PERSOCONTO Nº1

Por Alexander Lancaster

Inoshiro Ryou é uma vítima desses tempos bicudos. Como todo adolescente japonês que não conseguia expressar seus sentimentos e se sentia reprimido, começou a construir um mundo de fantasias. Quanto mais os obstáculos na vida real se tornaram assustadores, mais se refugiou nessa vida. Então começou a consumir pornografia. Muita. Em seus tempos de faculdade de desenho industrial, começou a ganhar dinheiro com seu hobby de gosto questionável - que em decorrência do desinteresse das mulheres ao seu redor pela sua figura rotunda, se tornou mais e mais onipresente em sua vida - e fez seus primeiros fanzines na área "C" do Comicket, o maior evento do gênero do Japão.

Vendeu como água. Descobriu algo que todo mundo já sabia: como ser humano era um desastre, mas como vendedor de fantasias reprimidas era um gênio. E enquanto sua faculdade era mais e mais empurrada com a barriga, mais os seus fanzines vendiam bem. Formado, foi empregado em um cargo menor dentro de sua área, tedioso o suficiente para que nem mesmo os limpa-trilhos da ascensão meritocrática das empresas o quisessem como degrau, mas necessário o suficiente para que não o demitissem nunca. O que foi providencial, quando seus fanzines deixaram de vender bem.

Não que ele tivesse perdido o toque. A culpa era do mundo ao redor. Quando ele estava na faculdade, se tornou moda entre as crianças pequenas bonecas em forma humana usadas em competições robóticas de luta-livre. Talvez por isso ele não tivesse se dado conta do que estava acontecendo até que fosse tarde demais: vieram as primeiras Persocoms, real dolls com sistemas de inteligência artificial interativa. A cada novo upload, elas se tornavam mais e mais parecidas com um ser humano, exceto pelas "orelhinhas" que nem eram tão necessárias assim em termos de espaço - mas eram uma orientação presente dos fabricantes. Algo deveria lembrar aos consumidores que persocons não eram humanos, para evitar a paranóia da "síndrome de frankenstein" - a crença de que os robôs poderiam se voltar contra seus amos.

Persocons num primeiro momento tinham custos proibitivos. No entanto, a fabricação em massa fez com que esses custos baixassem e rapidamente eles se tornaram comuns entre a classe média. Bonitos, educados, perfeitos, adaptivos à personalidade de seus amos, eles passaram a ser feitos das mais exóticas formas possíveis sob preços especiais. E por fim, a própria pornografia perdeu a força. Mulheres com dois sexos, tentáculos, pedofilia, bissexualismo - tudo se tornou possível. E legalmente, o persocom é uma máquina de propriedade do seu dono.

Sem poder pôr suas fantasias para fora, e com ódio dos persocons que tomaram sua notoriedade até então crescente entre otakus hardcore, consumistas e tão cheios de desejos reprimidos quanto ele, Ryou se recolheu a uma vida burocrática e a uma solidão assustadora, que de início era quebrada eventualmente por alguma estudante que bronzeasse demais a pele e topasse ganhar uns trocados em sua cama para comprar aquela bolsa Gucci que suas amigas costumam ostentar. "De início" porque até isso acabou, quando as estudantes se tornaram cafetinas de suas próprias persocons. Nas horas vagas circulava em sebos e comprava, aos montes, fanzines pornôs que antes eram disputados a tapa - e agora eram vendidos a quilo, quando não se tornavam aparas de papel em gráficas.

Mas sua vida estava prestes a dar uma virada aos seus quarenta e cinco anos. Quando ele chegou em casa após um dia monótono no trabalho - como todos os seus dias costumavam ser - encontrou uma carta inesperada. Com timbre governamental.

Teve uma dispensa especial do trabalho neste dia. Apareceu num dos edifícios no Secretariado da Imagem Pública do Japão. O secretariado foi criado como um apoio extra ao Ministério das relações exteriores, quando se tornou imperativo vender para o mundo produtos de consumo cultural para manter a economia do Japão sempre circulante: quadrinhos, animações, cinema e música pop. Algo grande demais para um fanzineiro pornô como Inoshiro. Quando adentrou o edifício, na hora marcada, deu de cara com outras figuras, algumas tão repelentes como ele, à espera do homem que os convidou. Uma última figura adentrou a sala. Era um conhecido líder do crime organizado, cujo nome não deve ser dito. Todos tremeram.

