Cap 03 – Assassinato na Morgue.

Durante três semanas, diariamente, Sardo teve insucesso em completar seu exercício físico e mental. Betserai bloqueava todos os seus golpes e o enxia de hematomas. O exercício mental não provocava danos físicos, mas era igualmente penoso. O rinoceronte psíquico parecia uma pá que trazia a tona cada vez mais traumas enterrados. No seu tempo livre, Sardo tentava entrar na mente das pessoas que encontrava na rua, mas também não foi bem-sucedido nisso.

- Você moveu uma mesa só com a mente quando entrou na acadêmia. - Disse Shishi. - Lembre-se o que o motivou naquele dia e nada poderá detê-lo. - Obedecendo o conselho de sua noiva ao pé da letra, Sardo saiu de sua casa e foi direto até o seu mestre ter com ele uma conversa séria.

- Se não funcionar hoje, não funcionará mais. - Disse Sardo na porta do estábulo. - Quero que me desvincule da Aether se eu não conseguir invadir a mente desse maldito rinoceronte hoje! - Betserai achou que a atitude de Sardo foi um misto de imprudência e coragem, mas decidiu por aceitar os seus termos.

Sardo se lembrou do dia em que viu a sua tribo ser escravizada e mirou sua mão direita no animal. Não que a posição de seu braço fosse fazer alguma diferença no ato. Porém, Sardo decidiu adotar tal pose dramática. Assim como antes, Sardo sentiu uma coceira na nuca que se transformou em uma baita dor de cabeça. O mago já esperava por isso e imaginou essa mesma dor invadindo a cabeça do rinoceronte.

Sardo ficou impressionado quando entendeu os desejos simples da fera. Andar pelos campos de Agbaye com seus filhotes e ficar longe dos predadores. Quando acessou os temores do animal, Sardo viu um bando de humanos atacando-a com armas atordoantes e confinando-a em um espaço minúsculo para transporte.

Alguma coisa havia mudado. Betserai ficou ciente disso assim que viu Sardo se apresentar para a sessão de treino. Ele estava mais confiante, não se deu nem ao trabalho de andar para pegar a sua arma de treino. Simplesmente usou de sua telecinesia para fazer com que a espada de madeira fosse até ele.

- Vocês escravizaram aquela pobre criatura! - Disse Sardo enquanto tentava atingir seu mestre. Betserai continuava bloqueando suas investidas, mas agora sua defesa estava mais penosa. - Não consigo nem enxergar a diferença entre vocês e os malditos Escravagistas!

- O seu contato mental foi recente, sua empatia pela criatura está no auge. - Dizia Betserai, que agora assumia uma posição mais ofensiva. - Agora me diga, qual a diferença dos nossos atos e os seus? Ou será que não sabe o que sua noiva coloca em seu prato? - A fúria de Sardo foi aniquilada pela dúvida, o que deixou para Betserai um caminho livre para desarmá-lo.

Sardo levou algum tempo para pegar sua espada de madeira do chão e recolocá-la em seu lugar, na parede. - Nada de espadas de prata pra mim, certo?

- Discordo. Acho que você já se qualificou o bastante.

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Enquanto isso, em Umbra, do alto do seu castelo, Skurk contabilizava as suas tropas. Humanos escravizados, fantasmas e kiumbas. Ele achava que já estava preparado para pôr os seus planos de conquista em prática, mas o seu mestre o alertou que ele ainda não estava pronto. - Se você atacar a república agora fracassará. Os Doze Mundos são poderosos demais para apenas um planeta enfrentar.

- O que eu preciso fazer ainda?! - Indagou Skurk.

- Um teste de determinação. - Respondeu Bauglin. - O seu desejo é forte o suficiente para pagar qualquer preço necessário?

- Sim! - Respondeu Skurk sem pensar.

- Antes de responder, pense com calma. O ritual que irei te ensinar o encherá com poder mágico e com o melhor dos exércitos, porém, cobrará um preço alto.

- E que preço seria?

- Você poderá viver, teoricamente, até mil anos. Mas, quando a sua vida chegar ao fim, sua essência será mandada ao Caos.

Skurk deu um sorriso de canto de boca enquanto falava. - Não acredito em mitos.

- As dimensões Caóticas e as Elevadas são reais. Se abrir mão de sua alma, seu destino final será um tormento.

- Minha decisão contínua inalterada. - Bauglin acreditava que seu aluno ainda não sabia o que estava dizendo. O fantasma conhecia bem as dimensões caóticas, pois elas foram sua moradia durante um longo tempo. Por lá ele ficou zanzando sem paz até que Skurk mexesse em seu túmulo. - O que eu tenho que fazer?

