"Lágrimas de Unicórnio"

Parte 3

Os dias finais do Inverno foram os mais jubilosos e extáticos. Agora se sentiam mais juntos do que em qualquer momento do passado e gastavam longas horas sentados abraçados, lendo um para o outro, conversando ou meditando em quão privilegiados eram por encontrarem a verdadeira e simples felicidade.

Quando se suspendiam as nevadas, faziam passeios pela floresta, brincando como crianças sem temor do futuro. Não sentiam falta de nada, não sabiam o que era a ansiedade e muito menos a culpa.

Somente se deitavam em seus travesseiros depois do início da madrugada e reviviam em lembranças as aventuras do dia, os beijos roubados e os abraços que tinham sabor de eternidade. Sorriam sozinhos com as imagens que precediam o sono, porque elas eram penhores de que havia ainda muito mais amor para ser vivido.

É bem verdade que eles eram exigentes, entretanto, sabiam que não havia limite para eles. O modo como sentiam era um que se deliciava em cada minuto e ao invés de gastar-se nessas delícias, tal qual o fogo consome completamente sua lenha, expandia-se, fortalecia-se e enraizava-se mais.

_Quase toda a neve já derreteu. –Duo observou naquela tardinha, sentado com Akane nos degraus da varanda.

Akane estivera com a cabeça deitada no ombro dele até então, assistindo Gardênia caminhar a esmo pela campina que era o quintal do chalé, e suspirando, pronunciou mais em tom de conclusão do que pergunta:

_Você irá à vila amanhã?

Narciso, sempre vigilante, atentava-se agora ao comportamento dos namorados agindo como um pai enciumado, desconfiado e ao mesmo tempo derrotado e certo de sua impotência contra a escolha da menina. Estava parado bem ali por perto, tomando Sol e acompanhando a conversa.

_Eu devo. Não posso esquecer minha busca.

Ela assentiu, apoiando-o. A saúde de várias pessoas dependia da tarefa que ele tinha para realizar e ela sentia-se contente por notar o traço de nobreza e compromisso que ele sempre exibia quando se referia a seus negócios.

Narciso também julgava muito do caráter do rapaz pela atitude que ele tinha. Até então, achara poucos defeitos, todos irrelevantes, e bufava, sempre mais e mais ciente de que teria de abrir mão de Akane. Estudando o moço com seu fito aguçado, ele pensava em seu antigo mestre. Os dois homens eram diferentes por certo, afinal, foram criados de formas completamente divergentes, mas enxergava no coração de Duo uma bondade e franqueza equiparável a que seu mestre possuía. Olhava o redor, aspirava o ar… a floresta parecia abençoar a presença de Duo e corroborar ainda mais para a tranquilidade dele em entregar Akane ao rapaz.

Brincando com algumas lâminas novas de capim no chão, Duo mencionou:

_Não quer ir comigo quando for voltar para a vila leste?

_Eu quero. –ela o olhou com a surpresa de quem não tinha tido aquela ideia antes, mas deveria ter tido. Assentiu algumas vezes, como se experimentando a proposta e percebendo-a fazer sentido.

Narciso se aproximou do casal, sóbrio e sorrateiro, como se desejasse ser participado do assunto.

_O que acha, Narciso? Ela pode ir? –Duo olhou o unicórnio despojadamente e perguntou. Deixou os braços pendendo dos joelhos enquanto mantinha a vista erguida, incidindo na face da criatura, e aguardava a resposta.

Aproximando o focinho e estreitando os olhos, Narciso fixou-se dentro das pupilas do rapaz, fungou e fez um movimento altivo com a cabeça. Era como se estivesse ponderando o pedido. Ficou concentrado, cavou o chão e relinchou baixo e relutante.

_Eu posso? –Akane repetiu, meiga, chamando a atenção de Narciso.

Ele voltou-se para ela, lançando um fito contemplativo. Soprou na face dela provocando-lhe o riso, e relinchou da mesma forma que havia feito para Duo.

_Acho que isso é um sim. –ela olhou para Duo, risonha ainda, e comentou.

_Ou algo parecido. –ficou indeciso. Encarou Narciso. –"Mas se acontecer qualquer coisa com ela, eu juro que te mato". –e imitou uma voz qualquer, muito grave e pomposa, como se esta fosse a do unicórnio.

Akane gargalhou a valer, mas Narciso não pareceu gostar nada da brincadeira.

Aproximando-se gentilmente, Gardênia veio, detendo-se frente a Duo e soltando um relincho agudo e alegre. Narciso olhou um tanto condenatório para ela também, e por um minuto os dois trocaram relinchos, como se discutissem. Agiam mesmo como os pais da menina, Duo se divertia ao assistir.

Gardênia havia chegado à conclusão de seus exames e as queria apresentar. Depois de toda a fidelidade que vira o rapaz demonstrar a Deathscythe e de toda a agonia empática que ele atravessou enquanto o cavalo estivera doente, ela colhera provas de que Duo reluzia de boas virtudes. Os modos de ele tratar e cuidar de Akane também eram evidentes e desinteressados, testemunhando carinho verdadeiro, pureza de coração e amor nascido para resistir, assim como o foi o de seu mestre e de sua ama. Estava comovida enfim: ver Duo e Akane ali até a colocou um pouco saudosa da época em que eles viviam.

Delicada como não podia deixar de ser, tocou a face do rapaz com o focinho.

_Ah! –ele exclamou regozijando, sentindo-se livre enfim em segurar cada lado da cabeça dela. A textura dos pelos brancos que revestia a pele do unicórnio era muito agradável ao tato, feito Gardênia fosse coberta de camurça. A sensação de alisá-la também se mostrava deleitosa, sentia um calorzinho calmante esparzindo do ponto de contato e adentrando seu corpo. A mera existência do unicórnio era reconfortante e não só os produtos que se podia extrair dele. –Se você queria um beijo, era só pedir. Tenho certeza que Akane não ia se importar… –e Duo a provocou, hílare, experimentando-a soprar no rosto dele antes de escapar de seus dedos. Mas os olhos dela pareciam sorrir, manhosos.

A noite caía e o frio fazia-se mais presente. O Inverno chegava ao fim, contudo oferecia ainda alguns pequenos mementos de sua existência como forma de despedida.

Narciso fez seu chifre acender e na ponta do espiral nacarino ele sustentou uma estrela.

Maravilhado, Duo observou o brilho até cansar os olhos, querendo mesmo registrar a imagem no fundo da memória, porque era uma das vistas mais bonitas que tivera. Sem dúvida devia estar sendo abençoado com sorte por poder testemunhar aquela cena.

Empinando com suavidade de bailarino, o unicórnio desenhou um movimento arrojado de modo que a luz que criava assemelhou-se a uma estrela cadente riscando o céu tingido das cores do ocaso. Depois se colocou no chão e afastou-se, arrastando consigo aquela luz que tocava as árvores e a campina como um facho de luar animado, partindo para a floresta.

Gardênia o assistiu com suave indolência, negaceou com a cabeça, ganhando embalo como um lindo pêndulo fosforescente, e seguiu-o, sua crina se espalhando como se se misturasse ao vento.

_São fantásticos. –Duo expressou, reverente, embevecido. –Não existe nada para se comparar com eles de tão lindos e misteriosos que são…

Akane assentiu e sorriu simplesmente, fixando o ponto da floresta onde vira Narciso e Gardênia desaparecer.

Seguiram sentados na varanda, abraçados, só voltando para o interior do chalé depois que todas as estrelas apresentaram-se a chamada celeste.

Duo acordou cedo no próximo dia. Atrás da cortina, a noite se escondia em plena expectativa do nascer do Sol. Ele vestiu-se preguiçosamente, como se fosse um processo complexo, e depois lavou o rosto. Trançou os cabelos longos sem usar da agilidade que seus dedos ganharam através do hábito, mas parava a cada pouco, feito houvesse necessidade de lembrar-se do próximo movimento. A verdade era que queria dormir um mais, mas a jornada que o esperava era de distância considerável e era melhor adiantá-la o máximo possível.

Ao ver-se satisfeito com sua aparência, levantou-se e espreguiçou, tornando-se por um minuto ainda mais alto do que já era, esticando bem os braços como que para tocar o teto. Parecia um grande gato pardo, manhoso e esperto, acordando com relutância de sua soneca depois de uma noite de farra.

No andar de baixo, ouviu ruído de louça da escada. Suspeitoso, caminhou em passos leves de gatuno, preocupado com a presença estranha que se provou, na verdade, como a dona da casa, de costas na pia, lavando sua jarra de porcelana.

_Mas já está de pé? –ele surpreendeu-se risonho e inconformado. Foi aproximando-se dela e estacou a seu lado.

