

Foi aí que Malfoy abriu os olhos e deu um grito abafado, seguido de uma tentativa de estrangular Harry.

Harry resfolegou surpreso, e não teve tempo para mais nada.

Eles afundaram, Harry lutando para voltar à superfície, o corpo contorcendo-se e as vestes se movendo como um vagalhão na água.

No meio da névoa verde e do material negro, Harry viu rapidamente o rosto angular e pálido de Malfoy, as feições deformadas pelo medo, os olhos cinzentos arregalados de medo.

Ele reconheceu aquela expressão da reflexão de seu próprio espelho, lavando o rosto depois de um pesadelo.

Ele sabia lidar com isso.

Harry agarrou Malfoy pelos ombros, e moveu os lábios tentando falar distintamente:

- Pára com isso, ou você vai se afogar!

Malfoy piscou. Embaixo d'água, cheio de medo, ele parecia mais jovem do que quando tinha onze anos.

Vagarosamente ele fez que sim com a cabeça, os cabelos dançando em volta de seu rosto como uma coroa de prata.

Harry segurou-o com mais força e tentou mantê-lo à tona, enquanto eles voltavam à superfície.

Seu corpo inteiro estava tenso com o terror.

- Ok, Malfoy, respira. Ei, está tudo bem - disse Harry Potter, Louco Por Pessoas em Perigo e completamente enojado de si mesmo, por ser tão capacho.

- Tudo bem?! - explodiu Malfoy, vencedor do prêmio "Babaca Total de Hogwarts" pelo sétimo ano seguido - Eu esto ensopado num lago, me segurando a um completo idiota e tentando não ficar histérico! Como isso se qualifica como "tudo bem"?

- Cala a boca e eu te tiro do lago.

- E por que eu estou no lago, Potter? - perguntou Malfoy em seus tons mais imperiais.

- Eu não sei! - gritou Harry exasperado - Eu tinha a esperança de que você fosse me contar!

- Como é que eu vou saber? Dumbledore mandou me chamar, daí eu fui pro escritório dele e de repente estava inconsciente!

- Não houve explicação?

Malfoy tornou-se irrequieto, uma expressão que era comum ao rosto dele.

- Bem - ele tentou ganhar tempo - Pode ser que tenha havido.

- O quê?

- Eu não consegui ouvir, tá? - retrucou Malfoy agressivo - Eu cheguei atrasado. Malfoys não saem correndo para o escritório do Diretor imediatamente. Malfoys chegam atrasados, com estilo.

Sua voz insolente falhou por um segundo enquanto ele olhava abaixo, para os desdobramentos da água, e Harry abrandou-se um pouco. Podia ser que ele estivesse sendo um chato porque estava assustado.

Nesse caso, é claro, ele devia ter sentido um terror paralisante durante todos os seus dias de escola.

- Eu não sabia que você tinha medo de água, Malfoy.

- Não vejo nós dois trocando figurinhas sobre os nossos sentimentos com muita freqüência, Potter. E todo mundo tem fobias - a voz de Malfoy tornou-se maliciosa - Eu me lembro de uma certa pessoa desmaiando toda vez que via um Dementor...

- Cale-se nesse instante Malfoy! Eu devia ter te deixado amarrado com os outros reféns.

- Reféns?

Harry retraiu-se e teve a impressão de que suas orelhas sangravam.

- É - ele respondeu cuidadoso, esperando não provocar outro escândalo.

- O que você quer dizer... o Triwizard Tournament?

- Não Malfoy, eu quero dizer que bandidos seqüestraram metade da escola. Sim, o Torneio!

- Mas... porra, como?

- É óbvio que houve um terrível engano - disse Harry.

- Como o seu nascimento? - foi a sugestão oferecida por Malfoy.

- E assim que eu conseguir falar com o Professor Dumbledore eu tenho certeza que...

- E aproximando-se agora, acredito, é o campeão de Hogwarts, Harry Potter!

Lee Jordan, amigo dos gêmeos e antigo comentador de Quidditch, havia se tornado um surpreendente sucesso no Ministério e tomado o lugar de Bagman como chefe do Departamento de Jogos e Esportes Mágicos. Rumores diziam que Percy Weasley estava morrendo de inveja.

Rumores também diziam que Jordan era meio crasso quando o negócio era o microfone, apesar de ele ficar dando olhares paranóicos para trás sempre que Mcgonagall estava por perto.

Agora, Harry queria que McGonagall o repreendesse.

- A escola inteira está em estado de suspense febril, querendo descobrir a identidade do refém de Harry, visto que seus melhores amigos, Hermione Granger e Ron Weasley estão ambos na platéia. Todos enlouquecidos para descobrir quem é a garota de sorte...

Naquele exato momento, Malfoy produziu um ruído que sugeriu asfixia.

