Capítulo 3
Querida senhorita Alarch,
Devo lhe confessar que desde que a vi pela primeira vez não pensei em nada nem em ninguém mais…
Ao dia seguinte Edward desceu pelas escadas farejando o ar a cada passo. Abriu bem as fossas nasais, mas não pôde perceber nem um leve rastro de fresias. Pode que a senhorita Swan lhe tivesse feito caso e se foi. Com um pouco de sorte não teria que voltar a suportar sua rabugice. Essa idéia fez que se sentisse curiosamente vazio. Devia ter mais fome do que pensava.
Renunciando a qualquer intento de precaução, avançou para o salão preparando-se para o primeiro golpe na tíbia com algum móvel imóvel. A verdade era que se alegrava pela dor que lhe causaria. Cada novo arranhão ou ferida servia para lhe recordar que estava vivo.
Mas não estava preparado para o impacto que lhe esperava. Enquanto cruzava o salão sem encontrar nem um só tamborete em seu caminho, um raio de sol lhe deu totalmente no rosto. Edward se deteve cambaleando-se e levantou uma mão para protegê-lo rosto de seu deslumbrante calor. Fechou os olhos instintivamente, mas não pôde fazer nada para defender do alegre canto dos pássaros ou da brisa perfumada de lilás que lhe acariciava a pele.
Por um momento acreditou que estava ainda sonhando. Que ao abrir os olhos se encontraria em um prado verde sob as sedosas flores brancas de uma pereira. Mas quando os abriu seguia sendo de noite a pesar do traiçoeiro calor do sol em seu rosto.
— Beckwith! — vociferou.
Alguém lhe deu um golpinho no ombro. Sem pensá-lo, Edward se deu a volta e tentou agarrar a seu agressor. Embora só agarrou ar com as mãos, o azedo aroma de fresias seguia lhe fazendo cócegas no nariz.
— Não lhe hão dito alguma vez que é de má educação esconder-se de um cego? — grunhiu.
— E parece que também perigoso. — Embora a essa voz familiar faltava seu aspereza habitual, tinha uma qualidade que fazia que lhe acelerasse o pulso.
Esforçando-se para dominar não só seu temperamento, Edward deu vários passos para trás. Posto que era impossível evitar o agradável calor do sol, girou deliberadamente o lado esquerdo do rosto para afastar o som de sua voz.
— Onde diabos está Beckwith?
— Não estou segura, senhor — confessou sua enfermeira — Esta manhã parece haver uma curiosa enfermidade. O café da manhã não está preparado e a maioria dos criados estão ainda na cama.
Edward estendeu os braços e deu um giro completo sem golpear nenhum objeto em nenhuma direção.
— Então pode que a pergunta mais apropriada seja: Onde estão meus móveis?
— OH, não se preocupe. Seguem estando aqui. Mas pusemos a maioria contra as paredes para que não se tropece com eles.
— Pusemos?
— Bom, sobre tudo eu. — Durante um segundo soou quase tão confundida como se sentia — Embora pareça que os criados decidiram dar uma mão quando eu fui à cama.
Edward lançou um suspiro carregado de uma paciência exagerada.
— Se todas as habitações forem exatamente iguais, como vou saber se estou no salão ou na biblioteca? Ou no *estercolero* da casa?
Durante um maravilhoso momento conseguiu deixá-la sem palavras.
— Não tinha pensado nisso! — disse finalmente — Possivelmente deveríamos dizer a quão criados movam umas quantas peças ao centro de cada habitação para que sirvam de guias — Sua saia rangia enquanto se passeava a sua redor ensimesmada em seus planos. Edward girou com ela mantendo o lado direito para o som — Se acolchoarmos as esquinas com edredons poderia andar pela casa sem arriscar-se a fazer-se danifico. Sobre tudo se aprender a contar.
— Posso lhe assegurar, senhorita Swan, que aprendi a contar quando era pequeno.
Então tocou a ela suspirar.
— Quero dizer a contar seus passos. Se memorizar quantos passos dá para ir de uma habitação a outra, será capaz de orientar-se sem problemas.
— Será uma mudança reconfortante, porque desde que chegou você não tem feito mais que me desorientar.
