Se você recebesse a concessão de mudar só uma palavra dita, qual escolheria? Se te agraciassem com a possibilidade de voltar no tempo e fazer algo diferente, o que decidiria mudar?

Era até melhor que tais propostas fossem impossíveis de se realizar. Doía tanto desejar por elas por causa da consciência do arrependimento e da perda que saber a situação irremediável frustrava, mas consolava também. Dava o conforto vazio do conformismo, mas um conforto falto é melhor que nenhum, não é? Uma justificativa sem força é melhor para aplacar a dor do que nenhuma, não é?

Vinte e cinco anos desperdiçados.

Ele tinha aguardado aquele momento a vida toda sem saber e somente fora capaz de reconhecê-lo e prezá-lo depois que terminou.

Mas, na sua mente, ainda não era o final. Não, ele apenas pousara a mão na borda da página e meditava longamente encompridando o sabor das palavras lidas antes de finalmente ir para a próxima parte. Fingia descaradamente para si próprio que a página seguinte não estava em branco, mas que guardava um relato secreto que carecia de uma mente iluminada o suficiente para interpretá-la.

Heero nunca mais fora o mesmo depois daquela viagem de negócios. Cinco meses foi o tempo necessário para que ninguém reconhecesse mais o rapaz que voltara para casa. Fazia as mesmas coisas, ia aos mesmos lugares, mantinha as mesmas amizades, só que era outro. Queria ser outro, não via mais razão de ser o mesmo de antes, sem Relena. Estava sisudo, silente e quase selvagem. Nunca explicara suficientemente a sua transformação. Porém, era só mágoa, confusão e saudade que se misturaram e reagiram criando a poção que o metamorfoseara.

Esperara à toa durante uma semana mais, estourando seus cronogramas, mas Relena não retornou como dera a entender, como era o esperado. Passou pelo ponto dela, perguntou por ela mesmo sem ninguém disposto a responder-lhe ou saber explicar-lhe o paradeiro. Não queria abandonar sua busca, mas tinha trabalho a fazer. Ela era mais importante que tudo para ele, contudo, quem sabe ela não pensasse assim e seu desaparecimento completo quisesse dizer que ele fora mesmo o mais completo idiota em crer que ela regressaria com o quadro para viver feliz para sempre com ele. Relena era uma mulher de vida fácil, se o desejou, foi naquele lapso de tempo quando não havia ninguém para lhe pagar mais. Ele tinha essas ideias de que tudo fora proposital para tentar diminuir a angústia de tê-la perdido sem qualquer explicação. Enganava-se assim anestesiando a dor, ciente de que se enganava.

Amou inutilmente, passou a vida para vê-la realizar-se e ser condenada ao fim de uma vez para sempre. Por isso tornou-se tão apático. A última vez que seu coração se fixou com fascínio, carinho, desejo e paixão em algo fora logrado. Desapontamento maior não existiria para Heero visto que ele se fechara para qualquer possibilidade de querer algo e não conseguir obtê-lo. Encontrara o caráter definitivo para todas as ocasiões.

E, sem na verdade perceber, repetia para si mesmo que nunca, nunca mais seria o mesmo, embora Relena morasse nele como antes, fixando residência permanente no peito dele. As cores que implantara nele com seus beijos, seus olhares, suas risadas e as pontas dos dedos se abrigaram como criaturinhas frágeis se agrupando no vão de um telhado e no oco de uma árvore, para que a tempestade não as matasse. Encolhiam-se trêmulas, meigas, inseguras, contando com o dó, com a amabilidade, com seus delicados encantos para serem sempre residentes ali, alimentando-se de confiança desperdiçada.

Talvez aquela fosse a verdadeira arte de Relena. Ela pintara um quadro na alma de Heero com as linhas de seus lábios risonhos, com os movimentos de suas pálpebras, com a fluidez de sua voz e a leveza de suas palavras, com a emoção de sua pulsação e a precisão de seus passos. Espontaneamente embelezara o espírito do rapaz com a graça genuína de seu corpo, coração e sentimento.

Por que fora tão imaturo em condicionar a permanência eterna daquela garota?

