*********************** Cap 30 Expectativas Desleais ***********************

Santuário de Atena, 07:56am.

Os olhos jades, demarcados por fundas olheiras, piscavam incomodados. Não era o vento que vinha de encontro ao seu rosto, e que cheirava à grama fresca e orvalho, que lhe causava esse incomodo, mas a insônia que o obrigara a passar mais uma noite em claro.

Os ansiolíticos que lhe foram receitados pareciam ser insuficientes, pois que já ia para o terceiro dia em que não o ajudavam a dormir, tampouco conter uma ansiedade que crescia a cada dia.

A ansiedade...

O Santo de Gêmeos a tinha como estado natural de seu ser, mas agora esta se mostrava agravada. Pudera! Tantos eram os obstáculos que se erguiam em seu caminho em busca de recuperar a confiança dos amigos e de Geisty, além do tempo perdido. Somado a isso, tinha pressa em consertar os erros do Outro.

No entanto, nenhum assunto lhe era no momento mais importante e crucial do que encontrar o diário perdido de Shion, que até dois dias atrás lhe era inexistente, mas que agora poderia ser a única chance de salvar o pequeno Kiki.

Essa era, inclusive, a razão de sua insônia da noite passada. A tinha passado em claro após retornar de mais uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, revirando pasta por pasta, gaveta por gaveta, livro por livro, em um ciclo repetitivo e angustiante que sempre o levava a lugar nenhum. Nenhum resultado. Contudo, não conseguia deixar de procurar.

Se pudesse ajudar Kiki, se pudesse levar alguma esperança para Shaka e Mu, certamente sua existência faria algum sentindo naquele momento.

E como estava sendo cansativo, frustrante e assustador ser ele mesmo naqueles dias...

Os remédios pareciam não estar fazendo o efeito esperado. Sua angústia e pavor de que tudo se repetisse crescia a cada minuto passado, cada instante vivido. O corpo por vezes lhe parecia um vagão desgovernado, sedento por tudo aquilo que tinha verdadeira aversão; mas ele procurava agarrar-se o mais forte que conseguia à esperança de recuperar a vida que nunca teve de fato, mas que sempre almejara, e seguia acreditando que dessa vez conseguiria vencê-lo.

Apostava agora todas as suas fichas, que eram bem poucas, na viagem que faria naquele fim de tarde à Ancara. Lá se encontraria com uma junta médica formada por profissionais renomados do leste europeu da área de psiquiatria, neurologia, psicologia e estudos comportamentais, todos indicados pelo atencioso e esforçado doutor Tibúrcio Aeropholius. Agradecia aos deuses, e ao doutor Hector da Ala 5, por terem colocado tão dedicado profissional em seu caminho. Todos pareciam muito empenhados em ajudá-lo a encontrar algum entendimento ou ao menos um caminho em busca da cura para o que quer que fosse o "mal" que o afligia, qualquer luz que o tirasse das trevas da ignorância sobre si mesmo.

Saga sabia que aquele seria um caminho longo e difícil. Talvez por isso decidiu, naquela manhã, iniciar o dia dando cabo de uma tarefa que estava protelando há dias, e cujo caminho para saná-la se fazia bem mais curto, porém que era tão difícil quanto.

Com um suspiro profundo ele tomou coragem e seguiu em frente. Apertou com força os galhos das flores do campo que tinha nas mãos e com um passo decidido começou a caminhar sobre a grama de um verde incrivelmente viçoso para um campo como aquele. Então a poucos metros da lápide em mármore branco ele parou. Com os olhos brilhantes olhou circunspecto para a imagem entalhada em baixo relevo de dois anjos abraçados; ela era igual a da caixa de sua armadura de Gêmeos. Os lábios se moveram, mudos, ao lerem os dois nomes gravados em dourado na lápide.

De toda a dor que já experimentara em sua vida, aquela era, sem sombra de dúvidas, a pior e mais intensa delas.