Ela virou-se um pouco para ele, aparecendo enrubescida e sonolenta.

Trocaram um beijo de bom dia doce e carinhoso.

_Eu tenho muito tempo para dormir – o dia todo se eu assim quiser. Mas você precisa estar bem equipado para sua viagem até a vila.

Ele meneou a cabeça, impressionado, agradecido, mas ainda assim desconfortável em ser alvo de tanto zelo.

Akane havia levantado bem antes dele, pelo visto, porque já havia ordenhado Gardênia e arrumado a mesa com pães e um pote de geleia e outro de mel. Ele sentou-se para comer e ela serviu leite para ele antes de ocupar a outra cadeirinha, o queixo nas mãos, acompanhando-o tomar o desjejum.

Minutos depois, ela beliscou o pão, arrancando um naco de miolo e passou um pouco de geleia, ficando ali, com a cabeça meio torta apoiada na mão, o cotovelo na mesa, mastigando meio de lado, de um jeito bastante infantil e espontâneo.

_Quer algo da vila? –ele resolveu perguntar antes de sair da mesa.

_Não estou precisando de nada. –suspirou. Deixou seu lugar e seguiu-o até a sala, onde o cofre e a lancheira esperavam pela viagem.

Duo abriu a porta e lançou um olhar apaixonado para ela antes de desaparecer no escuro da antemanhã. Viu o sorriso embevecido dela em resposta brilhar na meia-luz como a estrela de Narciso. Não entendeu porque ela não o seguiu, mas preferia assim. A friagem do amanhecer poderia afetá-la, já que não trajava mais que um vestido e o xale e ele mesmo sentiu a diferença de temperatura apesar da espessa capa preta que usava.

No estábulo, preparou Deathscythe para a cavalgada, notando-o mais que disposto e ansioso para sair. Havia se recuperado praticamente completamente e sua aparência melhora muito de modo que era quase impossível lembrar-se da condição miserável que exibia semanas atrás. Pronto e carente de ocupação, perceber-se selado o encheu de contentamento. Ia sentir-se útil de novo.

Ainda não se podia ver o Sol quando saíram. A floresta naquela região era completamente diferente do que ele tinha visto. Parecia mais em paz e menos ameaçadora e havia passarinhos cantando em anúncio a aurora. A trilha até a saída era bem marcada e sem obstáculos e Duo até ousou fazer Deathscythe galopar a toda velocidade, para o prazer do garanhão.

Pararam quando o raiar do astro-rei indicou meio-dia. Akane prepara uma lancheira generosa – pão, queijo e uns bolinhos macios com um recheio cremoso. Duo sentou-se em uma pedra abaixo de uma faia ainda desfolhada, e fez seu breve intervalo enquanto Deathscythe curtia a brisa, parado ali por perto, vigiando.

Com o fim da tarde veio também o fim de sua jornada. As primeiras estrelas apareceram no céu purpura ao passo que Duo cavalgava para dentro dos limites do povoado ao oeste da Floresta Eterna. Notara diferenças ali, a arquitetura parecia ainda mais antiquada, embora mais bem conservada. Havia muitas lojas de artigos extraordinários ao longo das ruas calçadas de pedra como estradas romanas, mostrando que os camponeses viviam em simbiose com o fantástico.

Várias pessoas ainda passeavam pelos calçamentos e olhavam Duo de forma receptiva e cumprimentavam-no de todos os lados. Na praça principal, apeou e foi pedir informações do boticário.

O primeiro camponês já explicou como chegar à botica. Disse tudo o que era preciso saber a respeito do proprietário sem ser perguntado e também indagou sobre a identidade do forasteiro. Minutos foram gastos em uma conversa despretensiosa e separaram-se já como amigos.

Levando Deathscythe pelas rédeas, chegou à entrada da botica que ainda estava aberta. Não havia necessidade de prender o cavalo, e deixando-o no lugar, entrou no estabelecimento, olhando o redor. Estava tudo iluminado por um candeeiro no teto, contudo, o boticário estava a um canto do salão, baixando o candeeiro para apagá-lo e partir.

_Boa noite. –murmurou, inexpressivo, sem interromper sua atividade. –Estamos fechando. No que posso te ajudar? –ele era um homem louro e corado, alto e rotundo, de olhos pequenos e inteligentes. Parecia que já sabia o que o rapaz queria no minuto em que pôs a vista nele.

_'Noite. Desculpe chegar essa hora. Eu venho da vila leste a mando do boticário da Três Estrelas.

_Do outro lado da floresta? –o homem riu animado e deixou de olhar o rapaz, parando de baixar o candeeiro, deixando-o quase perto do chão. Amarrou-o brevemente e aproximou-se. –Você me parece em ótimo estado para quem atravessou a floresta! –e comentou, risonho e um pouco jocoso.

Duo meneou a cabeça, rindo também:

_Eu sei o porquê da surpresa… a verdade é que eu tive de passar uma temporada no chalé na floresta pra poder vir aqui.

_Quer dizer que conheceu a Ane… ela é uma graça, não é?

_Pois é, e graças a ela que estou vivo agora.

_É mesmo difícil sair da floresta ileso. Como Akane está?

_Muito bem. –Duo não sabia exatamente como responder isso, e riu-se, desajeitado. O boticário levantou as sobrancelhas, um tanto malicioso, e assentiu:

_Que bom! Conto com ela para a feira do próximo Verão. Mas me conte, o que meu companheiro do outro lado tem para mim?

_Ele precisa de alguns ingredientes para preparar poções. A lista e o pagamento estão aqui nesta caixa. –Duo tirou o cofre da bolsa, segurando-o com as duas mãos. O candeeiro baixo enchia a botica de luz e suas chamas tocaram a superfície da caixa como que por todos os lados.

_Deixe-me ver… –e tentou puxar a tampa para fora.

_O senhor precisa da chave. –Duo indicou, solícito, porém, começando a ficar confuso.

_Pois não. Onde está? –assentindo, o boticário mirou o rapaz após o lembrete e pediu.

_O senhor não a tem? –Duo ficou surpreso, mas o boticário não entendeu por quê:

_Não, por que eu teria?

_O boticário disse que só o senhor a poderia abrir… –Duo murmurou, remexendo suas memórias do diálogo travado aquela manhã já distante.

_Ah é? Inusitado… será que ele estava mesmo falando de mim? –e coçou a cabeça, encarando a fechadura. Estudou a caixa, virando-a de todos os lados possíveis, como se tentasse ler alguma mensagem escondida. –Por acaso sabe que ingredientes ele precisa?

_Não… e como gosto de uma surpresa, não me dei ao trabalho de perguntar…

_Ah! Gosta de uma surpresa, hã? –o homem irrompeu em uma risada grande que foi enchendo o ambiente em camadas. E seguiu no estudo da caixa, pensando que o rapaz era muito divertido. Ficou tentando decidir que tipo de pessoa sai para executar uma tarefa a qual não conhece completamente. Concluiu que só podia ser alguém extremamente puro e confiável além de dono de uma insensatez elogiável.

Duo suspirou pesadamente, levando um pouco da franja para trás. Poderia ter se enganado com as instruções? Nunca se deparara um com uma tarefa tão simples e ao mesmo tempo tão cheia de reveses.

_Estou começando a reconhecer esse estojo. Ajude-me a apagar as velas aqui e já resolveremos isso. –e pondo a caixa no balcão, o boticário explicou.

Contudo, para Duo nada estava fazendo muito sentido. Não se opôs, entretanto, ao pedido de ajuda.

O candeeiro contava com umas trinta velas e levou alguns minutos para apagarem todas. A botica ia mergulhando na escuridão, mas o luar lá fora vazava pela janela e encontrava os vidrinhos nas prateleiras e a silhueta dos móveis, ocupando o lugar que o fogo deixava.

Trancaram o estabelecimento e Duo seguiu o boticário pela praça. Deathscythe os assistiu passar e voluntariamente começou a acompanhá-los.

Poucos minutos de caminhada os trouxe a porta da carpintaria. Como o artesão morava nos fundos de seu comércio, o boticário deu a volta até o outro lado da quadra por meio de uma ruela de acesso dizendo para Duo esperá-lo por ali.

_O que será que viemos fazer aqui? –o rapaz virou-se para Deathscythe e conjecturou. Será que o boticário estava pensando em serrar a caixa para abri-la? Era uma boa ideia, mas isso não resolveria o enigma da ausência da chave.

_Como eu pensava! –o homem retornou proclamando alto, a caixa ainda intacta as mãos.

_E o que o senhor pensava? –Duo replicou prontamente, burlesco, colocando as mãos na cintura.