No Castelo Elétrico havia, em uma de suas torres, uma mesa de pedra. Entalhada em sua superfície havia um desenho arcano que Skurk desconhecia o significado. - Não importa que monstro ancestral do Caos você invocará. - Disse Bauglin. - No fim das contas todos eles prometem o mesmo poder e cobram sua alma por ele.- Uma kiumba trouxe até a mesa um bebê humano e uma adaga. Nem a kiumba e nem Buglin disseram o que Skurk deveria fazer. Não precisava. O mago olhou para o inocente e moveu a faca como se fosse esfaqueá-lo. Porém, um lampejo de consciência o atingiu e ele arremessou a arma branca para longe.

- Conquistarei os Doze Mundos mesmo sem os seus deses ancestrais idiotas!

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Em Britânia existe o bairro Morgue, ele é ocupado principalmente por seres não humanos marginalizados. Entre eles, encontra-se uma comunidade de neandertais. Seres fisicamente habilidosos (fortes, rápidos e detentores de instintos aprimorados) que têm fama de serem brutos. O povo neandertal, em sua maioria, possui queixos quadrados, ombros largos, narizes inchados, braços musculosos e uma altura de, em média, dois metros e vinte. Ocupam geralmente espaços de trabalhos braçais.

Lagbara era um neandertal mediano que trabalhava em uma fábrica de carroças motorizadas. O seu serviço era braçal e repetitivo, mas ele não se importava com isso. O seu foco era sustentar a sua família. Lagbara era casado, mas não tinha filhos. Fazia alguns meses que ele e sua esposa discutiam a viabilidade de se ter um bebê.

Aquela tarde, pra infelicidade de Lagbara, marcava o fim dos sonhos do casal. Assim que o neandertal entrou em sua casa, ele viu sua esposa deitada no chão, com o corpo coberto de sangue. Desesperado, Lagbara se ajoelhou, pegou sua esposa falecida no colo e gritou com um misto de cólera e lágrimas.

- A aula de hoje vai ser fora da acadêmia. - Disse Betserai ao seu discípulo, Sardo. - É bom para um mago iniciante aprender logo como se desvencilhar dos problemas do ofício. - Assim que o táxi chegou no bairro Morgue, Betserai pagou ao motorista e levou Sardo para a ação. Uma pedra arremessada por uma multidão quase acertou Betserai, mas este a deteve com sua telecinesia.

Betserai seguia calmamente até o seu destino e Sardo não desgrudava dele. Seres estranhos gritavam palavras de ordem como "fora magos" e "humanos podres". Na cena do crime, policiais já tiravam fotos do cadáver e tentavam acalmar o marido da vítima. - Mas que porra! Ele mexeu no corpo! - Disse um policial gnomo.

- Você também mexeria se estivesse no lugar dele. - Disse Betserai. - Omo-inu, quero te apresentar o meu novo aprendiz.

- O que a Aether tem a ver com essa merda toda?

- A vítima teve o seu coração arrancado, isso é um claro caso de magia negra.

- Ou isso ou temos um novo lobisomem faminto perambulando pela Britânia. - Enquanto Betserai conversava com o policial gnomo, Sardo se encostou em uma das paredes da casa e começou a se sentir muito mal. Começou com um suor frio que evoluiu para uma tontura. Logo, o jovem mago começou a sofrer com uma vista turva. Para evitar que passasse pelo constrangimento de desmaiar na frente de todos, Sardo saiu da cena do crime e foi respirar um pouco de ar puro.

- É a primeira vez que vê tanto sangue assim, garoto? - Perguntou Betserai, que notou o estado de seu pupilo e foi falar com ele. Os dois se encontravam em um beco, logo ao lado da casa onde houve o assassinato.

- Acho que não foi isso. Sei lá, já matei dois Escravagistas uma vez e não me senti tão mal.

Betserai ponderou um pouco e não demorou a trazer uma hipótese. - Você já teve em presença de magia negra?

- Os Mawe não sabem nem o que é isso. - Sardo foi levado de volta para dentro da casa e colocado diante do defunto, que estava coberto com um pano comprido.

- Concentre-se. - Sardo tentou emular o processo que usou para ler a mente do rinoceronte. A defunta, logicamente, não tinha uma mente. Mas o seu corpo contava uma história. O assassino, como a multidão do lado do bairro acusava, era um humano. O ato hediondo perpetrado pelo criminoso tinha um objetivo. Objetivo que ficou claro para Sardo.

- Umbra? Você conhece algum lugar com esse nome?

- Umbra não é um "lugar", é um planeta. E sim, eu conheço. De onde você tirou esse nome?

- O assassino. Esse planeta não saia de sua mente, a morte dessa neandertal foi feita para agradar alguém de lá.

- Comemore! Se você estiver certo, garoto, posso usar essa informação para advogar o uso de um exército para salvar o seu povo.