Harry compreendeu que estava nadando desajeitadamente de encontro à margem com Draco Malfoy, um nos braços do outro, a cabeça de Malfoy praticamente em seu ombro, os dois completamente encharcados.

Na frente da escola inteira.

- Pa... parece que... - a voz fraca de Lee Jordan foi se desmaterializando até ele soltar um débil - Ora, Deus meu!

Hogwarts inteira encarou-os por cinco estupefatos segundos, e então implodiu sob o burburinho das vozes.

- Merda - disse Harry.

Malfoy parou, fazendo considerações, e então explodiu numa impressionante chamação de nomes e obscenidades.

Apenas Madame Pomfrey parecia não estar paralisada. Ela os assediou assim que eles pisaram em terra.

- Realmente, esse Torneio estúpido - ela disse fazendo estardalhaço - Afundando crianças delicadas nesse horrendo lago gelado...

- Eu não sou delicado! - disseram Harry e Malfoy ao mesmo tempo.

Harry olhou para Malfoy com certa surpresa.

- É claro que não é, Draco - disse Madame Pomfrey tentando apaziguá-lo - Olhe pra você. Não consegue nem ficar em pé direito, parece que vai vomitar.

- Eu teria vomitado se Potter estivesse usando sunga - murmurou Malfoy, soltando-se irritadamente de Harry, conseguindo ficar em pé apenas com a pura força da teimosia.

Harry agarrou-o de novo quando ele ameaçou cair.

Malfoy fez uma careta e Madame Pomfrey arrastou-o, tão facilmente quanto se estivesse carregando Gabrielle Delacour.

- Tsc - ela fez - No que o Diretor estava pensando? Você vai acabar entrando em choque daqui a pouco.

- Não vou não... - brigou Malfoy, que ainda parecia menos seguro do que o normal, enquanto lutava com Madame Pomfrey. Ele parecia doente e seus cabelos estavam cobrindo seu rosto.

Ele olhou através das mechas pesadas de água e seus olhos se arregalaram quando Madame Pomfrey disse vigorosamente:

- Temos que nos livrar dessas roupas molhadas imediatamente - e ela puxou as vestes de Malfoy pela cabeça.

Enfermeira tira a roupa de estudante!

Foi outra sensação espalhando-se pela escola.

Harry foi o primeiro a reparar que Malfoy estava usando um conjunto inteiro de roupas Muggle por baixo das vestes.

Ele agradeceu a Deus. Harry estava traumatizado o bastante para um dia só, embora ele nunca fosse adivinhar que Malfoy havia aderido à moda de usar roupas Muggle que se espalhara em Hogwarts.

É claro, ele nunca havia pensado sobre o que Malfoy usava embaixo das vestes.

Madame Pomfrey não compartilhou do alívio de Harry.

- Coisas ridículas vocês crianças andam usando - ela comentou, agarrando a beira do suéter de Malfoy.

Ela havia levantado um palmo, revelando o brilho da pele branca, quando Malfoy interveio, veemente.

- Ninguém vai tirar foto minha sem camisa! - ele exclamou - Pelo menos não sem uma remuneração substancial - ele adicionou pensando melhor.

- Fot... - a atenção de Harry finalmente se desprendeu do espetáculo que eram Malfoy e Madame Pomfrey para se ligar na gangue de fotógrafos caindo sobre eles.

- Ai, Deus.

De trás dele, ele ouviu Malfoy começar novamente com os impropérios, intercalando-os com exigências por um cobertor.

Vozes cercaram Harry por todos os lados.

- Harry, você pode nos dizer...

- Harry, como você se sente estando na frente?

- Harry, aquele não é Draco Malfoy?

- ... o filho envolvido naquela tragédia...

- Aqui está o seu cobertor, Sr Malfoy, e deixe-me dizer que nunca ouvi linguagem pior vinda de um estudante na minha vida!

- Cobertor de imitação de lã...

Harry estava cego com os flashes das câmeras, mas ele podia adivinhar qual discurso havia sido de Madame Pomfrey.

E é claro, não havia como confundir o balbucio frio de Malfoy.

Harry piscou na direção das luzes doloridas, cercado pelos cliques das câmeras à sua volta, enquanto Madame Pomfrey enrolava um cobertor apertado à sua volta. Harry sentiu o peso daqueles olhares sobre ele novamente, aqueles olhares pensativos, com pena, cheios de expectativa, reduzindo-o àquele menino pequeno, confuso...

- Oh, não questionem o pobre órfão ferido - zombou Malfoy - Ele tem dificuldades em formar frases coerentes até nos seus melhores dias.

Harry endireitou as costas e lançou um olhar venenoso na direção de Malfoy.

- Harry, você poderia explicar... - disse uma fotógrafa mais isolada.

Harry concentrou-se nela.

