JON
Para um exército tão pequeno aquelas pessoas podiam ser uma multidão bem irritante.
Todas as pessoas do pequeno exército nortenho, sulista e do Povo Livre parecia estar aglomeradas entre a pequena torre e o campo de neve onde ficava a plataforma elevada para a qual Jon estava sendo guiado, todos curiosos com o desenrolar da situação. Finalmente Jon Snow descobrira algo em comum entre os povos do sul, norte e para além da Muralha: eram todos fofoqueiros incorrigíveis.
Stannis tentou guiar Jon pelo meio da multidão até a plataforma de madeira elevada onde um prisioneiro estava sozinho, o barulho dos cochichos ao redor deles zumbindo como um bando de abelhas. A chegada do Lord Comandante havia inflamado os ânimos de todos ali. O Rei e o bastardo subiram sozinhos deixando os lords e cavaleiros lá embaixo assistindo a frente da multidão.
Com um leve choque de realidade, Jon percebeu que Theon Greyjoy estava completamente diferente do que se lembrava, quase irreconhecível. Suas mãos estavam acorrentadas para cima em um tronco, vários espaços vazios nas luvas onde os dedos foram arrancados. O cabelo era branco, quebradiço e bem pouco, como o cabelo de uma velha que caía aos poucos lhe deixando poucos fios brancos longos cobrindo parte de seu rosto. O rosto, assim como o corpo, era magro e fraco, com uma pele enrugada e ressecada. Tinha vinte e poucos anos, mas parecia ter cinquenta a mais. Quando viu Jon Snow subindo na plataforma o Vira-Casaca abriu a boca surpreso, mostrando aquela boca ferida e quase sem dentes, mas nada falou.
"O que diabos Ramsay Snow fez com ele?", Jon pensou, tentando reconhecer nele o jovem desprezível e malicioso por trás da criatura quebrada.
O Rei não se aproximou dos dois, ficando parado no alto da escada e deixando o Lord Comandante se aproximar do prisioneiro a passos lentos. Ele era acusado de matar seus dois irmãos, e sendo ou não mentira, ele havia tomado Winterfell a traição e ajudado os homens de ferro a tomarem o Norte. Isso era problema de família.
Os dois ficaram se encarando em silêncio por alguns momentos. Theon deu um sorriso torto de escárnio.
- O bastardo voltou para Winterfell. Sim, – Theon riu, os olhos sem brilho nenhum – eu lembro seu nome, Jon Snow.
- Eu não sei exatamente o que fizeram com você – Jon o olhou com desprezo – mas eu sei que você mereceu.
O prisioneiro se contorceu nas correntes, o corpo inquieto, mas os olhos apagados não desviavam dos olhos de seu inquisidor.
- Eu entendo porque você ia querer tomar o castelo – Jon falou, sua voz calma, mas num tom alto o bastante para que todos os ouvirem em bom tom – eu entendo porque você não gostava da Casa Stark. Você não gostar de meu pai ou de Lady Catelyn, até a mim, eu realmente entendo você me odiar. Nunca gostei de você. Mas Robb? Trair a Robb? Eu não entendo o por quê.
O riso do Vira-Casaca se transformou numa careta de dor.
- Eu era um refém, eu era um refém...
- Sim, você era um refém de meu pai, eu sei. Eu não ligava, sinceramente. Se você caísse de um cavalo e morresse, ninguém se importaria de verdade – ele se aproximou mais, ficando a um passo do prisioneiro – mas meu pai já estava morto. Robb era senhor de Winterfell. Você não era refém de Robb, você era amigo dele. Eu não quero saber porque você não seria fiel a mim, já que você não se importa comigo da mesma forma que eu não me importo com você, eu quero saber como diabos você pôde fazer isso com Robb.
Theon baixou a cabeça soltando um leve gemido como se as palavras do rapaz causassem dor física nele.
- Você não entenderia, Snow.
- Não, eu não entendo. Eu não entendo como você teve a coragem de trair a única pessoa nesse mundo que tinha algum tipo de apreço por você. A única. Ninguém gostava de você, Theon, nem em Winterfell, nem nas Ilhas de Ferro ou então não teria passado dez anos em Winterfell sem receber uma única carta de sua família nem para perguntar se estava vivo. E porquê alguém gostaria? Você é escroto, sempre foi. Traiçoeiro e maldoso. Covarde. Ramsay arrancou seus dentes? Seus dedos? Seu pau? Deveria ter arrancado sua língua.
- Não... – Theon gemeu – Stark gostava. Robb Stark gostava de mim.