_Muitos anos atrás, quando o pai da Ane era moço, talvez mais novo que você, ele passou muito tempo trabalhando de aprendiz e depois de assistente para o velho Howard aqui. –Howard era o nome do dono da carpintaria Tallgeese. –Reconheci a caixa como uma obra dele pelo estilo dos detalhes. –prosseguiu o boticário.

_O senhor está me dizendo que a chave para a caixa está no chalé?

_Com certeza. Acho que seus negócios são com Akane.

Duo recebeu a caixa de volta e a fitou. A sensação de que ela pertencia ao chalé não era sem explicação, então. Nem o desenho intricado dos móveis da casa. Tudo fazia sentido. O pai de Akane tinha sido um hábil carpinteiro-escultor além de tratador de animais. E boticário. Sim, boticário porque ele ensinou Akane a preparar os remédios com as plantas e o leite dos unicórnios.

_Os unicórnios… –Duo murmurou entre os dentes, reiterando sua conclusão.

O boticário assentiu bondosa e espertamente para o rapaz, confirmando a lógica dele.

_Tem lugar para passar a noite? Melhor só voltar para lá quando amanhecer…

Duo guardou a caixa na bolsa novamente e deu de ombros:

_Posso dormir encostado em alguma árvore por aqui…

_E morrer de frio? –o homem pilhericamente retrucou, erguendo uma das sobrancelhas. Duo imitou a expressão dele. –Seja meu convidado! Não é sempre que temos um forasteiro por aqui e imagino que você traz muitas boas histórias para distrair o meu jantar!

_Pode acreditar que sim…

_Me conte todas!

E os dois rumaram para a casa do boticário.

O dia de Akane foi tão pacato quanto o de Duo. Ela voltou a dormir após ele sair, acordando algumas horas depois para iniciar as tarefas do dia. Como o esperado, a casa estava silenciosa. Nunca tinha notado tal silêncio. Não era o mesmo que restou depois da morte de seu pai. Aquele silêncio tinha sido triste, mas fora deixado como herança para que nele ela discernisse as vantagens da solidão e tivesse ambiente para desenvolver sua contemplatividade. E como não podia deixar de ser, ele guardava uma lição, uma que ela não havia conhecido até aquele dia. Aquele estado prolongado de solitude a ensinara a apreciar a presença de uma boa companhia.

O silêncio de então era a consequência de seus estudos anteriores – a simples saudade. Sem a voz dele e sua presença, a casa ficou muito vazia, com muito mais cantos para ecoar a falta dele e fazê-la lembrar de que estava só. Sorria, achando curiosa sua nova disposição. Depois de ter passado cada minuto ao lado de Duo, tinha ficado viciada em senti-lo por perto, em ouvi-lo, nem que fosse o assoalho rangendo debaixo dos passos dele. Viu-se saudavelmente dependente – assim como se depende do ar, do alimento e do abrigo para viver – da sensação de saber que os olhos dele estavam derramados nela bem como os seus pensamentos. Mas confiava que não estaria só por muito tempo.

Sorria, sorria sem perceber, a cada minuto, como único estado de espírito a demonstrar. Foi com essa felicidade que acordou e foi com essa felicidade que foi dormir.

Duo dormiu no quarto de hóspedes na casa do boticário. Graças a seu negócio de distribuição de cosméticos para todas as realezas, ele tinha uma das maiores casas da vila e uma das mais confortáveis, para não dizer luxuosas. E mesmo isso não tirou a bondade, candura e hospitalidade do coração dele e de sua esposa. A refeição tinha sido muito divertida e deliciosa, Duo entreteve seus anfitriões com suas aventuras passadas e explicou como havia sido salvo e chegou ao chalé da floresta. Ao mencionar Akane, perguntava-se quão evidente ficava por meio de suas palavras o quanto estava apaixonado por ela. O boticário fazia caretas marotas, provavelmente ele desconfiava.

Acordou de madrugada outra vez, foi para a cozinha onde os empregados já trabalhavam e pediu algo para quebrar o jejum. Enquanto comia seu sanduíche, o boticário apareceu para despedir-se. O dono da casa tinha hábito de levantar cedo de qualquer forma, e Duo acompanhou-o em uma xícara de chá. Mandando lembranças para a mulher e os filhos do boticário, o rapaz apanhou suas coisas e foi buscar Deathscythe para partir.

_Espero por uma nova visita sua! Veja se consegue trazer Akane também! –o boticário acenou do pórtico. –Ela quase nunca sai do chalé…

_Muito obrigado por tudo! Até logo! –Duo acenou expansivo e com as rédeas comandou Deathscythe a partir.

Ver o chalé surgir entre os galhinhos das árvores sob a penumbra do entardecer causou-lhe uma sensação inédita. Algo se revirou em seu íntimo, uma alegria, uma expectativa, uma ansiedade, um arrepio, um prazer e um medo – pela primeira vez sentiu-se como se estivesse chegando em casa. Riu, erguendo-se um pouco da sela, pedindo para Deathscythe se apressar.

Do lado de fora do estábulo, Narciso estava parado como um monumento. Branco, marmóreo e imponente, ele olhava para dentro da floresta que começava depois da campina, metros à frente. Devia estar ouvindo algo ou esperando por algo, Duo fez Deathscythe diminuir o passo para aproximar-se. Entretanto, a recepção que Narciso concedeu ao rapaz foi amistosa. Ele desmanchou sua postura de alerta, erguendo as patas dianteiras e lançou um olhar satisfeito e, quem sabe, curioso. Aquela era primeira expressão que Duo registrava ver no unicórnio.

Apeou de Deathscythe e o instalou em sua baia. Gardênia já dormitava na sua e não se incomodou. Narciso seguiu do lado de fora, no mesmo lugar, e relinchou para Duo quando ele passou em direção da entrada na varanda, entretanto Duo ainda não sabia decifrar a língua dele.

O forno e o fogão estavam acesos. O aroma das guloseimas enchia o lugar e acertava certeiramente o estômago na primeira inspiração. Ele estava sendo esperado pela quantidade de comida sendo preparada.

_Ane? –chamou alto e alegremente, indo para a sala.

_Duo? Já estou descendo! –a voz dela viajou fácil e clara pelo ar, musical.

Colocara a torta para assar e deixara o ensopado no fogo brando e fora se arrumar. O manequim de sua mãe era muito próximo ao dela e ela escolhera um dos vestidos maternos para usar aquela noite.

Duo ficou no pé da escada aguardando-a e deu-se conta de que estava no melhor lugar para apreciá-la ao passo que Akane deslizava pelos degraus com a graça de uma ave. O tecido do traje parecia caro – era possível ter certeza disso pelo intenso tom de verde que exibia e por seu caimento pesado. O recorte quadrado do decote dava ares de busto clássico ao colo, pescoço e cabeça de Akane, mas a expressão que brincava na face dela nada tinha de serena. Fizera o cabelo em uma trança holandesa que caía em seu ombro como uma mecha torcida de seda. Mais nada a adornava. Melhor assim, porque ele estava certo de que ela não precisava de nenhum adereço. Os olhos feitos de esmeralda e o sorriso feito de pérolas eram perfeitamente suficientes.

_Tudo isso para mim? –ele a provocou, abrindo os braços.

Ela riu, borbulhante, e em um leve salto saiu da escada direto para ele.

Ele a fez rodopiar e a pousou no chão dando-lhe um beijo.

Estreitando o rosto amado entre suas duas mãos, ela retribuiu o beijo e suspirou depois.

O azul daquelas íris nunca falhava em atraí-la e amava ver como este contrastava com o preto das roupas que o cobriam. Não conseguia lembrar-se de alguém com olhos mais puros que aqueles, mais bondosos, mais sinceros. Correu as mãos pelos ombros dele, contornando seus ossos e músculos, deixou-as escorrer pelos braços e apanhou suas mãos, erguendo-as e trazendo-as para perto de seus lábios.

_Me conte, como foi? Fez o negócio?

_Não. –simples e chocante pronunciou.

_Oras! E por quê? –alarmou-se, falando alto e abrindo bem a boca.

Ele gargalhou, gostando da reação crua dela.

_O boticário se opôs a algo? Por que se esse for o caso, eu posso ir falar com ele… –e de repente ela soou séria e concentrada, franzindo um pouco as sobrancelhas e olhando para baixo.

_Nada disso… na verdade, ele foi muito legal, me ajudou e me hospedou na casa dele.

_Então o que houve? –a inconformidade era explícita em sua face.

Encaminharam-se para a cozinha para que Akane terminasse de aprontar a refeição. Duo encostou-se ao batente e ficou assistindo-a mover-se de lá para cá, checando a torta, mexendo o ensopado, escolhendo temperos e tirando louça do armário.

_Essa caixa que está comigo era do seu pai, Ane. É de você que vim comprar os ingredientes.