Por mais que ele achasse que estava preparado para aquele momento, de fato ele não estava. A boca secou em segundos, o coração disparado e a garganta espremida lhe causavam uma sensação de afogamento iminente.

Foi impossível evitar o choro.

Seis anos causaram um completo e absoluto vácuo em sua memória, em sua vida, em si mesmo.

Saga vivia naquele momento a real confirmação da sua perda, e a dor que sentia parecia alimentar-se de todo o seu ser sem poupar sequer uma fibra muscular; devorava famélica ossos, cérebro, oxigênio, célula e átomo.

Em determinado instante sentiu os joelhos fraquejarem, e sem a menor força de vontade de se manter de pé prostrou-se sobre a grama, levando uma das mãos à lápide como quem busca por apoio em uma tábua de salvação.

Chorava convulso e quase em desespero. Havia postergado tanto aquele momento... Tinha tanto medo dele. Não estar ali, não ver a lápide, os nomes nela, era como se de alguma forma delirante pudesse manter os filhos vivos, mas ali estava a prova cabal da triste realidade.

Não havia mais como negar aquela dor, nem mesmo abstrair seus pensamentos; aquele era o seu passo sem volta.

Seu luto agora era concreto e maciço como aquele pedaço de mármore no qual se apoiava.

E por mais difícil que lhe fosse o momento, ele decidiu o abraçar com força e vive-lo consciente. Sua nova jornada não lhe permitia mais fugir de suas dores e problemas, e ele estava convicto em fazer diferente dessa vez, ainda que se sentisse minúsculo, fraco e terrivelmente sozinho.

Depois de um tempo ali, com o coração e o espírito partidos, e a mente naturalmente agitada e constantemente confusa, ele se recompôs como conseguiu e agora, num choro bem mais contido, depositou no jarro de porcelana branco com adornos em azul grego que ficava ali o punhado de flores do campo que trouxera consigo.

Tristes elas enfeitaram a lápide com as cores roubadas do que um dia já tivera vida.

Feito isto ele se pôs de pé e com as mãos unidas, a cabeça abaixada e os olhos fechados e úmidos fez uma prece silenciosa. Rogou aos deuses do Olimpo pelos filhos, que os guardassem e protegessem no descanso eterno dos Elísios, onde, quem sabe um dia, e se fosse digno, se reuniria com eles. Acreditava ser inútil que o cargo que ocupava como regente do sagrado Santuário de Atena, e como Cavaleiro de Ouro, lhe dessem alguma vantagem, já que carregava nas costas tantos pecados, mas não custava tentar.

Foi durante a silente súplica que seu Cosmo, que emanava fraco e triste, de repente esbarrou-se com outro que se aproximava dali, este um velho conhecido seu e que, consciente e inconscientemente, sempre buscava onde quer que estivesse. Este, no entendo, diferente do que sempre fora, vivaz, aconchegante e de uma profundidade ímpar, agora se mantinha melancólico e indolente, exatamente como da primeira vez em que o reencontrara depois desses seis longos anos.

Num sobressalto Saga abriu os olhos, mas não se mexeu. Com a respiração acelerada, tenso e ansioso manteve-se concentrado no farfalhar dos passos sobre a grama fresca que se aproximavam sem nenhuma pressa aparente. Então quando estes já se acercavam do perímetro em que estava eis que a voz em tom contido inquiriu a sentença:

— A dor não passa. Ela nunca passa — houve uma pausa — Você apenas se acostuma com ela. Se acostuma a dormir e a acordar no dia seguinte com ela.

Ao virar-se para trás, Saga buscou pela face amada de Geisty, mas o que viu foi a máscara de amazona que ela usava. A sensação ao olhar para ela era a mesma de ver um muro de cimento cinzento ocultando uma bela paisagem, e mesmo oculto pela máscara podia sentir o olhar impessoal e frio que ela lhe direcionava.

