Capítulo 9- Declaração

Ficamos parados ali na sala, olhando uns para os outros, esperando que alguém dissesse alguma coisa. Era uma situação complicada. Tinha-nos sido designada uma missão, e falhamos. Duo suspirou e falou, quebrando o incômodo silêncio:

— Não contamos.

— Como? – perguntou o chinês, indignado

— Simples assim, Wu-man. Ou alguém tem uma idéia melhor?

Ficamos mais um tempo em silêncio, pensando. Definitivamente não seria honesto ocultar esse fato dos doutores, mas, se pensarmos bem, não seria exatamente uma mentira, mas uma omissão. Eles não precisam saber que o homem que procurávamos foi assassinado em sua própria casa, e que todo e qualquer material sobre ele e sua relação com a produção ilegal de MSs foi levado embora. Será só uma questão de desenferrujarmos nossas habilidades de infiltração e pesquisa em servidores particulares (ou melhor, habilidades de Heero) e descobrirmos nomes de outras pessoas envolvidas. Daí até acharmos o que precisamos será um pulo, e sem maiores contratempos, se começarmos rápido, antes que o fulano seja completamente deletado dos bancos de dados (porque, obviamente, quem o matou, não vai deixar informações sobre ele pairando por aí, vai apagar o cara de vez).

— Sabem, a idéia do Duo até que é boa. – todos ficaram me olhando como se eu fosse louco por concordar com essa idéia, que a princípio parece absurda – Pensem bem... – e repeti para eles todo o meu raciocínio sobre ocultar.

— Estão vendo? Grande Qat! Só você para entender a genialidade do meu raciocínio.

— Mas... – Wufei não ia perder a chance de alfinetar um pouco – e aquela história de "posso correr e me esconder, mas eu nunca minto", heim?

— Você não ouviu o Quatre? Não é uma mentira propriamente dita, mas uma omissão. Ou você prefere telefonar agora para aqueles cinco malucos e dizer que falhamos? Eles podem, de raiva, não mudar a gente de volta para o normal!

— Se é que eles sabem como fazê-lo.

— Ai, Hee-chan, não fala uma coisa dessas! – Duo fez maquinalmente o sinal-da-cruz, sendo fuzilado instantaneamente pelo olhar mortal (1) do outro, por causa do uso indevido do apelido.

— Mas ele está certo. – disse Trowa, fazendo meu pobre coração se sobressaltar com o som repentino de sua voz. – No pouco em que falamos com eles desde que essa... – ele parou para procurar uma palavra adequada – loucura começou, só conseguimos perceber duas coisas: primeira, a transformação foi necessária para o melhor cumprimento da missão. E segundo: eles estão sendo perseguidos. Isso explica os barulhos estranhos e as ligações curtas. E quando a menina, Serennity, esteve aqui, esquecemos de perguntar isso a ela.

— Então... o plano fica esse?

— Acho que sim, loirinho. – respondeu-me o americano – É o melhor que temos no momento.

— Eu vou começar a trabalhar nisso agora, porque minutos podem ser preciosos numa situação assim. E quando terminar, eu e Barton trabalharemos na infiltração.

Senti uma pontinha de inveja de Heero, porque ele ia passar mais tempo com Trowa. Antigamente eu me preocuparia com isso, mas agora... sentimentos em relação ao belo moreno de olhos verdes se tornaram tão comuns que já nem dou tanta atenção a eles (no sentido de me preocupar com o fato de estar apaixonado por um amigo e companheiro de lutas, claro)

— E então, quando vocês já estiverem com tudo pronto, nos avisam e passam o que teremos de fazer. Enquanto isso, eu vou tomar um banho. – concluiu o americano, a trança balançando às suas costas antes de subir as escadas. – Ah! – ele se virou novamente para nós, antes de subir – E se os doutores ou a menina ligarem, digam simplesmente que "está tudo indo conforme o planejado".

— Planejado por nós, você quer dizer?

— Exatamente, Trowa!

— Ai, ai, você e a omissão, Maxwell...

— Hey, nem vem, Wu-man. Se não fosse por mim, vocês ainda estariam sem plano, se desesperando.

O chinês bufou, mas acabou concordando.