— Por que faz isso? — perguntou Isabella de repente com uma curiosidade autêntica em sua voz.
Ele franziu o cenho, esforçando-se para seguir o ruído de seus passos enquanto andava a seu redor.
— O que?
— Afastar-se de mim quando me movo. Se for à esquerda, você gira à direita. E vice-versa.
Ele ficou rígido.
— Estou cego. Como pode esperar que saiba para onde vou? — Ansioso por esquivar suas perguntas, disse — Possivelmente você seja a que deva explicar por que alguém desobedeceu deliberadamente minhas ordens e tem aberto as janelas.
— Fui eu. Como enfermeira dela, pensei que um pouco de sol e de ar fresco poderiam melhorar sua… — se esclareceu garganta como se tivesse algo nela — circulação.
— Minha circulação está bem, obrigado. E um homem cego não necessita sol. Lhe recordar todas as belezas que nunca voltará a ver é bastante cruel.
— Pode que isso seja certo, mas não é justo que envolva a toda a casa na escuridão com você.
Durante um momento Edward não pôde dizer nada. Desde que havia tornado do Trafalgar, todo mundo tinha estado andando nas pontas dos pés e sussurrando a seu redor. Ninguém, nem sequer sua família, atreveu-se a lhe falar com tanta franqueza.
Voltou-se completamente para o som de sua voz permitindo que os implacáveis raios de sol lhe dessem no rosto.
— Não lhe ocorreu pensar que mantenho as cortinas fechadas não por mim, mas sim por eles? Por que teriam que me olhar à luz do dia? Eu tenho a bênção da cegueira para me proteger de minha terrível desfiguração.
A reação da senhorita Swan a suas palavras foi quão última esperava. Pôs-se a rir. Sua risada tampouco era como imaginava. Em vez de uma risada aguda era uma sonora gargalhada que lhe fez sentir-se ridículo e de uma vez lhe comoveu, demonstrando que sua circulação estava inclusive melhor do que pensava.
— É isso o que lhe hão dito? — perguntou ela rindo-se ainda enquanto tentava recuperar o fôlego — Que está «terrivelmente desfigurado»?
Ele franziu o cenho.
— Não tem que me dizer isso ninguém. Pode que esteja cego, mas não sou surdo nem estúpido. Pude ouvir os médicos sussurrando sobre minha cabeça. Quando me tiraram as ataduras ouvi minha mãe e a minhas irmãs ofegar horrorizadas. E senti os cruéis olhares em minha pele quando os criados me levaram da cama do hospital a minha carruagem. Nem sequer minha família se atreve a me olhar. Por que acredita que me encerraram aqui como se fora uma espécie de animal em uma jaula?
— Pelo que tenho entendido, foi você quem fechou as portas da jaula e trancou as janelas. Pode que não seja seu rosto que assusta sua família, mas seu temperamento.
Edward procurou provas sua mão, capturando-a ao terceiro intento. Surpreendeu-lhe que fora tão pequena, mas firme.
Isabella lançou um grito de protesto enquanto atirava dela. Em vez de permitir que lhe guiasse pela casa, arrastou-a pelas escadas e o comprido corredor que albergava a galeria de retratos da família. De menino tinha aprendido todos os rincões do Cullen Park, e esse conhecimento lhe servia ainda. Levou-a pela galeria medindo suas largas pernadas até que chegaram ao final do corredor. Sabia exatamente o que veria ali: um grande retrato coberto com um lençol de linho.
Foi ele quem ordenou que tampassem o retrato. Não podia suportar que ninguém o olhasse e recordasse com tristeza o homem que tinha sido. Se não fora tão sentimental o teria mandado destruir.
Depois de procurar provas o bordo do lençol a tirou de um puxão.
— Aqui tem! O que lhe parece agora meu rosto?
Edward retrocedeu e se apoiou no corrimão da galeria, lhe permitindo que examinasse o retrato sem lhe jogar o fôlego na nuca. Não necessitava sua vista para saber exatamente o que estava vendo. Tinha olhado este mesmo rosto no espelho todos os dias durante quase trinta anos.