Mesmo vestida com os trajes de treinamento era estranho para ele vê-la com a máscara. Tão diferente ela lhe parecia das lembranças que guardava vívidas em sua memória... Ele entendeu que aquele era um claro sinal que ela lhe dava de que queria continuar mantendo distância.

— Agora a dor lhe parece insuportável, e assim será durante muito tempo — disse Geisty enquanto se aproximava da lápide lentamente — Ela será sua insônia ao tentar dormir, até se acostumar a ir se deitar com ela, e ela será o seu despertador, estará lá antes mesmo que os primeiros raios do sol incomodem os seus olhos. Mas, mesmo assim, você vai se levantar e vai viver a sua vida, e então ela irá com você onde você for... e estará lá... remoendo, comendo você por dentro, pedacinho por pedacinho, lentamente... não te deixando esquecer, porém nunca devastadora o suficiente para conseguir te matar de uma vez.

Saga engoliu em seco enquanto a via agora agachar-se e ficar frente a frente com lápide.

— Então no fim do dia você deita a cabeça no travesseiro e o seu pensamento a abraça até você pegar no sono, exausto, para no dia seguinte o ciclo voltar a se repetir... mais um dia... e depois outro... e outro... É como o castigo que Zeus infringiu a Prometeu. A águia volta todos os dias para dilacerar-lhe o fígado, mas nunca o faz o suficiente para mata-lo... Quem dera me fosse dada a graça de ter ido junto com eles... Os que morrem não sentem dor. Ela acompanha os que ficam aqui, vivos — Geisty disse a última palavra passando as pontas dos dedos sobre os nomes gravados em dourado no mármore.

— Como você aguenta isso? E por tanto tempo? — a voz de Saga não era mais que um chiado. Consumido ele apertava uma mão contra a outra as sentindo geladas e trêmulas, enquanto seus olhos jades molhados acompanhavam as mãos da esposa naquela carícia gelada ao mármore.

— Hump! Você me pergunta isso como se me restasse alguma escolha...

— Não... não foi isso que quis dizer... — o grego tentou argumentar, mas foi logo interrompido pela voz firme da amazona.

— Essa era a opção que eu tinha. A única que me restava. Aguentar. Suportar.

Gêmeos apertou os lábios. Novamente aquele sentimento de culpa surgiu para arrancar todo o calor de seu sangue.

— Me dói tanto imaginar que você precisou passar por tudo isso sozinha...

— Você quer dizer, sozinha sem você, né? — ela levantou o rosto para ele, o encarando por detrás da máscara — Porque sozinha eu nunca estive, Saga. Eu tinha ao meu lado o meu irmão, o meu sobrinho, o meu melhor amigo, e o meu grande amigo e guia espiritual, que ficou dia e noite ao meu lado, me apoiando, me dando forças no momento que eu mais precisei de você e você falhou comigo.

— Geisty...

— Todos eles estiveram comigo, até mesmo os menos íntimos, como Marin, Máscara da Morte e Aldebaran, inclusive quando eu decidi não abandonar você eles estiveram comigo... Nem assim eu te faltei...

— Geisty, me perdoe... Por todos os deuses, me perdoe — Saga implorou voltando a chorar — Eu não sei o que fazer para reparar o mal que fiz a você... eu... eu não queria que nada disso tivesse acontecido conosco, com você... Eu sinto tanto... sinto tanto...

— Não me importa! — a voz seca foi como uma estocada certeira no peito do cavaleiro, que se calou e apenas a encarou angustiado — Não me importa se você sente muito, Saga, por nós, por mim... Não mais. Eu venho nesse túmulo há seis anos conversar com os meus filhos, plantar dentes de leão, chorar e dizer que os amo como nunca amei a ninguém nessa vida. Fazê-los saber que são muito amados, onde quer que eles estejam, é só o que me importa.

— Eles também são meus filhos, Geisty. Eu também os amo — respondeu Saga com a voz baixa e um pouco embargada.