Não havia mais nada que ela lhe devia. Ele não precisava de mais nenhum resultado para seu projeto de pesquisa. Ela correspondera todas as suas expectativas e provara todas as suas teorias estranhas só com a devoção exibida, suficiente para que ele tivesse encontrado a Relena original que demonstrava emoções reais, puras, ilimitadas. Declarara sem que fosse exigido o quanto se interessava por ele e só.

Mas seu empirismo louco tomou sensações e sentimentos, palavras e momentos como abstratos demais. Esquecera-se de que eram como o oxigênio. Invisíveis, mas imprescindíveis. Contando assim só com ar rarefeito para respirar, Heero não tinha mais como compreender a realidade do mesmo modo.

::::::::::

Sete meses passaram. Relena nunca pensara que tão pouco tempo a pudesse levar tão longe. Amadurecera mais do esperava de si própria naquelas semanas do que em toda sua existência simples. Dava-se ao trabalho de às vezes olhar para trás e brincar de explicar porque seu desespero a empurrara para uma vida tão miserável. Ficava divertidamente transtornada com suas autoanálises. Sabia e sabia sim que o destino não existia. Confiava com carinho no poder de suas escolhas, do jeito que ele lhe ensinara. O poder de mudar a própria vida era real assim como a possibilidade de ser feliz.

E por que então nada disso explicava o motivo de tê-lo conhecido? Não era justo pensar que tivera por obrigação de passar por um tormento grande de modo a alcançar a felicidade. Era contraditório demais pensar assim também. E se não havia predestinação, então… Por que o conhecera?

Por mais que a confusão a cercasse, já não sentia mais a dor dela. Mesmo que vivesse no desamparo e no infortúnio, já não os curtia. Eles não emergiam, tampouco. Aprendera tanto a fingir para se proteger que já era hábito esconder o quanto queria voltar para Heero.

Foram as circunstâncias que a detiveram.

Logo que saiu do hospital, ligou para o hotel onde Heero se hospedara, mas ele já havia partido e não fazia ideia de como descobriria para onde fora. Se tivesse de pensar só em si, andaria o mundo procurando por ele, mas não estava mais sozinha. Então não havia mais espaço para decisões irresponsáveis no futuro. Visto que Heero tivera de partir, deixara com ela um presente que exigia desvelo e cuidado.

Considerava que era a terceira vez que recomeçava sua vida. Mas desta vez sentia-se realmente na vantagem, pois carregava consigo uma promessa e a verdade de ser o mundo de alguém.

A assistente social a encaminhara para um abrigo onde Relena morou até conseguir o emprego de garçonete em um diner numa avenida qualquer. Estabilizada financeiramente, mudou-se para uma pensão de moças dirigida por uma senhora severa que tinha muitas regras e as exigia completamente cumpridas. A princípio, não quisera uma moça grávida, mas como a dupla de irmãs que lá morava havia acabado de ir embora, precisava de inquilinas novas para manter seu orçamento.

Por isso, por um bom tempo, Relena acabou ficando com um quarto só para si. Havia mais seis garotas da mesma faixa etária morando na casa e todas acabaram se dando muito bem e ajudando-se sempre que preciso. Elas ficaram muito curiosas sobre o estado da nova moradora e, bondosamente, encheram Relena de perguntas sobre o bebê.

O último ultrassom que fizera mostrara que esperava uma menina. Por mais que todos lhe perguntassem a todo o momento pelo nome da criança, ela decidira que só o escolheria depois de ver o bebê pela primeira vez.

Trabalhou na lanchonete até completar o oitavo mês e então suas amigas lhe disseram que lhe dariam de presente o aluguel dos próximos cinco meses, para que ela pudesse ficar em casa sem preocupação. Algumas também deram itens para o enxoval e a diretora da pensão lhe comprara alguns pacotes de fraldas.

A bondade que agora cercava Relena devia ter ficado escondida quando anos atrás se viu sozinha e forçada a vender a si própria para sobreviver. Entretanto, entendia que fora sua falta de madureza que a levara a rebaixar-se… na época, não sabia o que fazia, só julgava-se saber, terminando por ser enroscada na teia da vergonha e do orgulho que não lhe permitiram procurar por tudo o que merecia. Devia ter se esforçado mais.

Mas aquilo ela declarou como sendo passado longínquo o qual não queria revisitar nem reviver.

Deitava devagar na cama, ficando de lado, mesmo que não fosse uma posição exatamente confortável, mas naquela altura via poucas posições confortáveis para si. Gostava de fazer isso para refletir e conversar com o bebê.