Heero foi para seu quarto pesquisar, Trowa foi ler um livro, Wufei foi fazer biscoitos e eu resolvi dormir. Algo me dizia que eu ia precisar estar muito bem descansado para os dias que viriam.

Dito e feito, naquela mesma noite eu fui cruelmente acordado pelo telefone tocando lá na sala. Mesmo dominado pela sonolência, consegui raciocinar o bastante para perceber que, se eu não fosse atender, ninguém o faria. Duo tem o sono pesado demais para acordar com o som de algo tão... obsoleto (pelo menos no meio da noite, concordem que é) como o telefone, Trowa e Heero ainda devem estar concentrados demais nos planos de invasão para se importarem, e Wufei simplesmente vai ignorar.

Procurei pelas minhas pantufas, calcei-as e saí correndo para atender o aparelho, que a cada toque parecia mais irritante.

— Alô? – perguntei, tentando inutilmente encobrir o tom sonolento

— Karina? – uma voz chorosa perguntou.

Por um instante eu me ouvi negando, mas meu cérebro bem treinado lembrou-se do "codinome" e respondeu afirmativamente.

— Oi, desculpa ligar a essa hora. É a Nielly.

Respirei fundo e perguntei, no tom mais cordial que consegui:

— O que houve, Nielly?

— Sabe o que é? Eu não consigo dormir... fico pensando em meu pai o tempo todo...

Eu estava pronto para fazer exatamente o que Duo faria naquela situação: dizer algo do tipo "boa noite, Nielly" em tom de deboche, desligar na cara dela e voltar a dormir, mas me lembrei de como eu me senti com a morte de meu próprio pai, e de como a presença de Trowa ao meu lado foi importante para que eu aceitasse o ocorrido e não afundasse na mais profunda depressão. A compaixão foi maior do que o sono, e eu perguntei:

— Quer que eu vá para aí te fazer companhia?

— Ah, não, não quero incomodar. Só queria conversar um pouco.

— Não, tudo bem. Eu já estou indo.

— Está bem...

Desliguei o aparelho, e voltei ao meu quarto. Vesti a primeira roupa que vi pela frente, escrevi um pequeno bilhete avisando onde eu estaria (que preguei na geladeira) e saí.

Peguei um táxi, e em pouco tempo eu estava parado em frente à enorme mansão. Um criado veio me receber.

— A senhorita Nielly a está esperando no quarto dela.

Assenti e segui uma criada que me recebeu no saguão de entrada me levou até lá. A menina estava sentada na espaçosa cama, encolhida, abraçando os joelhos, e levantou levemente a cabeça quando percebeu que eu estava ali.

— Obrigada por vir assim no meio da noite, Ka-chan. Eu posso...?

— Claro. – respondi, entendendo que ela iria me perguntar se podia chamar-me pelo apelido. – E não há de que.

— É estranho... parece que ele vai entrar pela porta a qualquer minuto, como ele fazia todos os dias. E saber que não vai... dá um aperto no coração...

— Sei como é...

— NÃO, VOCÊ NÃO SABE! – ela explodiu de repente, a expressão transfigurada de raiva. Será que ela está naquela época, que Serennity disse se chamar TPM? Eu, pelo menos, sofro terríveis inconstâncias de humor nesses dias. Ou simplesmente a dor seja o bastante para fazer isso com uma pessoa. – NINGUÉM SABE O QUE EU ESTOU PASSANDO, E MESMO ASSIM, SE MOSTRAM SEMPRE CONDESCENDENTES COMIGO! SÓ POR QUE MEU PAI ERA UM HOMEM IMPORTANTE? – ou a pressão imposta pelas outras pessoas, completei meu pensamento anterior.

— Mas, Nielly, eu nem...

Me aproximei dela, tocando seu ombro, ao que ela se esquivou, arisca.

— NÃO SE APROXIME! NÃO ME TOQUE!

Aprendi que nessas situações pode-se usar de dois artifícios. Deixa-se a pessoa sozinha, para que pense, ou grite do mesmo jeito, para causar impacto. Como, se eu usasse a primeira alternativa, ela poderia pensar que não me importo com ela, preferi a segunda.