Foi quando entrou o Secretário das relações exteriores, ao lado do primeiro-ministro japonês - que não era esperado. Um especialista de terno, cujo cargo não foi especificado, e que foi apresentado como o Doutor Kenji Ashitaka, se dirigiu aos presentes, iniciando a reunião.

- Cavalheiros, eu acredito que tenha sido uma surpresa para muitos que os senhores tenham sido trazidos aqui. Não devo entrar em delongas. Senhores, a cada ano que passa, nosso país está morrendo.

O telão plano do computador apresentou os gráficos.

- Esse é o percentual de natalidade a cada ano. Como podem ver, a tendência é diminuir a cada vez mais. Há uma razão óbvia para isso. Ela se chama...

A tela mostrou um anúncio do novo modelo de persocom para o próximo verão.

- ... Persocom. Isso mesmo. A verdade é que socialmente os persocons estão substituindo os cônjuges naturais. Os desastres aconteceram já na primeira geração em que os robôs se tornaram mais convincentes. Famílias foram desfeitas. Jovens se amasiavam com persocons. Posteriormente, eles começaram a entrar no mercado de trabalho. Hoje eles atendem por mais de quarenta e cinco por cento dos trabalhadores produtivos, sem realmente aumentar a taxa de desemprego - porque seus donos as colocam para trabalhar por eles, quando não os colocam como empregados de pequenas empresas. Agora eu vou dar a palavra ao Presidente executivo da Kadokawa Shoten, o Sr. Kakuji.

O senhor Kakuji se levantou. Era um senhor de aparência distinta, mas não mais do que qualquer executivo de seu porte. Uma nova imagem apareceu na tela.

- Como os senhores sabem, boa parte da nossa atual imagem para o mundo depende de nossa cultura do quadrinho e da animação. Temos que produzir em massa. Esse - e nisso apareceu uma imagem do persocomicworks 10.5 da deleter - é o software de aplicação com que trabalhamos sob contrato. A deleter permite que os jovens desenhistas que trabalham para nossa editora compre o software e facilitam o financiamento para a obtenção de ao menos dois persocons que desempenharão o papel de assistentes. Agora vejam o papel do comicworks original: ele seleciona os esboços e refina os traços a partir deles, criando uma arte-final digital profissional. O assistente persocom executa isso nos papéis oficiais da Deleter, permitindo a criação de originais a um prazo rápido como nunca. Abraçamos a novidade, assim como todas as editoras de nossos dias - A Shogakukan, a Shueisha, todas.

"Infelizmente por conta disso, o senso de continuidade de nossa produção corre o risco de ser comprometido. Temos desenhistas que não sabem fazer uma arte-final a nanquim, e raramente fazem um desenho além do seu estágio como esboço, porque seus persocons farão tudo que eles mandarem, inclusive imitar a arte-final precisa de autores consagrados do passado. Temos roteiristas que dependem mais do que nunca dos plots fornecidos por nós editores. O sistema de aprendizado com desenhistas mais experientes sumiu, o que pode comprometer a evolução de nossa mídia. E claro, os desenhistas homens costumam ter assistentes mulheres e vice versa. Como o serviço termina rápido, eles tem mais tempo livre, que passam com... suas persocons, ao invés de aproveitar o tempo ganho e produzir mais.

- Muito obrigado, senhor Kakuji.

Não houveram palmas, nem por cortesia. O clima parecia tenso no ar.

- Essa é uma parte delicada. Entendam que esta é uma reunião à qual foi pedida discrição. Vou pedir para que entre o... Senhor Maehara.

O silêncio se tornou glacial. Maehara era um conhecido membro do crime organizado no Japão.

- Senhor Maehara, pode nos contar como os Persocons afetaram a atividade dos negócios de sua família durante esses anos?

Maehara respondeu com um gesto de cabeça, concordando. Se dirigiu para a platéia.

- Como os senhores podem imaginar, o setor mais afetado da minha organização... e das organizações concorrentes... foi a prostituição. De início persocons eram caros. Não tardamos a adquirir os nossos para aproveitar a novidade. Mas a popularização sistemática e epidêmica do produto tornou mulheres normais um produto mais interessante.