Quem diria que quatro anos de existência a levariam àquele cômodo quieto, sereno e aconchegante, completamente oposto ao que planejara para seu futuro…

Contava em voz alta a seu bebê a história dela, alisando a barriga. Não ocultava o motivo de estarem juntas ali, mencionando quão especial, grande e verdadeiro fora o amor que a salvara. E mesmo que nunca mais visse Heero outra vez, sentiria prazer nesta angústia. Por que a angústia da saudade só atestava o tamanho do amor e a importância que ele lhe significava. Não abriria mão dela, não, seria sempre seu tesouro.

No tratado que elaborava sobre seus próprios erros e arrependimentos, Relena não se deprimia. Media o tamanho de sua sorte e a celebrava.

Vendo-se de repente com tempo ocioso, usou o pouco dinheiro que tinha sobrando para comprar pequenas telas. Sem pressa ou grandes expectativas, trabalhou com uma palheta limitada, experimentando com colagens, tentando registrar o presente de sua grande aventura. Pintou este quadro com uma grande porta entreaberta, representada de um modo um tanto abstrato, que pela fresta deixava entrar uma onda azul misteriosa. Gostava da água, de seu poder, sua dinâmica e versatilidade. Gostava de, de repente, comparar-se ao mar.

::::::::::

_Mamãe! –tirando as mechas de cabelo que lhe voaram para o rosto por causa da corrida, a menininha se aproximou da mulher ao telefone. –Mamãe, olha, olha meu desenho! –sacudia insistente a folha de papel.

Relena terminava de conversar com Lucretzia Noin, sua marchand, a respeito do vernissage. Era o segundo que organizavam naquele ano. Persistir valera a pena. Não que o caminho tivesse sido fácil. Mas tinha sido honesto, tinha sido fruto de seu esforço, tinha sido apegado à esperança e confiando em si própria.

Despediu-se de Noin e desligou o telefone. Olhou Milana e, sorrindo, pensou de novo em tudo que enfrentaram juntas. Só as duas.

_Deixe-me ver, Mila. –abaixou-se, apanhando o papel. –Que lindo. –e ficou correndo os olhos pelos rabiscos de giz colorido, feitos com todo o cuidado que a garotinha de cinco anos podia ter.

_Eu quero ser que nem você, mamãe. –e avisou, muito séria, os olhos faiscando.

_Ah, é? –Relena colocou uma mecha de cabelo castanho atrás da orelhinha da filha.

_Sim, seus quadros são tão bonitos… você é tão inteligente…

Relena riu:

_Obrigada, meu bem… –e beijou-lhe os cabelos.

_Aqui é eu, você e o papai. –ia apontando cada um com cuidado. –Eu tenho um papai, não tenho, mamãe?

_É claro que tem. –respondeu, suavemente, suspirando. Seu olhar ficou vazio um instante, buscando um novo foco, um que não fosse a solidão que os anos lhe trouxeram.

_As meninas na escola me chamam de esquisita porque elas nunca viram meu papai.

_Não precisa dar atenção a elas, Mila.

_Mas cadê o papai? Eu queria conhecer ele. –e soou um pouco aborrecida. Relena teria rido da carinha de esquilo com as bochechas cheias que Milana fez, mas a situação era tão deprimente, principalmente para ela que era adulta, que tinha dificuldades em aceitar os questionamentos da criança.

_Eu… não sei, Mila…

_Por quê? –os olhos dela, azuis e cristalinos, usavam de uma tenacidade que Relena já vira antes…

Meneou a cabeça enquanto Milana olhava-a, esperando, como se sentisse que Relena não gostava daquele assunto.

Não era exatamente esta a verdade. Relena só não sabia mais como explicar. Onde fora que sua vida se perdera dele? Eles haviam se separado e por mais que ela tenha lutado para reencontrá-lo, nunca conseguiu. Os telefones sempre estavam desligados, os nomes sempre estavam errados, os lugares nunca eram alcançados a tempo. A luta para reavê-lo soava como que perdida desde o começo. Tudo que Relena desejava era poder dizer a menina porque não podiam vê-lo, mas era a única resposta que não possuía embora a desejasse ardentemente.

_Qual é mesmo o nome do papai? –suspirou.