- Não, eu não posso - ele disse numa voz forte e clara - Me parece que houve algum engano quanto ao meu refém. Tenho certeza de que o Professor Dumbledore terá uma boa explicação, e eu pretendo questioná-lo assim que for possível...

- Não consigo pensar em nenhuma outra explicação além do óbvio - disse Dumbledore calmamente.

Harry sentia afeição considerável pelo excêntrico Diretor. Ele tinha certeza de que o sentimento era mútuo. O respeito que ele sentia pelo outro havia sempre, em alguma medida, forçado-o a se comportar.

Todavia, agora ele estava tendo um ataque.

- Como assim, não consegue... ? Como é que os reféns são escolhidos? - Harry gritou - É você que escolhe? Como é que funciona? Quem cometeu o erro?

Dumbledore, impassivo diante do rosto arrebatado do menino, comeu um sorvete de limão.

Na mente de Harry, isso foi uma leviandade sem coração.

- O Cálice de Fogo escolhe os reféns, é claro - Dumbledore disse pacientemente - Realmente, Harry, você acha que usamos um objeto de tal poder místico somente para escolher os campiões? O Cálice é uma fonte de saber oculto, eu acho que podemos confiar nele.

- Porra!

Harry nunca havia falado palavrão na frente de um professor antes.

- O Cálice não me selecionou como campeão apenas porque Crouch mexeu nele? - ele retrucou - Saber oculto, uma ova! Provavelmente Voldemort teria mais trabalho azarando um vegetal!

- Harry, sente-se e pelo menos tente se acalmar.

Dumbledore fez uma pausa e olhou para Harry com expectativa, como um sereno e velho monarca concedendo audiência a um súdito em erro.

Harry, que não percebera ter se levantado, retornou um olhar perturbado mas desafiante.

- Naturalmente desde a última... - vez que você estragou tudo, matou Cedric e ajudou no retorno do Lord das Trevas - ... infelicidade, nós colocamos forte vigia sobre o Cálice. Eu garanto, Harry, que ninguém interferiu.

Harry protestou incoerentemente, mas Dumbledore impediu-o de continuar com um gesto.

- Além disso, Harry, não consigo ver porque Voldemort faria algo assim. Se parte dos seus planos sinistros é dar um caldo em Malfoy, então nós podemos dizer que está tudo acabado.

- Mas... mas por que? - gaguejou Harry.

Dumbledore comeu outro doce.

- Eu não poderia te dizer, Harry. Eu mal conheço o Sr Malfoy, tenho pena de dizer. Eu não tenho tido tempo para me tornar familiar a todos os estudantes. Todos podem ver que ele é um rapaz hostil e infeliz, mas considerando a tragédia, quem pode culpá-lo?

Dumbledore trespassou Harry com a intensidade de um olhar.

- Tenho certeza de que você conhece-o melhor? Sob a luz das recentes evidências...

- Não! - Harry quase gritou - Eu não o conheço, quer dizer... bem, obviamente... eu não sei nada sobre ele. Quer dizer, eu o odeio, absolutamente o desprezo, acho que ele é...

- Se puder evitar socar a minha mesa, por favor. Parece-me - observou Dumbledore placidamente - que esse ódio é um tanto excessivo. Nós todos temos um inimigo em comum, não? O Sr Malfoy está do nosso lado.

As mãos de Harry se fecharam em punhos.

- De qualquer forma, Harry... eu não tenho as suas respostas - Dumbledore suspirou - Parecem haver menos e menos respostas esses dias. Eu estou um pouco ocupado, se você fizer a gentileza...

Harry olhou para o rosto de Dumbledore, mais cansado e enrugado do que ele se lembrava, e sentiu seu pânico egoísta entrar em colapso ao seu redor.

Dumbledore estava mantendo o mundo mágico - deprimido pela guerra - unido. Todos sabiam que Fudge era uma ostra com a cabeça enfiada na areia, todos sabiam sobre os desaparecimentos, todos estavam tão assustados... Dumbledore era a única coisa se impondo entre os bruxos e o caos.

E - Harry percebeu com dor no coração - Dumbledore era um homem muito velho.

- Des... desculpe-me, senhor - sua voz era um sussurro - Se tem algo que eu possa fazer...

- Oh, não, Harry, não se preocupe com isso.

E acabou. Harry Potter sempre tinha que ser a criança protegida. Harry Potter sempre tinha que ser parte do problema.

Os ombros de Harry vergaram-se.

- Está bem. Obrigado, senhor.

O que mais ele podia dizer ou fazer?

- Mais uma coisa, Harry.

Harry parou antes do pórtico.

- Lembre-se das palavras exatas do enigma.

Pondere sobre isso...

A porta se fechou na cara de Harry, deixando-o de frente para a escuridão.

Nós tiramos o que mais vai lhe fazer falta.

Ele não conseguia entender. Mas ele iria ponderar sobre isso.