_Ah é? –parou, encarou-o em um segundo de suspense. Meneou a cabeça depois, colocando as mãos na cintura. –Que engraçado! –e riu, buliçosa.

_Engraçado, é? Você acha engraçado eu perder dois dias da minha vida atrás disso? –ele ficou assombrado com a reação dela e a atormentou, usando ironia e gracejo.

_Oras, toda missão tem seus percalços… –e mordeu o lábio inferior, muito ciente de que o importunava.

_É o seu carisma que te salva, sabia? –e retrucou, soando irritado, mas seu fito contradizia sua voz e mostrava que ele fingia. Ela riu, sem se importar e assistiu-o apanhar os pratos da mesinha da cozinha e os levar a sala de jantar.

Akane logo veio com a panela de ensopado:

_Mas de fato, estou perplexa… Quem diria…? Eu sabia que o boticário era amigo de meu pai, mas nunca me ocorreu de que ele precisasse de algo por aqui. –ela expressou-se melhor então.

_Nem a mim. As explicações dele foram um tanto obscuras. Eu acho que ele pensa que seu pai ainda vive. –e apresentou, lógico.

Akane aceitou a hipótese.

_Depois de comermos, procuramos a chave no quarto de meus pais. Enquanto isso me diz como foi lá…

Ao passo que organizaram a mesa, sentaram-se e desfrutaram a refeição, Duo viu-se falando de seu encontro com o boticário, de suas impressões da vila e do que soube a respeito do pai da moça. Ela estava presa a cada palavra, adicionando seus comentários e perguntas, assentindo e rindo.

_Podemos partir amanhã para o outro lado da floresta se encontrarmos tudo que precisamos hoje. Concorda? –e foi assim que encerrou seu relato.

Ela assentiu, sem hesitação. Era esperado que agissem assim.

Deixaram a mesa intacta após comerem e subiram para o quarto principal do chalé. Apesar de inutilizado, estava limpo e organizado à perfeição, como todos os outros cômodos da casa. Como a menina estivera provando vestidos ali uma hora atrás, havia ainda uma vela queimando, mas já por acabar, em cima de uma penteadeira lindamente esculpida em madeira com detalhes de folhagem e flores e até mesmo passarinhos em redor do espelho, nas bordas e pés. Todas as figuras gravadas com riqueza de detalhes um dia foram pintadas em cores fortes e era possível ver no resquício de tinta que os pássaros haviam sido lindos piscos-de-peito-ruivo e as flores, cor-de-rosa, entre a folhagem verde-água.

_Foi o presente de casamento de meu pai para minha mãe. –Akane explicou enquanto Duo apreciava a peça de perto, apagando a vela e colocando a lamparina no lugar.

_Seu pai era muito talentoso.

Ela sorriu em retribuição, cheia de orgulho. Deixou a caixa na cama e foi até o armário que guardava os pertences do antigo dono da casa, verificando cada prateleira e gaveta. Ao mesmo tempo, Duo pediu licença para olhar as gavetinhas da penteadeira e os outros cantos do cômodo.

Terminaram por localizar a chave presa numa fita de cetim bege pendurada entre alguns cintos e correias entre casacos e jaquetas de couro. O formato do apoio no alto da peça era idêntico ao do orifício da fechadura, decorado com filigranas no vazado que sustentavam uma pedra branca e leitosa, iridescente. A gema fazia Duo lembrar-se do brilho dos unicórnios ao anoitecer.

Akane segurou o objeto com delicadeza e o inseriu na fechadura, dando as voltas necessárias para descerrar o estojo. O interior dele era forrado de seda branca intocada pelo tempo e continha um saco bem gordo de couro e um pergaminho cuidadosamente dobrado em três e selado com um sinete marrom exibindo três estrelas de seis pontas.

Duo tirou a lista da caixa e a abriu perante os dois. Leite unicórnio, pelos da crina do animal, alguns pós de pedras, suco feito de pétalas de uma flor que Duo nunca ouvira falar, folhas secas dessa mesma planta e lágrimas de unicórnio eram os itens pedidos.

_Bem, posso fornecer tudo, menos as lágrimas. Há anos que os unicórnios não choram. –depois de correr a vista uma segunda vez pelo rol, prestando atenção às quantidades mencionadas e comparando-as mentalmente com seu estoque, Akane informou.

Duo ficou um tanto mistificado com a existência de lágrimas de unicórnio, já que nunca vira animal algum chorar lágrimas. Aquele era mesmo um mundo totalmente novo.

_Espero que o boticário não se importe. –e comentou simplesmente, achando que era preciso falar algo.

A moça voltou sua atenção para o interior da caixa:

_Este é o pagamento…? –e puxou a boca do saco, folgando-a e revelando o punhado de moedas e pedrinhas brilhantes lá dentro.

_É sim. –ele olhou também o rutilar do metal dourado. Devia haver bem mais de mil moedas lá dentro.

_Depois precisaremos devolver a parte que corresponde às lágrimas.

Ele assentiu, pensativo. Certamente, aquela seria a maior quantia do dinheiro, pois pela declaração de Akane era fácil entender que as lágrimas eram um produto raro e precioso. Sorriu, desapontado.

Foi a primeira vez que Duo visitara o laboratório. Era uma sala menor que qualquer quarto, com uma mesa comprida e larga no meio, um forno, prateleiras e gavetinhas etiquetadas com precisão. Akane foi apresentando e explicando vários itens presentes no ambiente, mostrando ervas e frutas, convidando-o a cheirá-las, advertindo sobre os perigos das misturas.

Em pedaços de folha de papel pardo e grosseiro, ela o orientou a separar os pós e as folhas secas nas medidas necessárias enquanto ela enchia as garrafinhas com o suco da flor e separava as mechas de pelos.

Guardaram todos os pacotinhos de ingredientes e vidrinhos dentro da caixa. Quanto ao leite, Akane ordenharia Gardênia ao amanhecer para levarem o líquido um pouco mais fresco.

Akane foi para seu aposento logo a seguir, preparar sua mala, o que não lhe tomou muito tempo pois já havia começado a organizar algumas roupas para a viagem no dia anterior. Duo, por sua vez, não tinha nenhuma bagagem para aprontar, embora Akane insistisse em preparar uma bolsa com uma muda de roupa, o cachecol, dois pares de meias e as luvas de couro. Ele não resistia, pelo contrário, gostava de ser mimado e Akane tinha aptidão para fazer isso.

Por fim, foram arrumar a cozinha e, depois de lavar os rostos, as mãos e os pés, encaminharam-se a seus quartos, exaustos. Careciam de repouso para que iniciasse bem a jornada do dia seguinte. Iriam madrugar mais uma vez, mas Duo imaginava que então o maior obstáculo da travessia seria a distância, pois contava com Akane como guia.

O despertar no dia seguinte foi um déjà vu dos anteriores. Ele abriu os olhos contra vontade, vestiu-se com indolência, calçou as botas, penteou e trançou os cabelos e foi para a cozinha.

Akane cantarolava baixinho e calmante, tudo pronto para o desjejum. O galão de leite já estava junto da bagagem dos dois e ela preparava o lanche para o primeiro dia de viagem.

_Já comeu? –ele tomou a prestimosidade dela como indício de que estava animada para o passeio. Sorriu, divertido, sentando-se.

_Sim. –e já encheu a xícara dele com leite, mexendo a bebida com um pedaço de canela. –Vou verificar se todas as janelas estão trancadas.

Duo tomou um pedaço do que restara da torta do jantar, comeu pão, tomou leite e devorou mais dois daqueles bolinhos de recheio cremoso.

Minutos depois, Akane conferiu a bagagem, adicionou mais uma ou outra coisa a sua bolsa, certificou-se que a caixa de encomenda estava bem protegida, procurou a chave mais uma vez em seu pescoço e decidiu-se pronta para partir.

_Hey, Akane… não precisa ficar ansiosa. –Duo parou na passagem entre a sala de jantar e a sala e murmurou, altivo e espertamente, cruzando os braços e apoiando-se no umbral.

Ela levantou os olhos para ele e os estreitou, armando um bico. Lembrava-se muito bem a que diálogo ele fazia referência. Duo tirou tempo para rir a contento do desagrado dela, mas minutos depois, ela sorriu um pouco satírica, suspirando, tomando-o por tolinho.

Trancando a porta da frente, saíram os dois na alvorada, as cabeças cobertas do capuz de seus casacos, o sereno umedecendo suas roupas. Duo carregou Deathscythe com as malas, prendendo-as na sela, de modo que ninguém o poderia montar. Akane não fazia caso de viajar a pé.

O casal despediu-se de Gardênia e Narciso, acariciando-os e conversando atenciosamente com eles, garantindo que voltavam logo. Os dois prestaram bastante atenção e Narciso os seguiu até a entrada da floresta, fornecendo um pouco de sua claridade para eles, como se os tivesse mandando em segurança.