— É mesmo? Não acho que os ame tanto assim, Saga. Caso contrário você teria vindo aqui visita-los muito antes — rebateu elevando a voz — Pelo menos uma vez, uma única vez, nesses seis anos você teria vindo até aqui, teria sentido falta deles... — fez uma pausa e com um suspiro longo procurou recobrar o controle emocional — Não importa se era o Outro ou se era você... Trata-se de algo muito maior, entende? Um sentimento que extrapola as barreiras da nossa consciência... Passaram-se seis anos, e em todo esse tempo você jamais demonstrou o mínimo de sentimento pela nossa perda. Então eu a tomei toda para mim.

— Você está sendo injusta comigo — disse Gêmeos um tanto indignado e também ofendido.

— Injusta?

— Sim. A minha dor é legítima, Geisty, mas não sou tão forte quanto você... eu deixei que ela me anulasse contra a minha vontade, e ela me enclausurou... Eu achei que tinha perdido você também e que nada tinha restado para mim.

— E por isso você permitiu que eu carregasse sozinha essa dor por seis anos.

— Não!

— Permitiu que eu ficasse por seis anos ao lado daquele traste que você se transformou na esperança de fazê-lo despertar desse... desse... desse seu sei lá como chama, torpor, sono de beleza, coma... Seis anos aturando uma criatura que eu sempre precisei manter uma distância segura. Aliás, você faz ideia de qual foi a primeira coisa que ele usou como justificativa para comprar a minha aproximação? Sabe? Não faz ideia, né? — questionou com um grito, vendo Saga fazer um gesto negativo com a cabeça, envergonhado e aflito — Ele me disse que tinha matado o porco do Dimitri. Esmagou como uma barata a cabeça daquele russo maldito. Com isso ele achava que tinha me feito um favor e por isso eu deveria ser grata a ele... Humpf... idiota.

O rosto do geminiano se contorceu numa expressão de espanto e asco. Pelos relatos de Gigars ele já tinha se inteirado dessa informação há tempos, mas desconhecia os detalhes da execução. Por mais ódio que tivesse do antigo Vor russo, jamais seria capaz de cometer tal ato violento e vil. Esmagar a cabeça de um civil com os próprios pés, mesmo este sendo Dimitri, estava longe de ser uma execução digna.

— Você está vendo esses braços? — disse Geisty os esticando em direção ao marido — Eles continuam vazios. Matar Dimitri não trouxe os meus filhos de volta. Nada os traria... Nem se Ele cozinhasse aquele russo de merda vivo e o comesse em fatias.

Saga baixou o olhar o desviando para a lápide silenciosa, que parecia os observar.

— A única coisa que me restava era curar as minhas próprias feridas e tentar trazer você de volta — Geisty continuou — Eu tinha essa dívida moral com você... Eu te prometi que eu seria o seu farol — Gêmeos esboçou uma resposta, mas sua voz foi abafada pela da amazona — Bem, você está de volta, Saga. Não sei até quando, mas a minha promessa já foi paga. Daqui para frente conte apenas com você.

Gêmeos, com os seus botões, pensava que teria sido melhor tomar, dessa vez, um tapa seco no ouvido dado por Touro a ouvir aquilo da mulher que amava. Mas, persistência era uma das poucas virtudes que ele conseguia listar sobre si mesmo. Não estava disposto a desistir.

— Não, Geisty, nada disso está certo. Isso não é justo com você e nem comigo!

— E desde quando a vida é justa, Saga? Idiota é quem acredita que a vida pode ser justa, principalmente para nós.

— Eu não acredito, mas eu estou disposto a mudar isso...

— Eu já ouvi essa história... — resmungou a amazona entre dentes, depois ajoelhada e com delicadeza começou a fazer furos na terra úmida em torno da lápide enquanto neles ia colocando os galinhos dos botões de rosas brancas que trouxera. Tinha esperança de que brotassem e se transformassem em uma roseira.