"Só os deuses sabem porquê".
- Robb não gostava de você – Jon falou tão frio que chegava a soar cruel – Robb tinha pena de você. Pena. Ele tinha pena de você ser um refém no castelo, de sua família não se importar, de você ser sozinho no mundo como um fantasma em Winterfell. Ele foi seu amigo para que você não ficasse sozinho. Robb tinha um coração muito bom, eu não tenho. Eu queria mais era que você morresse.
- Não, não, não. Não era assim. Você mente.
- Você nunca foi digno de nada em sua vida além de raiva, desprezo ou pena.
- Jon Snow mente. Você tem inveja de mim, ciúmes.
- Inveja? Olha para você mesmo, Greyjoy. Veja o que você se tornou.
- Inveja – Theon cuspiu as palavras com raiva – ciúmes por que Stark gostava mais de mim do que de você.
Jon riu.
- Está louco? Ramsay te enlouqueceu? Acha que eu tinha ciúmes de meu irmão?
- Sim – o prisioneiro ergueu a cabeça para encarar o Lord Comandante, seus olhos totalmente sem vida – isso sempre foi sobre Robb, não é mesmo? Winterfell girava ao redor do jovem herdeiro e nós também. Disputávamos sua atenção como dois idiotas, contentados em receber migalhas. Stark também não te amava, Snow, ele tinha pena de você. Tinha pena do irmão bastardo filho de Lord Eddard com uma puta. Achou que ele te amava? Se enganou, bastardo.
A mão do Jon repousou distraidamente no punho de Garralonga, mas o rosto não demonstrou emoção nenhuma.
"Não mentiu".
- Palavras ousadas para alguém a um passo da morte. Você não tem medo de morrer, pelo que vejo.
- Os homens têm medos estranhos, Snow, mas isso você sabe melhor do que eu. Conheço bem seus medos e a sua covardia.
- Não sou covarde.
- Não? E porque fugiu para a Muralha?
- Eu não fugi, eu fui porque eu quis – Jon respondeu com raiva. Ser chamado de covarde diante de todos o irritou mais do que qualquer outra palavra do prisioneiro – nunca em minha vida cometi nenhum crime e não aceito minha honra ser questionada quanto a isso, me juntei á Patrulha como voluntário para defender o reino com honra e glória como eles tem feito por gerações.
- Foi isso que disse a seus irmãos negros? – Theon se virou para a multidão os assistindo onde pelo menos cinco ou seis homens vestiam preto. – Fiquei curioso, alguém acreditou?
- Não ouse questionar minha honra ou minha coragem. Você não tem ideia do que é a Muralha, ou do que está além da Muralha. Eu vi e vivi coisas que as pessoas nem acreditariam se eu contasse, e você acha que pode me dizer do que eu tenho medo? Não existe muita coisa nesse mundo que bote medo em um irmão da Patrulha da Noite, Greyjoy, muito menos a mim.
- Tenho certeza que não há nada além da Muralha que lhe dê mais medo do que os fantasmas que o esperam em Winterfell.
"Você não pode ser Senhor de Winterfell" a voz do pequeno Robb ecoou nos ouvidos de Jon como fazia em seus pesadelos.
- Você está louco.
- Sim, eu estou louco, mas não quer dizer que eu esteja mentindo. Você não cometeu nenhum crime, é verdade, mas logo cometeria.
- Não sou um criminoso, eu sou um homem de honra.
- Eu sei que não faria, mas poderia ser acusado. Ou talvez... quais foram as palavras que você disse? "Caísse de um cavalo e morresse"? Ou talvez alguma acusação mais torpe que o mandasse direto para a Muralha ou para um túmulo. Era bem próximo a Arya Stark, era sua irmã favorita... talvez fosse acusado de molestar a pequena Arya, a verdadeira é claro.
Num impulso Jon levou uma mão ao pescoço de Theon enquanto a outra se fechou sobre o punho da espada, toda frieza dando lugar a raiva.
- Eu jamais, jamais tocaria em minha irmã.