A primeira meia-hora fizeram em silêncio, um pouco sonolentos, um pouco meditativos. O Sol nascia rápido quando se estava entre árvores porque não era possível acompanhar sua subida. De repente, a luz que atravessou a floresta permitiu ver que já haviam se iniciado as preparações para a Primavera, as árvores abundando de brotos, os pássaros atravessando o ar de vez em quando ao ensaiar seu coro. Entretanto, a temperatura era úmida e o chão estava molhado, salpicado de pocinhas da neve que derretia e pingava dos galhos.

Talvez, no dia seguinte, folhas e botões estariam visíveis, Duo considerou, usando de base o início súbito que observou das outras estações, contudo, entender a floresta se provava um jogo de azar. Se ela tinha mesmo vontade própria, não adiantava fazer muitas conjeturas.

Virou-se para Deathscythe e relanceou Akane caminhando do outro lado do cavalo. As bagagens sobre a sela o impediam de vigiá-la, mas achou tê-la visto esfregando às mãos, aquecendo-se.

_Akane, por que você não canta para nós? –e ele sugeriu, ainda olhando em direção dela, mesmo sem podê-la enxergar.

_Está bem. –prontamente, ela começou a cantar aquela que era balada favorita do rapaz.

Ouvi-la contando fazia-lhe bem. Era uma combinação de fatores: lembrava-se daquela balada cantada por sua mãe, recordava-se dela entretecida em seus sonhos quando se recuperava no chalé, ajudava-o a relaxar e distrair-se na caminhada e a saber que Akane estava ali. A letra canção fazia-o pensar no que sentia pela moça e tomar decisões.

Tinha de avaliar o presente e decidir se, após concluir sua missão, tinha tudo o que precisava para embarcar na nova aventura com que se deparava. Era a primeira vez que sentia aquela necessidade de voltar para algum lugar. Encontrara um lar no profundo da Floresta Eterna, por acaso ou por destino – não interessava – e era lá onde queria ter a vida tranquila e ao mesmo tempo diversa e prazerosa que notava Akane levar, trabalhando e aproveitando da mais pura paz junto de Narciso e Gardênia.

Expressara-se a respeito de não desejar deixá-la. Não mentiu. Contudo, como faria isso? Poderia ser inesperado da parte dele, mas só podia pensar em dar a moça o que qualquer moça merece, o que sua mãe também deveria ter recebido, porém a vida caprichosa lhe negou. Estava incerto quanto ao que conseguiria arranjar com as setecentas moedas de ouro. Pensava em vender seu trailer também, já que não via mais utilidade nele ou era capaz de levá-lo para o interior da floresta. Também havia suas economias para serem somadas ao montante. Ainda, poderia não ser o suficiente para comprar um anel e pedi-la em casamento…

Entretanto, se de fato não fosse, ele não deixaria de pedir-lhe a mão. De qualquer forma, daria a ela seu coração, sim, já o tinha dado, e não duvidava da disposição dela em aceitá-lo e cuidar dele. Não era por arrogância que pensava assim. Sabia que Akane entendia o quanto o amor dele era real. Ela jamais o questionara ou hesitara em aceitar aquele sentimento, apenas retribuiu e retribuiu.

Seus pensamentos o tinham feito vaguear tanto que deixara de ouvir a canção. Voltou à realidade como um nadador vem à tona desesperado por ar, mas Akane continuava ali, solfejando, embora tivesse trocado de balada.

Ele suspirou pesado. Riu-se depois, lembrando-se da frase que virou refrão entre os dois: não precisava ficar ansioso.

O problema é que ainda restava um tanto da indisposição que desenvolveu dos seus tratos com os changelings. A última vez que estivera naquela posição, com uma garota do outro lado do cavalo, estava correndo risco de vida e sendo ludibriado. Ele sabia que Akane não era um changeling, mas ali era território deles e não havia razão para descuidar. Associara tudo que há de vil aos changelings, e com razão, assombrado principalmente pela visão dos animais agonizantes ainda. Não mencionara aquela cena para Akane. Talvez ela até já soubesse daquela prática das fadas, mas de qualquer maneira preferiu poupá-la da menção. Não queria para ela a mesma frustração que se abateu no peito dele quando viu as criaturas e sabia que não poderia ajudá-las.

De súbito, notou a canção ser interrompida. Deathscythe mirou o alto, ficando agitado de forma beirando a loucura. Duo tentou segurar as rédeas dele e mantê-lo no lugar, entretanto o cavalo tomara posse completa de toda sua força e lutava para escapar, incansável.

_Deixe-o ir! –Akane comentou, a voz dela vinha carregada de calor, tão intensa irrompera pelo ar.

Abrindo mão da correia, Duo assistiu Deathscythe empinar furiosamente, relinchar e coicear antes de disparar aparentemente sem direção.

A essa altura, ouviram o chiar das asas e um changeling mergulhou do topo das árvores, pousando em cima de Akane, derrubando-a. Ela não conseguiu conter o choque e ficou lutando com a fada no chão.

O reflexo de Duo não o traiu, mas antes de poder desenhar qualquer movimento para ir salvá-la, foi abordado por uma fada também e recebeu seu próprio combate para vencer.

Nenhum dos dois tinha dúvidas dos motivos do ataque – era vingança o que trouxera os changelings ali, calculadamente, enquanto estavam despreparados e sem a presença de Narciso. Eles odiavam os unicórnios e a forma como a pureza dos animais os expunha e insultava. Jamais poderiam replicar a natureza dos unicórnios, só eram capazes de duplicar os humanos com suas falhas e imperfeições.

Tanto que, enquanto se debatia, Duo se viu lutando não mais com a fada flácida e repulsiva, mas com um homem forte e pesado, de olhos viciosos. O poder do agarre e dos golpes daquela imitação era insuperável. Se ele enfrentava aquele ser com tanta dificuldade, perguntava-se o tempo todo com o que Akane estava tendo de lutar enquanto a ouvia gritar, não em desespero, mas com calor de cólera e agressividade. De qualquer modo, tudo o que ele desejava era ir até ela, ajudá-la, e esse anseio lhe conferia resistência.

Após receber a sua parcela de golpes, ele revidou com persistência e furor levar o changeling a inconsciência. Já tinha estado em brigas piores e mais desvantajosas e não tinha medo de sair ferido delas se fosse para ganhar.

Sem perder tempo, arrastou-se se aproximando de Akane, saltando sobre o changeling convertido em um rapaz magro, mas musculoso, enquanto este tentava dominá-la por agarrá-la por trás e ameaçar-lhe o pescoço com uma longa faca feita de uma lâmina de vidro. Ele parecia sussurrar qualquer coisa no ouvido da menina, encostando seu rosto ao dela de um modo invasivo e detestável, e ela apertava os olhos fechados enquanto esforçava-se para sair do agarre que buscava contê-la. Com o choque, a arma caiu e transformou-se em múltiplos cacos pontiagudos.

_Duo! –Akane chamou, erguendo-se do chão depois de livrada e tirando os cabelos dos olhos, soando desesperada enfim. Conferiu se o outro atacante seguia nocauteado e avançou sobre os contendedores, querendo ajudar a terminar a briga. Entretanto, era difícil diferenciar um do outro ao passo que eles tentavam se matar. O changeling desfez-se de seu disfarce e enterrou as garras no braço de Duo, enviando veneno para a corrente sanguínea do rapaz. A toxina era tão poderosa que sua ação era quase instantânea. A testa de Duo orvalhou em suor debaixo de sua franja ao passo que ele tentava revidar os ataques. Mesmo em tanta desvantagem, não deixava seus inimigos saírem ileso.

Akane jogou-se entre os dois, tentando terminar o disparate e encontrar outra forma de vencer aquele conflito, mas foi afastada com uma unhada da fada na altura de seu colo. A fada distraiu-se com a moça e avançou sobre seu corpo, jogando-a ao chão mais uma vez e pondo-a terrivelmente desorientada. O changeling armou as garras e abriu a boca, revelando seus dentes afiados, finos e longos, prontos para tomarem o pescoço da moça e feri-la irremediavelmente.

Duo não perdoou o novo e bruto golpe que viu Akane levar e notar as intenções do inimigo só redobrou sua sanha. Seguindo o changeling e procurando no chão um dos cacos da lâmina, ele o enfiou nas costas magrelas e de aparência doente do changeling movido por sua súbita descoordenação e ira impulsiva, enterrando fundo o fragmento entre um par de costelas e sentindo um sangue viscoso sujar sua mão. Contudo, logo em seguida, foi acertado por uma pedrada vigorosa que o fez desmaiar.