— POR ALÁ, EU NEM CONHECIA O SEU PAI. NUNCA O VI, ATÉ HOJE DE TARDE! E SEI EXATAMENTE COMO SE SENTE! PERDI MEU PAI HÁ ALGUM TEMPO ATRÁS, E FOI UMA DOR QUE EU NÃO PODERIA ME ESQUECER TÃO RÁPIDO!

— Ka-chan... eu não sabia... – dera certo, afinal, ela se acalmara, e voltava a se aproximar de mim – me perdoe...

Conversamos por várias horas, nas quais ela alternou a histeria, raiva, tristeza e uma calma duvidosa. Já amanhecia quando resolvi que era hora de me despedir.

— Nielly, acho melhor eu ir pra casa... mais tarde temos aula, e eu não avisei as meninas que eu ia sair, elas podem ficar preocupadas.

Mentira, eu tinha deixado um bilhete. Mas aposto que nenhum deles ia percebê-lo.

Ela fez que sim, e me acompanhou até a porta.

— É, eu também preciso dormir. E muito obrigada por ter vindo. – ela sorriu

Retribui o gesto.

— Não se preocupe. Sempre que precisar, pode ligar para mim.

Eu não fazia idéia do quanto eu ia me arrepender dessas palavras nas noites seguintes.

Fui para casa, e cai direto na cama. Eu ainda tinha algum tempo, já que a aula só começa às 9h. Bom para Nielly, ela não vai à aula por toda a semana. Em menos de um minuto eu estava dormindo, e a coisa seguinte que eu ouvi foi Duo do meu lado, me cutucando.

— Hey, acorda, campeão! (2) O que aconteceu com o cara que sempre acorda cedo?

— Esse cara, Duo, - respondi totalmente sonolento – é agora uma garota, e teve que passar a noite toda confortando uma menina que acabou de perder o pai.

— O que? – ele perguntou, me empurrando sutilmente para o lado, e sentando-se na minha cama.

— Exatamente isso. Nielly me ligou de madrugada, dizendo que não conseguia dormir porque ainda estava assustada com a morte do pai. E o que eu fiz? Fui até a casa dela e ficamos conversando até o sol raiar. Engraçado, né?

Olhei para ele com uma expressão que eu sabia que acentuaria minhas olheiras e me faria parecer, além de insatisfeito, cansado. Eu nunca me importei em ajudar as pessoas (3), mas... eu estava cansado, e essa missão estava me deixando cada vez mais preocupado. Sem contar que, como mulher, minhas emoções afloram com uma facilidade muito maior, eu já falei.

— Deuses! Vou buscar um corretivo para você, Qat! Em questão de minutos damos um jeito nessas olheiras horrendas!

Ri da preocupação de Duo com a estética (provavelmente a vaidade evoluiu para uma ligeira futilidade na hora da mudança de sexo), e me deixei arrumar e maquiar. Eu poderia fazer aquilo sozinho, mas... oras, quem não gosta de um mimo de vez em quando, não?

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Eu estava exausto! Fechei a porta da sala atrás de mim, e desabei no sofá, cansado demais para sequer pensar em alguma coisa. Já fazia mais de uma semana que eu não dormia praticamente nada. Nas poucas tardes/noites em que Nielly não tem nenhum pesadelo ou sonho envolvendo o pai, ou não fica subitamente com saudades dele, ou então não sente o perfume dele pela casa e tem um ataque de choro, eu estive ocupado com a missão. Heero descobriu o nome de outras pessoas envolvidas, e onde ficavam os Mobile Suits. Estamos nos revezando para fazer reconhecimento de campo, já que a propriedade é uma velha fábrica abandonada, e engloba todos os três andares, mais alguns subterrâneos (segundo Wufei descobriu há dois dias), e em mais alguns dias, estaremos prontos para a infiltração. Será preciso um de nós lá dentro, para entender todos os esquemas e podermos finalmente passar para os doutores. E, quem sabe dessa vez, voltarmos a ser homens!

— E então, como foi lá? – Trowa pareceu das sombras, me assustando. – Desculpe.

Respirei fundo e, após ouvir o 'cléc' do gravador, contei detalhadamente para ele tudo o que tinha visto e/ou ouvido lá. Havíamos decidido que seria mais fácil gravar as coisas, ao invés de fazer relatórios formais, porque nenhum de nós tinha vontade de redigi-los o tempo todo. Então, quando as investigações chegassem ao fim, faríamos o relatório com tudo.