Toda a ação era acompanhada por Gêmeos, que firme em seu intendo prosseguiu:

— Eu vou fazer diferente dessa vez, eu já estou fazendo diferente! — ele insistiu visivelmente ansioso — Geisty, eu já aceitei que sou... que sou doente. Eu busquei ajuda médica e... bem... em uma única semana eu fui praticamente todos os dias ao hospital. Está sendo uma rotina médica cansativa de exames, consultas com especialistas, tratamento com medicação controlada... até no AA eu estou indo.

Numa retórica que ganhava força a cada palavra dita, enquanto buscava espaço e a atenção da esposa, Saga caminhou em direção a ela, mas foi impedido de prosseguir por um grito raivoso.

— Não pise neles!

Se dando conta de que caminhava sobre a grama enfeitada por pequenas flores dente-de-leão que abrigavam o túmulo dos filhos, Saga recuou desconsertado.

— Desculpe... Geisty, o que quero dizer é que dessa vez vai dar certo, tudo será diferente, eu me sinto diferente, eu estou agindo diferente... Ele... Ele está em completo silêncio. Sinto que está dando certo.

— Ah é? E até quando Ele ficará em silêncio, Saga? Um ano? Um dia? Esse bando de médico que você está indo já te deram um diagnóstico? O que é Ele?

Saga engoliu em seco e raspou a garganta nervoso.

— Ainda não, mas... eu sinto que dessa vez eu vou vencê-lo para sempre... Por favor, acredite em mim... Eu vou fazer tudo que for preciso para proteger as pessoas que amo, por amor e por redenção. Faço isso por todos, mas principalmente por você... Eu amo você, Geisty, eu amo você demais — sentia a voz embargar.

— Então o problema é que antes você não amava o suficiente? — disse ferina a italiana enquanto se erguia do chão.

— Como? — Saga questionou atônito.

— Eu disse que antes você não amava o suficiente, tanto a mim quanto a todos ao seu redor por quem tem apreço, ou já teria tomado essa iniciativa, e não colocado o seu problema nas minhas costas.

— Não!

— Foi preciso você tomar umas boas porradas e um choque de realidade para se convencer disso? De que é o único responsável pelo seu bem estar?

— Não!

— Ah não? Então o que foi, Saga? — disse ela cruzando os braços.

— Não é tão simples explicar... Não o quanto parece...

— Bom, para mim parece muito simples. Você lidou com sua doença, com a sua... maldição, ou seja lá o que isso for, com descaso e negligência, por anos, e sempre culpou aos outros pelos seus desequilíbrios. Ah, a culpa é do Afrodite que te tira do sério e te deixa nervoso, a culpa é do Shaka que é desobediente e rebelde, portanto te deixa nervoso, a culpa é do Máscara da Morte que é nervoso e te deixa nervoso também, a culpa é das dívidas que te obrigam a beber, é da falência, é do Kanon, que além de mau-caráter era seu irmão e nos colocou nessa situação de merda, a culpa é do Camus e da Vory v Zakone... bom... o Camus é um porco e se quiser pôr a culpa nele eu nem contesto, mas percebe que a culpa era de todos, menos sua? Então, um belo dia você encontra uma idiota, vulgo eu, porque aceitei sua proposta, em quem você pode jogar a responsabilidade de manter a porra do seu equilíbrio emocional. Pronto! Resumi para você.

De frente para ela, Saga a encarava com as sobrancelhas contraídas, o rosto lívido e o coração aos pulos. Podia sentir sua pulsação forte nos ouvidos. Por debaixo da máscara imaginava os olhos violetas lhe encarando com o peso do julgamento que ela lhe fazia.

Foram dois segundos onde apenas o vento soprando entre eles era ouvido.

— Eu... acho que esse não é o melhor lugar para conversarmos sobre isso... — foi tudo o que ele conseguiu dizer.

— Fique tranquilo, eles não podem nos ouvir — a voz dela saiu amargurada.