O changeling perfurado foi derrubado também, amortecendo a queda de Duo, e por um minuto houve um silêncio muito absorvente, tal qual ar, som e espaço estivessem convergindo para aquele ponto da floresta e chocando-se em um volume de forças que anulavam umas as outras.

Uma gargalhada escarninha e mortal suavemente abriu o caminho nessa ausência de movimento, como que para fazer o tempo voltar a correr. Aquele changeling que havia desmaiado se recuperara e viera em auxílio do companheiro, munido de uma grande pedra que tomara de perto de uma raiz.

Agora que não precisava mais dela, atirou-a a alguns metros de seu pé e riu-se, entre satisfeito, festivo, agridoce e irado, abaixando-se e removendo com brusquidão o corpo de Duo sobre o de seu companheiro de missão. Tudo que Akane podia divisar em sua confusão eram sons agourentos e vultos. Por segundos, não foi capaz de entender nada e fixou os olhos no que imaginava ser a fada, querendo encontrar um ponto por onde começar a construir sentidos. A fada seguiu acocorada, mexendo em qualquer coisa no chão até que, rindo e relanceando Akane, ergueu seu companheiro ferido. Antes de sair, chutou o que Akane identificava como uma mancha negra ao chão que seguiu completamente inerte.

_O acerto de contas está feito, donzela, como tinha de ser: vocês tomaram algo de nós, agora tomamos algo de vocês. –chiando chistoso, a fada robusta apresentou.

Enfim a mente dela recuperou o ritmo acelerado de antes e distinguiu a mancha como Duo deitado inconsciente. O grito de terror e desespero que escapou de sua garganta prometia rasgá-la em duas, de tão agudo e súbito e dolorido que se provou.

Akane pôs-se de pé numa prontidão desnatural, tropeçou no vestido rasgado na tentativa de pular nas fadas, contudo, para eles, ela já estava mais que derrotada – não representava nada a não ser motivo de riso. O sofrimento que causaram era o melhor prêmio que poderia ser extraído daquele assalto. Para ficarem quites do roubo que sofreram, os changelings tomaram a vida do rapaz e privaram Akane da companhia que ela mais amava e significava sua alegria da vida inteira.

Do modo que caiu, ela permaneceu, sentada sobre os joelhos um pouco amortecidos, os olhos cravados no rosto morto do rapaz. Não acompanhou a partida das fadas e nem se preocupou ou temeu mais a presença delas. Também não deu atenção a novas presenças que se revelaram, frenéticas.

Eles haviam chegado tarde demais. Deathscythe e Narciso, arfando e relinchando embravecidos, saltaram juntos de trás de uma moita, seguidos da célere Gardênia. Os garanhões tiveram tempo de empinar e fungar para os changelings que partiram, um se apoiando no outro, mas não tiveram desejo de segui-los e pisoteá-los, como talvez devessem, porque Akane prostrada no chão com as mãos agarradas no tapete de folhas os perturbava mais.

Por um instante ela também aparentou morta.

Gardênia achegou-se dela com leveza e relinchou calmamente, querendo despertá-la. Deathscythe por sua vez foi até Duo e cutucou-o com o focinho no rosto, nos ombros e no peito, seu fito vidrado absorvendo uma imagem e uma ideia que sua mente não queria aceitar. Relinchou, inconformado, buscando em Narciso e Gardênia algum apoio, alguma ação, e só obteve a imobilidade serena e compenetrada dos unicórnios.

Akane endireitou-se um pouco e, de gatinhas, aproximou-se do rapaz. Deitou a cabeça no peito dele e não ouviu nada lá dentro. Sabia que seria assim, mas de qualquer modo, se abismou e sofreu, soltando um soluço. Aprumou com dificuldades.

_Duo… –gemeu, baixo, pegando a mão do rapaz. –Não… –sussurrou, horrorizada ao dar conta da falta de reação da pele dele. –Não, por favor… não diga que meu para sempre já acabou… –e resmungava, em dor.

Narciso baixou a cabeça protetoramente sobre ela e bufou, meneando a cabeça em desapontamento, reprimenda, atordoamento… simplesmente não conseguia mais organizar o que sentia. Gardênia veio para perto também, relinchando baixinho com um murmurinho, um som diferente de qualquer um que equinos podem produzir. Olhou a face do rapaz para registrar a expressão confusa e indefesa que jazera nela e moveu sua atenção para Akane.

Os olhos dela não tinham mais profundidade, nem brilho, nem fogo. O estado de êxtase em que vivera extinguiu-se do íntimo dela de uma vez de modo que roubou a cor de sua compleição. Depois de tantas promessas trocadas, depois de tantos quadros mentais de alegrias e sonhos pintados, experimentou a decepção tão abrupta e amarga quanto seu amor era inesperado e doce.

_Acorde, vamos… volte, volte… –cada palavra repetida trazia uma lágrima que descia quente e agonizante, o pranto transformando a expressão doce da menina em carrancas de angústia.

O tremor começou em seus lábios e foi conquistando todas as partes de seu ser, caminhando com destreza e cobrindo completamente como uma nuvem de gafanhotos. Gritou, não tão intensamente como da primeira vez, mas mais como um protesto, e esmurrou o peito do rapaz, a floresta toda atenta as lamúrias. Ao mesmo tempo, as lágrimas fluíam e salpicavam o rosto do moço, numerosas como pingos de chuva. A menina prendia os dedos nas dobras da roupa dele, soluçando e gemendo, a tristeza açoitando-a a ponto de ela sentir-se doer por dentro, perdendo o ar, perdendo a força, perdendo a razão.

Deathscythe ficou andando curtíssimas distâncias, indo e voltando, cavando o chão e sacudindo a cabeça, resfolegando e relinchando, tão incapaz de concordar com a cena quanto de mudá-la.

A mágoa de Gardênia seguia sendo expressa por barulhinhos e Akane, buscando algum apoio naquele momento de sofrimento tão agudo, lembrou-se dela ali e passou a alisar o alto da cabeça dela, entre as orelhas, e correu a mão pelo pescoço longo.

Primeiro, Gardênia ergueu a vista para a menina e, depois, levantou a cabeça. Engoliu seco ao ser abraçada e fechou os olhos com força enquanto sentia o agarre de Akane se intensificar, percebendo seu coração despedaçar-se ao passo que o mundo de Akane ruía. Relinchou e fungou, desejando ter braços e mãos como uma jovem humana para poder consolar a moça que queria bem como a uma filha.

Quando Akane desfez o abraço para respirar, secou seus olhos com as costas das mãos e encontrou um brilho cristalino fluindo dos olhos do unicórnio. Levou as pontas dos dedos as bochechas peludinhas de Gardênia e sentiu quão cálidas eram aquelas gotas de água que nasciam ali.

Lágrimas de unicórnio.

Narciso relinchou, incomodado, enfim também rendido ao luto. Assistir Akane sofrer tão desconsoladamente o amoleceu, o chantageou até, e ele baixou-se sobre as próprias pernas e passou a derramar pranto igualmente.

Respirando fundo algumas vezes, a menina esforçou-se em serenar o âmago de modo a encontrar em sua mente aquilo que era necessário lembrar-se sobre as lágrimas. Pega naquela cena, percebeu algo familiar e, no profundo das memórias infantis, reviu aquela tarde em que sua mãe fora encontrada morta. Os unicórnios agiram da mesma forma e seu pai havia tentado reviver a esposa com as lágrimas que obteve de Narciso e Gardênia.

Tateando sua roupa imediatamente, procurou seu vidrinho de tônico emergencial, arrancando-o do cinto. Ainda estava inteiro apesar de tantos choques. Destampou-o e esvaziou-o na terra, aproximando depois a borda dele dos olhos de Narciso, colhendo as grossas gotas cristalinas que ele derramava. Gardênia ofereceu também o seu pranto.

De tão concentrada na ideia de uma solução, Akane até tinha cessado de chorar. A esperança que abrilhantou seu espírito por meio dos meandros de lembranças a cingiu de frieza e calculistamente ela trabalhou. Arrumou a cabeça de Duo com cuidado, entreabrindo os lábios dele, e despejou as lágrimas delicadamente, imaginando como elas escorreram sedosas pela garganta.

Ficou a examinar o rosto do rapaz tão fixamente que seria mesmo capaz de captá-lo tomar fôlego, nem que debilmente, ao passo que uma das suas mãos segurava a dele, assegurando-se de que ele seguisse quente.

O motivo pelo qual sua mãe não pudera ser revivida residia na ausência de calor corporal, mas o sangue de Duo ainda corria, Akane imaginava, em reflexo das batidas derradeiras.