Sabia como jogavam a luz e as sombras sobre cada plano belamente esculpido. Sabia que tinha uma covinha muita atrativo em sua rugosa mandíbula. Sua mãe sempre dizia que lhe tinha beijado um anjo enquanto estava ainda em seu ventre. Quando uma sombra de barba dourada começou a obscurecer essa mandíbula, ao menos suas irmãs não puderam seguir lhe acusando de ser mais bonito que elas.
Conhecia esse rosto e o efeito que produzia nas mulheres. Das tias solteiras que não podiam resistir a tentação de lhe beliscar as bochechas rosadas quando era um bebê até as jovens que riam e se ruborizavam quando as saudava no Hyde Park e as belas mulheres que se metiam em sua cama por pouco mais que uma volta pelo salão de baile e um sorriso sedutor.
Inclusive duvidava que a afetada senhorita Swan pudesse resistir a seus encantos.
Ela examinou o retrato em silencio durante um bom momento.
— Suponho que é arrumado — disse finalmente com tom reflexivo — se você gostar dos homens desse tipo.
Edward franziu o cenho.
— E que tipo é esse?
Quase pôde ouvir como sopesava suas palavras.
— A seu rosto falta caráter. É alguém a quem lhe veio tudo com muita facilidade. Já não é um menino, mas tampouco um homem. Estou segura de que seria um bom acompanhante para um passeio pelo parque ou uma noite no teatro, mas não é alguém a quem me interessaria conhecer.
Seguindo o som de sua voz, Edward lhe agarrou o braço através de sua manga de lã e o girou para ele com autêntica curiosidade.
— E o que vê agora?
Esta vez não houve vacilação em sua voz.
— Vejo um homem — disse com suavidade — Um homem com o rugido dos canhões ressonando ainda em seus ouvidos. Um homem golpeado pela vida, mas não vencido. Um homem com uma cicatriz que lhe faz franzir a boca quando em realidade gostaria de sorrir. — Passou a ponta de um dedo por essa cicatriz, fazendo que ao Edward lhe pusesse a carne de galinha.
Sobressaltado pela intimidade de seu tato, agarrou-lhe a mão e a baixou entre eles.
Isabella se livrou dele enquanto sua voz recuperava seu tom enérgico.
— Vejo um homem que necessita desesperadamente barbear-se e trocar-se de roupa. Sabe? Não é necessário que ande por aí como se lhe tivesse vestido…
— Um cego? — disse com tom zombador tão aliviado como ela de voltar para um terreno familiar.
— Não tem valete? — perguntou-lhe.
Sentindo um puxão no lenço que tinha encontrado no chão de sua habitação e se pôs de qualquer maneira ao redor do pescoço, apartou-lhe bruscamente a mão.
— Despedi-lhe. Não suporto que ninguém ronde a meu redor como se fora um inválido.
Ela decidiu ignorar essa advertência.
— Não compreendo por que. À maioria dos cavalheiros de sua posição social sem problemas de vista não lhes importa estar com os braços estendidos e que lhes vistam como se fossem meninos. Se não suportar a um valete, ao menos posso dizer aos criados que lhe dêem um banho quente. A não ser que também tenha alguma objeção a banhar-se.
Quando Edward estava a ponto de assinalar que o único ao que tinha objeções era a ela, lhe ocorreu uma idéia. Pode que houvesse outro modo de animá-la a ir-se.
— Um bom banho quente não estaria mal — disse dando um tom suave a sua voz deliberadamente — Mas no banheiro há muitos riscos para um homem cego. E se me tropeço ao entrar na banheira e me dou um golpe na cabeça? E se me escorrego na água e me afogo? E se me cai o sabão? Não poderia agarrá-lo. — Voltou a procurar provas sua mão, esta vez levando-lhe à boca e pondo os lábios na sensível pele de sua palma — Como minha enfermeira, senhorita Swan, acredito que é você quem deveria me banhar.
Em vez de lhe dar uma bofetada por sua rabugice como se merecia, Isabella apartou a mão e disse com suavidade:
— Estou segura de que meus serviços não serão necessários. Um desses jovens criados estará encantado de lhe agarrar o sabão.
Em uma coisa tinha razão. De repente ao Edward tinha gostado de sorrir. Enquanto ela baixava com resolução pelas escadas, foi o único que pôde fazer para evitar rir em voz alta.