— Você tem razão, digo... — piscou nervoso tentando reorganizar seus pensamentos e não deixar tudo pior do que já estava — Não é de todo errado o que você disse, mas não corresponde totalmente à verdade.

— O que não é verdade, Saga? — o tom era de indignação.

— Sobre os meus sentimentos, sobre minhas atitudes... no passado — ele respirou fundo — Pelos deuses, é tão difícil explicar.

— E qual é a sua verdade então, Saga?

— A minha verdade é que esse momento é o único em anos em que eu me sinto apenas eu de novo... eu... como era antes de todo o meu tormento ter início. A verdade é que eu nunca entendi o que se passava comigo, porque Ele nunca me permitiu entender, como nunca me permitiu agir com responsabilidade, porque isso seria agir contra Ele. Mas, dos meus sentimentos eu sei, deles nunca tive dúvida. Eu sempre soube que te amava, desde antes de todo o pesadelo começar, quando ainda éramos jovens. Eu tenho consciência de todo o mal que te causei, Geisty, nunca serei capaz de mensurar a dor que provoquei e sei que nada do que eu fizer será suficiente para me redimir com você, mas por amá-la tanto é que te prometo que nunca mais permitirei que Ele volte. Eu assumo que preciso de ajuda, por isso busquei os médicos. Esse fardo agora é somente meu... mas é tão difícil carrega-lo sozinho.

O silêncio da amazona angustiava Saga, que agora bem menos entusiasmado prosseguiu:

— Eu preciso descobrir o que acontece comigo... Irei à Ancara essa tarde, na Turquia. O psiquiatra com quem ando me consultando me encaminhou para um especialista no hospital psiquiátrico de lá onde uma junta médica irá avaliar o meu caso. Há uns dias eles vêm analisando meus exames e amanhã de manhã será meu primeiro contato direto com eles — respirou fundo enquanto esfregando as mãos e estalava os dedos — Não vou negar, eu estou bastante ansioso... acho que na verdade... estou com medo.

— Medo? — o pensamento fora verbalizado em voz alta pela amazona.

— Sim, medo... medo de não dar certo, de chegarem à conclusão de que sou um caso perdido, ou pior, inconclusivo — disse, e sua voz era trêmula e angustiada — Medo de... de me entupirem de tranquilizantes... de me enfiarem dentro de uma camisa de força e me jogarem em uma cela branca almofadada. Eu não quero ter de passar o resto da minha vida num manicômio.

— Que bobagem, Saga, isso nunca vai acontecer — disse Geisty num murmúrio.

Gêmeos suspirou longamente dando de ombros.

— Na verdade, o que tenho mais medo é descobrir que o meu caso não tem controle ou cura, e que estou fadado a ferir e magoar as pessoas que amo... e eu juro que se for assim eu prefiro morrer.

Geisty podia sentir a tensão vinda dele, o olhar aflito, a respiração agitada, as mãos inquietas... Ele de fato parecia apavorado, não que por algum momento pudesse ter passado pela cabeça dela que ele dissimularia aquele estado para tocá-la de alguma forma. Não. Já o vira nervoso, irritado, irado, melancólico, triste, preocupado, mas nunca com medo. O temor de Saga era tamanho e tão legítimo que podia senti-lo irradiar em seu Cosmo. Contudo, ela não sabia como lidar com o medo dele, não sabia como confortá-lo ou mesmo se o queria fazer.

— Está deixando o seu medo minar o seu raciocínio, Saga — ela disse, e arrependeu-se logo em seguida. Temia parecer fria demais frente ao desespero dele, então logo emendou uma correção — Digo, você é um cavaleiro de Atena. Não há porque te prenderem num manicômio, nem mesmo conseguiriam fazer isso.

— Exato! Ess da questão! — ele respondeu ansioso — Eu não sei se conseguiria evitar um descontrole, caso eles tentem me internar, e nessas posso acabar mandando um hospital inteiro pelos ares.