Narciso seguiu com seu pranto mudo e resignado, amargo, e Gardênia pousou de novo sua cabeça no tronco de Duo, movendo-a carinhosamente para lá e cá.

Deathscythe tinha acompanhado tudo de maneira inquieta até então, entretanto, seus instintos trouxeram-no uma compreensão do que se passava e ele estacou, ansioso pelo desenrolar dos fatos. Cavou o chão ali, sacudindo o rabo, embora quase não tivesse pelos para abanar ainda, e notou Akane suspirar entre ansiosa e frustrada.

A moça colheu mais lágrimas de Narciso, molhou os dedos nas lágrimas de Gardênia que empoçavam na camisa do moço e alisou os lábios dele com aquela umidade. Acariciou-os com angústia, contornou-os com paixão, seus olhos fixos almejando por um sorriso a moldá-los outra vez. Em seguida, olhou o vidrinho cheio das lágrimas deliberando derramá-las em nova tentativa de ressuscitá-lo. Antes, porém, debruçou-se e o beijou com todo o restante de suas forças. Respirou fundo e entregou um pouco de seu fôlego ao rapaz, o pranto retornando a escapar por suas pálpebras entrecerradas.

Duo estava sendo lavado por tristeza, tocado por tristeza, e esperava-se que tristeza fosse a sua cura.

_Volte para mim, por favor… –e gemeu, mantendo a boca junto a dele.

Foi quando notou um tremular nos lábios dele e a mão que agarrava se contraiu. Ergueu-se abruptamente e assistiu os olhos dele se descerrarem com lentidão.

Duo respirou fundo e encarou o telhado de galhos entre o céu e sua vista. O que tinha acontecido? Haviam feito um parada? Teria ele deitado para tirar um cochilo? A última coisa da qual se recordava era ouvir Akane cantar. Porém, aos poucos, uma sensação de cansaço começou pesar em seus membros e ele suspirou, tentando erguer apenas a cabeça do chão e sentindo uma pontada de dor.

O focinho de Deathscythe surgiu em seu campo de visão e rinchou, aflito. Lambeu-o depois, descuidadamente. O cavalo o ficou assistindo sem piscar por um minuto e depois se voltou para um dos lados, como que convocando alguém.

_O que está rolando? –Duo enfim conseguiu resmungar, e era impressionante como mantinha um ar levemente brincalhão em sua voz.

Ouviu o barulho de movimentos pelo chão.

_Como você se sente? –a voz de Akane evidenciou-se então. Em seguida, a face dela, corada e molhada, marcada pela angústia, apareceu para ele junto de Gardênia.

_Eu? Estou cansado… dolorido… por que você está com essa cara? –ele falava vagarosamente, mas alto e claro. Sentia os incômodos na sua cabeça, calor e seu braço latejando, mas ainda assim achava que, apesar de inteira, Akane passava por mais sofrimento naquele instante.

Ela sorriu melancolicamente e levou sua testa ao peito do rapaz, prostrada pelo alívio, novas lágrimas nascendo de seus olhos, mas desta vez de alegria.

Gardênia produziu um barulhinho de alegria e manteve uma vigília carinhosa sobre Duo. Ele levou a mão do braço bom até as costas da moça e enquanto a alisava, mergulhou no fito atencioso de Gardênia, intrigando-se sobre o que tinha perdido.

Demorou até ele estar em condições de levantar-se. Akane não saía de cima dele, agarrada as dobras de sua camisa, chorando silenciosamente ao mesmo tempo em que ria. Depois que Narciso a convenceu de deixá-lo, Akane refez-se e ajudou Duo a se sentar antes de analisar os ferimentos que o rapaz havia sofrido. Do vestido, a menina rasgou uma atadura para o braço dele. Quanto ao golpe de pedra, este não fizera mais nada além de ferir superficialmente o couro cabeludo dele e provocar-lhe um galo. Não havia nenhum motivo para preocupações. Qualquer dano grave e interno tinha sido apagado pelos efeitos das lágrimas bebidas. Não havia nem mesmo rastros das toxinas do veneno do arranhão.

Enquanto o examinou, foi explicando sobre o ataque e as memórias do rapaz começaram a aclarar. Conforme as imagens vinham a ele, lhe subia um ódio, mas Akane foi pronta em amainá-lo:

_Já passou… não há mais nada que deve ser feito. –concluiu, reflexivamente.

Deathscythe não havia perdido nenhuma carga.

Os changelings sentiam-se vingados.

Duo estava vivo.

O que mais poderiam desejar?

_Está tudo resolvido. –e suspirou, decidindo, olhando-o com intensidade e até mesmo frieza, forçando-o a concordar com ela.

Ele franziu as sobrancelhas, indisposto em cooperar:

_Não estou contente. –aquela situação não significava justiça.

_Nem eu. Eles te mataram. –ela não tirava a razão dele e também não os perdoaria pelo que fizeram. –Mas agora a maior retribuição que podemos dar-lhes é seguir em frente. –porém, preferia o curso da prudência. Não queria dar-se ao luxo de perder Duo outra vez ou de arranjar mais problemas com os changelings. Não havia porque pegar um curso que só os levaria a destruição. –Um dia, eles se darão conta de que perderam. Tenho certeza que, na hora certa, receberemos a compensação. –e concluiu, meditativa, tentando agir como o seu pai faria se estivesse ali. Ele havia sido um homem ousado, mas argucioso, que sabia escolher suas brigas e aceitar suas derrotas.

Duo bufou, absorvendo as ideias apresentadas. Compreendia todos os motivos dela e até concordava que o melhor era esquivar-se dos perigos do que procurá-los. De fato, os changelings eram estranhos a qualquer conceito de justiça e provavam isso repetidas vezes. Assim, preferiu deixar o assunto morrer.

Seguiram juntos e em silêncio. Akane buscou o lanche entre as bagagens presas na sela de Deathscythe e lembrou-se do frasquinho cheios do restante das lágrimas. Guardou-o em um lugar seguro antes de apanhar a lancheira e foi sentar-se com Duo para tomarem um segundo pequeno almoço. Demoraram-se bastante naquela pausa. Queriam recuperar o máximo de vigor possível para seguir com a caminhada. Ainda faltava bastante para atravessarem a floresta.

Ele ficou pensando a respeito da forma fabulosa com que fora devolvido a vida. Mirou Gardênia e Narciso, perplexo. Precisava agradecê-los, por mais que isso sempre fosse uma retribuição insuficiente a tudo que tinham feito por ele. Colocando-se de pé enfim, aproximou-se de Gardênia e Narciso enquanto eles se serviam de uma moita com pouquíssimas folhas e enfiou as mãos nos bolsos. Esperou os dois lhe darem atenção:

_Muito obrigado. –e simplesmente, pronunciou.

Gardênia pareceu sorrir, emocionada, e trouxe a face junto à dele, afagando-o levemente. Narciso estufou o peito e meneou a cabeça, tentando agir como se não tivesse feito nada importante.

Duo riu para ele, achando-o engraçado por esforçar-se em manter tanta pose.

_Devo tudo a vocês… –Duo murmurou então, brincando uma orelha de Gardênia. –E a você também, amigão… –e virou-se para seu cavalo, alisando o pescoço dele.

Deathscythe veio por trás, mansamente e em resposta ao dono, relinchou, alegre, e lambeu o rapaz no rosto de novo. Duo riu e fez uma festinha nos poucos pelos de crina que Deathscythe tinha. Então, sentiu Gardênia bater em seu ombro e indicar a moça à distância, apreciando o quadro como se fosse um sonho. Havia algo de poderoso naquela imagem que dava vontade de chorar, colocava inúmeras emoções em ebulição dentro de seu peito. Amava-o demais. Duo não sabia, mas fora o poder e o tamanho daquele amor o que, realmente, o ressuscitara.

De entre os animais, ele relanceou-a. Enterneceu seu fito querendo fazê-la sentir-se abraçada só por aquele olhar:

_E não me esqueci de você. Muito obrigado, Ane.

Ela meneou a cabeça e encruzou os braços. Não se moveu. Percebeu que iria começar a chorar outra vez e não queria isso. Abriu um sorriso enigmático para ele e forçou-se a parecer distante.

Alguns instantes em seguida, se organizaram para partir.

Despediram-se outra vez de Narciso e Gardênia, que desejavam voltar ao chalé e guardá-lo para o retorno de seus mestres.

O resto da viagem foi feito sem imprevistos.

A não ser a falta de vontade de conversar.

Depois de um dia inteiro de caminhada no que podia ser chamado de silêncio absoluto – pronunciaram somente instruções e avisos ocasionais – acharam-se na clareira do lago, onde se conheceram. A luz do Sol já não os tocava, embora em algum lugar ele ainda estivesse se pondo.