Isabella sustentou o castiçal no alto, banhando o retrato de Edward Cullen com um te pisquem velo de luz. A casa estava escura e silenciosa a seu redor, dormida, como esperava que estivesse seu amo. Depois de seu encontro o conde tinha passado todo o dia encerrado na sufocante penumbra de sua habitação, negando-se inclusive a sair para comer.
Inclinando a cabeça para um lado, Isabella examinou o retrato desejando ser tão imune a seus encantos como tinha pretendido. Embora estava datado em 1803 poderiam havê-lo pintado fazia muito tempo. O leve toque de arrogância no sorriso infantil de Edward estava suavizado pelo brilho zombador de seus olhos verdes. Olhos que olhavam para o futuro e tudo o que traria com desejo e esperança. Olhos que não tinham visto nada que não devessem ver e não tinham pago um preço por isso.
Isabella levantou a mão e passou um dedo por sua suave bochecha. Mas esta vez não houve calor nem sobressalto. Só o frio tecido burlando-se de sua triste carícia.
— Boa noite, doce príncipe — sussurrou enquanto tampava o retrato com o lençol.
O suave verdor da primavera cobria os prados ondulados. Umas esponjosas nuvens brancas sulcavam como cordeiros o céu azul bolo. O pálido sol banhava seu rosto de calor. Edward se apoiou sobre um cotovelo e olhou à mulher que estava dormindo na relva a seu lado. Uma flor da pereira pousou sobre seus cachos. Seus olhos sedentos beberam do mel dourado de seu cabelo, a suave pele de pêssego de sua bochecha, o úmido coral de seus lábios.
Nunca tinha visto um matiz tão delicioso… nem tão tentador.
Enquanto aproximava seus lábios aos dela seus olhos se abriram e seus lábios se curvaram em um sorriso sonolento, fazendo mais profundos as covinhas que adorava. Mas quando ela foi unir se a ele uma nuvem passou ondulando sobre o sol e sua inevitável sombra eliminou toda a cor de seu mundo.
Envolto na escuridão, Edward se incorporou de repente na cama com o ruído de sua respiração ressonando no silêncio. Não tinha forma de saber se era de dia ou de noite. Só sabia que lhe tinham expulso de seu único refúgio da escuridão: seus sonhos.
Jogando as mantas para trás, tirou as pernas da cama e se sentou. Depois de apoiar a cabeça nas mãos tentou recuperar o fôlego e seu sentido da orientação. Não pôde evitar perguntar-se o que pensaria a senhorita Swan de seu aspecto. Nesse momento não levava nada. Possivelmente deveria ficar um lenço limpo ao redor do pescoço para não ofender sua delicada sensibilidade.
Depois de procurar provas um bom momento encontrou a bata enrugada aos pés da cama e a pôs. Sem se incomodar em atar o cinturão, levantou-se e andou pesadamente pela habitação. Desorientado ainda por seu brusco despertar, calculou mal a distância entre a cama e o escritório e se deu um golpe no pé com uma das patas da mesa que fez que lhe subisse uma forte dor pela perna. Reprimindo um juramento, sentou-se na cadeira e procurou provas o atirador de marfim da gaveta do centro.
Logo mediu o interior da gaveta forrada de veludo sabendo exatamente o que encontraria: um grosso pacote de cartas pacote com um laço de seda. Enquanto o tirava chegou ao nariz uma sedutora fragrância.
Não era colônia troca de fresias comprada a um mascate, a não ser um intenso perfume feminino com um toque floral.
Respirando profundamente, Edward soltou o laço de seda e passou as mãos pelo caro papel. As folhas estavam desgastadas e enrugadas por todos os meses que tinha levado as cartas junto a seu coração. Abriu uma delas e riscou os elegantes rasgos de tinta com a ponta do dedo. Se se concentrava o suficiente possivelmente pudesse distinguir uma palavra e inclusive uma frase familiar.
Palavras vazias. Frases sem sentido.
Apertou a mão um pouco. Logo voltou a dobrar devagar a carta, pensando que era ridículo que um homem cego guardasse cartas que já não podia ler de uma mulher que já não lhe queria.
Se é que lhe tinha querido alguma vez.
Seja como for, atou cuidadosamente o laço ao redor das cartas antes das colocar de novo na gaveta.