— Acho que quanto a isso você pode ficar tranquilo, porque caso o seu Cosmo seja percebido fazendo qualquer bagunça em área civil o que não faltam são cavaleiros de Ouro para te segurarem.

— Que bom que eu posso contar com tamanho apoio coletivo, não é mesmo? — disse irônico.

— Sim — ela disse seca.

Com o coração atormentado, Saga olhou firme para ela. Tinha lhe dito tantas coisas, e ainda queria dizer muitas mais, mas não havia lhe dito o óbvio.

— Geisty...

— Hum?

— Eu sinto vergonha por tudo que Ele fez você passar.

— Então sinta vergonha por Ele e por você também, Saga... por ter permitido.

— Eu sinto.

Mesmo com tanto a ser dito, o silêncio por vezes insistia em participar daquele diálogo, mas o geminiano também insistia em manda-lo embora.

— Eu sei que isso não é da minha conta, e que talvez eu esteja fazendo uma pergunta de caráter ofensivo, mas eu não consigo deixar de pensar que... — fez uma pausa e respirou fundo. Aquilo o incomodava deveras — Nesses seis anos que vocês moraram juntos, você e ele... se relacionavam de alguma forma?

— De fato isso não é da sua conta, mas se quer tanto saber, a única relação que tínhamos era a de distância, a máxima possível, de preferência, mas que ainda fosse possível para ele ouvir a minha voz o mandando ir à merda.

— Entendo... — disse pensativo, sentindo o coração ladrar desesperado — Não é fácil para mim conviver comigo mesmo, digo, com o meu outro Eu, imagino que para todos seja ainda pior. Inclusive, Shaka me disse que o Mu passou a beber e você também.

— Eu sempre bebi, isso não é novidade — resmungou a italiana entre uma das pausas do marido, que continuou:

— Foram seis anos sozinha, e ainda tendo que suportar aquela criatura desprezível te atormentando... Pelos deuses, eu me envergonho tanto de ter sido fraco... você... você tinha toda uma vida pela frente... Por isso, Geisty, eu... eu não te culpo se nesses seis anos você tentou vive-la sem mim, mesmo porque eu não estive ao seu lado todo esse tempo e...

— Cala a boca, Saga! Ma che cazzo di uomo! Stronzo figlio dun cane! Você não entende porra nenhuma! — disse enérgica o fazendo se sobressaltar — Eu sei muito bem o que você está tentando insinuar. Acha que sou idiota? Além do mais, você não tem mesmo que me culpar de nada! Merda! Se tem uma coisa nessa vida que você não tem nenhum direito é de me culpar de algo, no entanto, eu sei muito bem que me culparia caso eu tivesse arrumado outro homem nesses seis anos. Mas quanto a isso você não precisa se preocupar, porque o Outro tratou logo de eliminar a concorrência.

Os olhos jades de Saga quase saltaram das órbitas ao ouvir aquilo. Se Geisty tivesse lhe dado um tiro bem no meio da testa ainda assim não o teria conseguido acertar com tamanha precisão e crueldade. O golpe fora tão abrupto que pego de assalto ele chegou a engasgar-se com a própria saliva e levado a tossir violentamente quase sufocou sem ar. Tentou abrir um botão imaginário na gola simples da camiseta enquanto experimentava uma leve vertigem, e não o encontrando colocou a mão sobre a garganta e ficou assim até recuperar o fôlego.

— Não! Não foi isso que eu quis dizer, pelos deuses do Olimpo, Geisty! — tentava se explicar entre uma pigarreada e outra — Eu nunca te culparia se por acaso você... arrumasse outro homem! Eu provavelmente iria morrer de tristeza e consumido em culpa, mas jamais te culparia.

— Foda-se! Independentemente do que você faria, eu não conseguiria conviver numa boa comigo mesma se fizesse isso. Eu te fiz uma promessa, seu babaca! O que você pensa de mim?

Silêncio.