Deathscythe bebeu grandes goles da água que, até três dias atrás, ainda era gelo. Os namorados também tomaram bons goles e banharam as mãos e as faces.

Enquanto a penumbra se instalou, ficaram sentados perto da margem, sentindo a umidade e observando a neblina formar-se suavemente cobrindo a superfície do lago como se fosse gaze. Era calmante. Gradualmente, calculadamente, de um modo que só a natureza poderia fazer, o luar surgiu e emprestou sua claridade, fazendo do lago seu espelho.

Akane achou por bem fazer os cuidados nos ferimentos de Duo agora que havia luz. Desenrolou a bandagem e rasgou o resto da manga dele para examinar os cortes.

_Está doendo? –havia um leve inchaço em redor das lacerações.

A voz dela veio como uma surpresa boa para enfeitar ainda mais a placidez selênica do cenário. Ele sorriu, e se havia alguma dor de fato, esqueceu.

Ela tirou os olhos do rosto dele e voltou a trabalhar. Rasgou mais um pedaço do vestido, a anágua aparecendo, umedeceu o trapo e limpou o sangue da pele dele, diligentemente, silenciosamente.

_Por que tá calada assim?

Deitando a cabeça sobre um dos ombros, ela suspendeu sua mão no ar antes de passar o pano pela pele dele mais uma vez:

_Acho que fiquei impressionada… –e o mirou de soslaio, um pouco reservada. Contudo, estava sorrindo.

Ele assentiu, sem precisar que ela explicasse mais. Sabia bem que demoraria certo tempo para que os traumas se apagassem do humor de Akane. Duo respeitava sua tristeza porque entendia que ela precisava de um momento sozinha depois do que havia atravessado. Se ele a tivesse visto morrer, provavelmente sentiria-se muito agoniado. Certamente flagraria-se sem chão.

Mudaram seu lugar de repouso para entre as raízes de um plátano, sentando-se abraçados e envolvidos por uma manta de lã. Foi ali que dormiram, encostados um no outro.

O novo dia os encontrou ali e foi Deathscythe quem os despertou, relinchando e fungando sobre seus rostos. A baforada inconveniente dele era quente e úmida. Porém, ele precisou insistir já que o casal estava muito esgotado da aventura do dia anterior para acordarem tão prontamente.

Foi Akane quem acordou primeiro. Não se assustou ao ser recebida pela grande cara do garanhão, mas riu baixinho e travessa, alisando de leve o nariz rosado. A seguir, localizou-se embrulhada nos braços de Duo e no cobertor e suspirou, aconchegando-se mais.

O radiar da manhã estava por toda a parte, a floresta parecia atenta a eles e disposta a conversar. Assim, a menina começou a desembaraçar os pensamentos e emoções que o dia anterior havia perturbado. Perguntou-se se um dia esqueceria que quase perdera Duo. Tentou imaginar-se vivendo sem ele. Se nunca o tivesse conhecido, sua vida seria tão diferente. Maravilhava-se com o poder ora criativo ora destrutivo das forças do acaso, mas estava agradecendo a ele por tudo de bom que ele fizera.

Procurou conforto no peito do moço, enterrando o rosto no pescoço dele e colocando-se a pensar em nada e apenas celebrar o calor e o aconchego que experimentava ali e só ali.

_Eu amo você. –falou, abafado.

E com isso deixou-se de ficar abatida porque concluiu que somente se afetara tanto pela perda dele porque o amava de todo coração. Sim, só um sentimento puro e provado poderia ter despertado angústia até nos unicórnios. Todo amor acompanha certa medida de sofrimento.

Notou a mão dele deslizar por seu braço e estreitá-la mais contra o peito.

_O que você falou? –ele pediu para saber, descarado. Tinha entendi muito bem, havia acordado quando a notou mover-se de leve e ouviu Deathscythe relinchar. Porém queria escutá-la repetir e não escondia suas intenções.

_Eu te amo. –mostrou-lhe a face e sorriu com a vista.

_Ah é? –e a envolveu com os dois braços de modo que ela não podia escapar.

_Ah é. –ela assentiu, manhosa, pousando as duas mãos abaixo da base do pescoço dele, remexendo em sua gola.

_Quanto? –ele acariciou o nariz dela com a ponta do seu tentadoramente e investigou.

_Não sei dizer. –prontamente apresentou, o tom de voz distraído.

_Não sabe? Que audácia! –e irritou-se com ela, punindo-a com beijos na testa, bochechas e nariz. –Como assim não sabe?

Ela começou a gargalhar e fez-se pesada nos braços dele de modo que se deitou e o trouxe junto sobre si:

_Não sei dizer por que não sei medir. –e ainda havia um resto de risada em sua garganta.

Ele estacou, focalizando bem os olhos dela.

_Eu te amo mais. –e explicou depois, maroto.

Trocaram um fito de cumplicidade até seus sorrisos ficarem lassos em seus lábios. Akane esticou os braços sobre os ombros dele antes de enlaçar-lhe os pescoço e trazê-lo perto para beijarem-se.

Duo fez questão de mostrar-se vivo, de apagar os medos e as dúvidas, de fazer o coração dela acelerar e lembrá-la de que ele não permitiria sequer um momento de tristeza prevalecer enquanto estivessem juntos. Perderam-se naquele beijo, tão profundamente, tão inexoravelmente, que se tornava mesmo muito fácil ser feliz – só precisavam um do outro.

Mas Deathscythe tinha pressa e reclamou aborrecido, fazendo os dois separarem-se.

_É… melhor deixarmos os momentos água com açúcar para mais tarde. –e ajudando a menina a se levantar, Duo brincou, dando razão a Deathscythe.

Akane riu irresistivelmente e alisou o rosto dele.

Foram se refazer a beira do lago para poderem partir. Havia muita caminhada a ser feita ainda.

_Sabe… Quando eu entrei na floresta, tinha certeza que conseguiria muito mais histórias impressionantes para contar, a ponto de me tornar famoso. E é verdade: com quantas pessoas você já conversou que morreram alguma vez? –ele a provocou, sem perder o hábito de divertir-se mesmo com a desgraça.

Ela meneou a cabeça, tentando não rir, sem saber se ficava de fato zangada com ele por levar tudo na brincadeira ou compartilhava da mesma despreocupação.

_E definitivamente, há males que vêm para bens: agora temos lágrimas de unicórnio para fornecer ao boticário da Três Estrelas. –e depois de um minuto de consideração, ela suspirou, sorrindo e comentando, mostrando uma melhora de humor.

Ele levantou as sobrancelhas e deixou o queixo ceder um pouco. O fato tinha lhe passado despercebido até aquele ponto. Trocou a expressão de surpresa por um grande sorriso, parou de caminhar por um minuto e observou, exultante:

_Nós temos sorte, Akane. –a face dele iluminava-se, vibrante de prazer, exibindo uma ternura simples e envolvente.

Ela mordeu os lábios e deu de ombros, travessa. Não se importava com o nome daquilo, contudo, não falhava em se maravilhar-se com seus efeitos. Era uma das melhores sensações do mundo – olhar para ele e saber-se tão dele quanto ele era dela. Era mais que o bastante, sim, era excedente e transbordante, mais do que poderia desejar.

Deram as mãos.

A jornada até a vila prosseguiria ainda por mais dois dias, prazerosa e alegre como deveria ser e depois de terminada a busca, os dois estariam livres para planejarem outra vez. Contudo, não criavam ansiedade quanto ao futuro, não careciam porque tinham completa certeza dele.

Mesmo depois de findadas as viagens e aventuras que ainda desejavam viver, ainda não seria o fim para eles. Eram donos da mais pura forma de amor, aquela capaz de arrancar lágrimas de unicórnios, e para sempre estariam juntos como a sorte os juntou e como nem ela os haveria de separar.


Bom dia, leitores!

O segundo conto da série chega ao fim - a parte 3 de "Lágrimas de Unicórnio" está postada.

Esse conto me deu um trabalho aflitivo por semanas, mas no fim, fiquei contente com o resultado. Depois que eu termino a história e as ideias decantam, consigo enxergar a totalidade dela e a compreendo melhor. Pode ser que ela não seja um exemplo de estrutura, coesão e coerência, mas é divertida.

Duo e Akane tem um jeito muito espontâneo, eu tive trabalho de convencer a mim mesma que eles se amavam nessa história, proque eles fazem isso de um jeito tão natural, aí, pode ser que exagerei um pouco nas divagações românticas.

O terceiro conto da série deve chegar lá para Fevereiro. Está cozinhando aqui na minha cabecinha. Até lá, tenho muito trabalho a fazer, escrevendo o querido "Tentando a Sorte" e investindo nas últimas partes do P² Challenge que, se tudo correr bem, termina!

Beijos e abraços!

27.12.2012