"Infelizmente prostitutas persocoms perderam o sentido com o tempo. Isso fez com que desaparecesse a base de qualquer negócio de grande prostituição: A prostituta pé-de-chulé, a que cobra qualquer ninharia. Ela é o nível mais baixo, mas uma pirâmide é construída com uma pedra sobre outra pedra. Só restaram as humanas, como prostituição de luxo. Mas um negócio que se limita a sua forma mais elitizada é um negócio de lucros que, embora sejam garantidos, são reduzidos.

"Ou seja, sexo deixou de ser algo rentável, exceto pela indústria de chantagem. Muitos homens não gostariam que viessem a público certas coisas que se podem fazer com alguns persocons. E não, não estou falando do rapaz que se amasiou com uma robozinha e toda a vizinhança sabe disso. Mesmo assim, perdemos uma parte significativa de nossos negócios. Mais alguma coisa?

Como não houvesse resposta, ele retornou a sua poltrona. O senhor Ashitaka voltou a falar.

- Alguma pergunta?

Uma mão se levantou.

- Porque simplesmente não se proíbe a fabricação e venda de persocoms?

- Boa pergunta. A resposta é dinheiro. A economia do Japão é uma economia de alta rotatividade que depende do consumismo desenfreado para se manter em circulação contínua. Robôs não compram coisas. Seus donos, sim - e por isso o declínio da natividade é tão crítico. No entanto, robôs são instrumentos de consumo dos quais muitas indústrias se tornaram dependentes. A própria estrutura de base dos empregados é dependente deles. Pensem na quantidade de pequenas empresas que tem empregados persocons. Pensem na quantidade de serviços terceirizados que se valem do apoio de persocons. E a própria indústria que os fabrica é uma das indústrias que mantém nosso mercado interno de pé. O depoimento do Senhor Kakuji foi bem esclarecedor nesse sentido. Além do mais, durante a crise que se seguiria, não se perderia apenas um sustentáculo econômico, mas um fator de tranquilidade social necessário em transições como esta. Não, proibir os persocons não é uma opção.

- Porque estamos aqui então?

O Senhor Ashitaka respirou fundo antes de conseguir.

- Caso nenhum dos senhores tenha notado, estamos no Secretariado de Imagem Pública. Nossa função sempre foi a de apoio para o ministério do exterior. No entanto, estamos com um problema interno grave - e pela primeira vez, teremos um esforço massivo para criar uma nova necessidade. Uma que vai exigir todas as forças de nossa mídia. Teremos que fazer os homens gostarem de mulheres e as mulheres gostarem de homens, e não de máquinas. Mais ainda. Temos que despertar um senso de amor romântico, e por isso convocamos autoras de fanzines do gênero, que entrou também em declínio quando cada um pôde encomendar seu casal perfeito. Temos que despertar desejo sexual dos homens não pelos alqueires de carne, mas pela moça comum - e isso vale também para as moças e os rapazes normais. Temos que estimular amor e sexo tradicionais - e eu faço questão de frisar essa palavra.

"Temos animadores e cineastas. Temos escritores. Temos também especialistas de marketing e psicólogos. Na próxima hora iremos discutir como isso será feito. Temos dez anos para reverter o estrago que persocons fizeram em nossa sociedade. E será uma batalha difícil.

Foi assim que Inoshiro voltou a ativa. Ele, assim como outros desenhistas, teria à sua disposição muito espaço livre para trabalhar - porque nos dias de hoje, a população ativa havia diminuído o suficiente para que o problema da superpopulação se resolvesse por si só. Mas não sabia o que fazer.

Porque toda a sua vida não foi composta de fantasias normais - meramente porque ele não sabia o que era normalidade. Ele não tinha vivência. Nunca namorou uma moça. Nunca soube o que era um encontro comum durante a adolescência - na verdade, porque o escolheram? Tudo o que ele escrevia era o que os persocons ofereciam: todo, TODO, tipo de sexo que um ser humano não pode fazer na vida real por impossibilidade física.

Quando entrou na sua sala, encontrou um livrinho vermelho em cima de sua prancha. Eram suas diretrizes - tudo para valorizar os humanos cujo papel estava sendo usurpado pelos persocoms. Era uma guerra de propaganda, afinal, travada em várias frentes. Essa era apenas a frente mais rasteira de todas.

Seus assistentes chegariam em breve. Era melhor ele arrancar alguma idéia decente da cabeça antes que todos percebessem.

Por mais que ele negasse, até para si mesmo, Inoshiro era o tipo de pessoa para o qual se fazem persocons.