- Eu sei que não – o prisioneiro falou, a voz engasgada com a mão apertando o seu pescoço, mas com um riso de escárnio – e Lord Eddard também sabia, mas ele não estaria lá, não é mesmo. Pela primeira vez em toda sua vida seu pai não estaria lá para lhe salvar dela. Lady Catelyn. Quanto tempo até que ela se livrasse do filho bastado do marido dela? Sem Lord Eddard por perto, não havia ninguém que a impedisse de se livrar de você. Foi por isso que você fugiu. Preferiu chegar a Muralha de cabeça erguida com essa pose de bastardo buscando por glória do que permanecer em Winterfell depois que seu pai partisse para o sul lhe deixando nas mãos de Lady Catelyn, para sofrer ou ser enviado a Muralha por qualquer outro motivo no futuro. Como eu disse, eu lhe conheço, Jon Snow. Eu lembro de você. Agora vá, faça. Quebre meu pescoço e poupe nós dois de terminarmos essa conversa.
"Mate o garoto, Jon Snow", a voz de Meistre Aemon sussurrou em sua mente.
A mão de Jon Snow se fechou mais forte sobre a garganta do prisioneiro o fazendo engasgar, toda a raiva contida brilhando nos olhos cinza do bastardo como as chamas de R'hllor. Ninguém fez nada para impedir. Ninguém desviou o olhar e pelo que pareceu uma eternidade, Theon Greyjoy engasgou sem ar enquanto a mão firme e vingativa o estrangulava, até que Jon voltou a falar.
- Você quer que eu te mate, mas eu não vou – ele soltou a garganta do prisioneiro e aproximou o rosto para falar olhando direto nos olhos sem vida, cara a cara – eu não vou matar você. Eu não tenho poder aqui e você não é meu prisioneiro, longe de mim atrapalhar a justiça do Rei. Você sabe o que Stannis Baratheon faz com prisioneiros que tem sangue de rei? Stannis os queima vivos. Exatamente como você fez com Bran e Rickon, não foi? Duas crianças que você viu nascer e você os queimou.
Os olhos vazios de Theon pareciam conter uma infinidade de segredos não contados sobre Winterfell e os garotos que não matou, mas ele não desmentiu o que Jon falou.
- Sim – concordou com voz rouca – eu queimei Bran e Rickon. Matei a todos. Queimei Winterfell.
- E você vai queimar. Parece que ninguém pode escapar do destino que os deuses escolhem não é? E eu, o bastardo, vou estar assistindo na primeira fila e os deuses bem sabem que eu não erguerei um dedo para diminuir seu sofrimento. Se sua morte vai quebrar algum coração, não será o meu. Tomara que leve todos os seus arrependimentos para o túmulo.
"Mate o garoto, Jon Snow".
O Lord Comandante deu as costas ao prisioneiro, a raiva parecendo emanar de seu corpo enquanto se afastava. Greyjoy o assistiu partir quieto, até Jon se juntar a Stannis no começo da plataforma e os dois se dirigirem juntos para a pequena escada de madeira. O Rei desceu primeiro, mas antes que o rapaz descesse o prisioneiro gritou por seu nome.
- Jon Snow. Você teria ficado? – Greyjoy perguntou – Se Robb não fosse apenas um rapaz verde ainda, se Lord Stark tivesse deixado o castelo nas mãos de Robb ao invés das mãos de Lady Catelyn, você teria ido para a Muralha ou teria ficado ao lado dele?
Snow parou, com um pé já na escada, o vento bagunçando seus cabelos soltos.
- Que diferença isso faz agora?
- Depois que Lord Stark partiu, Lady Catelyn quase enlouqueceu. Bran não acordou por muito tempo e ela se trancou no quarto com ele, parecendo enlouquecida. Robb Stark se tornou Senhor de Winterfell no mesmo dia que Lord Eddard partiu.
O rapaz ficou quieto ainda na escada, pesando as palavras.
- Eu não sabia disso.
"Eu não sei de nada, não é mesmo Ygritte".
- Como saberia, você não estava lá com ele. Também não estava lá quando decapitaram Lord Eddard. Eu estava ao lado de Robb quando recebeu a notícia, mas ele se afastou de todos e preferiu ficar sozinho. Acho que era assim que ele se sentia, sozinho. Você também não estava lá quando ele entrou nas Gêmeas como um hospede para um casamento e foi morto como um cão, quando costuraram a cabeça de Vento Cinzento a seu corpo mutilado – os olhos de Theon pela primeira vez mostraram algum brilho, um brilho como aquele que Jon lembrava, um tom de vida – onde a gente estava, Jon? Deveríamos ter morrido ao lado dele.
Jon o encarou por um tempo, a raiva dando lugar a algum sentimento mais pesado e muito mais difícil de carregar antes de responder.
- Sim, deveríamos.
- Acho que não sou o único que levarei esse arrependimento para o túmulo.
Sem responder, Jon desceu a escada de madeira e se misturou a multidão.