Quando cheguei ao fim, suspirei e fechei os olhos.

— Quer que eu te leve para o quarto?

Eu estava quase dizendo que podia ir sozinho, mas... por que não me aproveitar um pouquinho?

— Eu lhe seria imensamente agradecido.

Senti Trowa me pegar no colo e me levar escada acima, até meu quarto. Eu teria aproveitado aquele momento trinta vezes mais se meu amigo estivesse na forma masculina, mas... mesmo assim, eu gostei. No fundo, continuava sendo Trowa.

Não dormi nem 4 horas direito, e o telefone tocou. Antes mesmo de atender, eu já sabia quem era. Nielly.

— Ka-chan, você pode vir aqui, por favor? – eu tenho certeza de que, quando eu conseguisse dormir, teria pesadelos com aquela voz chorosa.

— Mas... por que? Aconteceu alguma coisa?

— Meu pai... um sonho... foi horrível! Ele queria me matar! Dizia que eu nunca fui boa filha...

— Estou indo.

Quando sai de casa, notei que a limusine de Nielly estava parada ali na frente, pronta para me levar até a Mansão.

Como das outras vezes, a menina estava no quarto. Cheguei lá e ela andava impaciente de um lado para o outro.

— Oh, Ka-chan, finalmente você chegou!

E então ela começou a contar o sonho, apenas uma mera variação dos outros tantos que eu já tinha ouvido naquela semana. Ouvi até o final, meus olhos quase se fechando de tanto sono.

— É tão bom conversar com você, Ka-chan! (4)

— Eu também gosto de conversar com você. – sorri para ela

Nielly sentou-se na beirada da cama (eu estava na cadeira da penteadeira, de frente para a cama) e ficou em silêncio por uns instantes.

— Karina... o que você pensa sobre homossexualismo?

A primeira coisa que me veio à cabeça: ela descobriu sobre Trowa. Bom, melhor assim. Eu me sentia culpado por ocultar isso dela, já que Nielly sempre fora tão transparente comigo.

— Bom... não tenho nada contra. Se esse for o modo que as pessoas acham para serem felizes.

Ela ficou quieta mais um pouco.

— Ka-chan... você tem sido tão boa comigo esses dias... eu... eu... eu não pude evitar, me apaixonei por você!

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(1) sempre que eu penso nesse olhar mortal, me vem à mente a expressão em espanhol "mirada de la muerte"

(2) nem me perguntem de onde eu tirei isso. No dia em que eu descobrir, eu conto pra vocês...

(3) okay, a frase ficou ambígua, e eu não consegui mudá-la de forma a não ficar mais, então eu vou explicar. Não é no sentido de que o Q-sama não está nem aí para os problemas alheios, muito pelo contrário, ele nunca achou ruim ajudar os outros.

(4) a Nielly é uma pessoa muito problemática. Órfã de mãe desde pequena, foi sempre muito mimada pelo pai e pelos empregados, mas nunca teve amigos verdadeiros. Por isso ela abusa do termo "Ka-chan", usando ele repetidas vezes. Ela acha legal o som da expressão, e ter alguém que realmente se importa com ela, por isso talvez ela tenha se apaixonado pelo Quatre-chan... ou pela sua forma feminina, tanto faz.

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N/A: Demorou um pouquinho, mas aqui está. Finalmente estou conseguindo colocar a fic nos eixos, e definir o que vai ser feito no futuro. Eu percebi que eu estava fazendo com essa fic o mesmo que eu tinha feito em uma outra fic minha (e que uma amiga tinha me puxado a orelha por causa disso): os capítulos não terem ligação um com o outro. Sabe, como se cada capítulo fosse uma parte independente da história? Por sorte eu percebi isso a tempo de corrigir.

Muitíssimo obrigada à MaiMai, Say-chan e Ilia-chan, por comentarem o capítulo anterior. Espero receber mais reviews dessa vez, heim? Nem que seja pra xingar. Eu gosto de receber críticas, para saber onde eu estou errando.

Beijos e até a próxima!