— Quer saber, dane-se o que você pensa de mim, Saga! Não me importa, porque provavelmente esse tempo em que ficou esquecido dentro de você mesmo acabou te fazendo esquecer de mim também — esbravejou irritada, e batendo as mãos para se livrar da terra entre os dedos deu as costas ao cavaleiro e começou a caminhar em direção à saída do cemitério.

— Geisty?

— Mu é que está certo no fim das contas — o pensamento foi tão alto que escapuliu em voz baixa — Melhor mesmo é eu ficar bem longe de você.

— Eu vou consertar as coisas, Geisty! Eu prometo para você que vou consertar, da maneira certa, como devia ter sido desde o início — disse ele em voz alta fazendo a amazona conter seus passos — Eu prometo. Nunca mais vou dividir esse fardo com mais ninguém, porque eu sei que ele é só meu... Nunca mais vou permitir que Ele te faça mal.

Gêmeos empregava paixão em suas palavras; tinha um último fio de esperança de manter a sua amada ao seu lado, o mínimo que fosse.

E talvez ele tenha ainda acreditado, pode notar a respiração dela em ritmo irregular, o corpo tenso e o Cosmo conflitante que emanava sutil.

— Que bom, Saga. Não vou te dizer que fico feliz porque há muito tempo não sei o que é isso, fico apenas satisfeita, além de bastante aliviada... Aproveita que está empenhado em cuidar da sua cabeça e cuide também do seu corpo, o Outro aprontou poucas e boas com ele enquanto você esteve fora.

— Eu vou cuidar de mim para poder cuidar da gente em seguida... — ele disse num fio de voz. A promessa foi soprada pelo vento até os ouvidos de Geisty.

— Dessa vez não tem a gente, Saga. Você está sozinho nessa. Se cuida... e boa sorte. — ela disse com tristeza, sentindo a garganta apertar.

A passos urgentes Geisty se retirou dali. Não queria que ele notasse qualquer abalo seu e entendesse este como uma brecha para aproximação. De fato sentia que precisava ficar só e afastada, além de dar a Saga o espaço necessário que era preciso para que ele aprendesse a seguir, sem escoras emocionais.

Saga a acompanhou com os olhos até que ela sumisse por completo de sua visão.

Agora sozinho no silêncio plácido daquele cemitério, ele novamente se voltou para a pequena lápide e suspirou melancólico. Sentia o frescor do vento que carregava consigo as pétalas de dente de leão e o cheiro verde da relva. Aquele era o conceito de paz eterna, o qual tão cedo ele não conheceria, ao contrário, tinha um longo e árduo caminho a percorrer pela frente, e só.

A ideia ainda lhe parecia tão estranha... Por instantes chegou a duvidar de que aquela conversa com Geisty realmente acontecera. Era sua mente, confusa, doente e perturbada, que se negava a aceita-la. Porém, ao olhar para a grama, diante da lápide de mármore, estavam lá as duas rosas brancas recém-plantadas. Suspirou pesaroso, nem mesmo podia contar com a inconstância de sua mente nos momentos que buscava alívio.

Perdido em contemplação, juntou as mãos e mais uma vez iniciou uma oração em silêncio.

Eram tantos os pedidos que necessitava rogar aos deuses, tantas as suas suplicas. Muitas delas direcionadas aos filhos. Pedia a eles perdão. Incansáveis vezes.

Ao terminar, apoiou a mão no mármore e despediu-se.

— Adeus, meu filhos. O papai ama muito vocês, para sempre.

Saga caminhou torpe pelo campo verde. Mais uma vez chorava inconsolável, mas em meio a sua dor havia também a convicção de que faria de tudo o possível para consertar sua vida, da mulher que amava e dos amigos. Resolveria os últimos pormenores burocráticos daquela manhã e em seguida partiria para Ancara, o ponto de partida para o que se mostrava ser um dos tantos faróis que lhe guiariam pelo caminho escuro de sua mente na busca de uma cura para o mal que o atormentava.