_Não lembra mais? –Relena indagou, paciente.

Milana gostava de ouvir a voz quase etérea da mãe. Era sempre tão aconchegante.

_Não… –e balançou a cabeça, desapontada consigo mesma.

_Heero.

Milana prestou muita atenção, assentiu e olhou seu desenho. Sentou-se no chão e ficou distraída com seus próprios pensamentos, procurando na sua imaginação suprir a ausência do pai. Um pai que ela nunca havia visto, mas pelo qual ansiava.

Relena sabia que não era culpa da menina… afinal de contas, durante a gravidez não pensara em outra coisa a não ser nele… era somente natural que, de alguma forma, a garotinha se ligasse a ele de forma tão estrita e estreita.

Esquivou-se para a cozinha para que a filha não a visse chorar. Sem som, sentia as lágrimas escorrerem por sua face. Não falhou de amá-lo um dia sequer em sua vida. Como fora capaz, mesmo sem vê-lo? Talvez fosse uma relação doentia que criara com o passado… podia ser apenas uma covardia de não querer abrir mão das lembranças.

Mas quando olhava Milana e via tanto dele nela, não havia uma vez que seu coração não se comprimisse. Heero estava tão presente em sua vida, exatamente como quando se conheceram…

O que ele diria se soubesse que tinha uma filha? O que ele diria se, de repente, descobrisse todas as mudanças que promovera?

Relena se reabilitara completamente apenas por tê-lo conhecido. Salvação – ela insistia em definir assim o que Heero fizera por ela, mesmo que nunca tivesse sido intenção dele, mesmo que ele nem se importasse.

Em algum lugar, longe dali, Heero tinha uma vida completamente alheia à dela. Talvez tivesse encontrado outra para amar e nem desconfiasse que ainda inspirasse os quadros dela, do mesmo jeito que fizera naquela noite funesta de cinco anos atrás.

Era a forma que arranjara de alimentar sua paixão, de fazer a chama imortal aquecê-la. Suas pinturas podiam ser abstratas, mas cada uma guardava um retrato secreto de seus sentimentos e desejos. Perguntava-se se por acaso Heero os compreenderia ao vê-los, se encontraria nas pinceladas grossas e multicores a verdade dela.

::::::::::

_Chegou! –Akane entrou com um pacote grande, retangular e estreito nas mãos, chamando a atenção dos dois rapazes sentados na sala.

Heero estava na casa de seu melhor amigo, tomando uma dose de uísque, ouvindo-o falar e matando o tempo. Na verdade, toda sua vida se tornara uma grande matança do tempo. Desistira de procurar o sentido das coisas. Era inútil de qualquer jeito… se nunca mais se sentiria completo, não havia porque preocupar-se com o resto. A única coisa com que se preocupava era com aquele encontro que mudara o ritmo da sua vida e distorcido suas expectativas. Só lembrava-se de pensar naquela pessoa que surgiu e fizera tudo ficar diferente e irreversível. Uma única estrela fugaz que brilhou e caiu do céu arrastando com ela tudo o que ele tinha como certo. E por mais que tenha olhado para cima e buscado pelo rastro dela, não é assim que as estrelas funcionam. Para começar, as estrelas que vemos já estão mortas muito antes de caírem.

_Do que você está falando, amor? –Duo olhou a esposa sem entender a empolgação dela.

_O quadro! Lembra? Aquele que comprei pela internet, para colocar aqui. –e mostrou a parede vazia e preparada para receber a obra de arte.

_Ah, é mesmo… Abre, quero ver…

Akane assentiu, prontamente desfazendo o embrulho.

Comprara o quadro por indicação da amiga que fora em um vernissage e se encantara com as cores efervescentes das peças. Havia somente duas telas disponíveis para compra em uma galeria online, mas ainda assim Akane encontrou um que combinava perfeitamente consigo.

Heero, Duo e Akane pararam para apreciar a pintura na parede.

O fundo era negro e havia rajas de variadas cores quentes se projetando, nascendo dos cantos e tomando conta da escuridão. A composição era um pouco desesperada, mas imperiosa, atraindo mais atenção do que devia, como se exigisse por magia que olhassem para ela.

_Wow. –Duo queria dizer outra coisa, mas não conseguiu.

Akane riu, compreendendo-o:

_É muito melhor ao vivo. –e pensava na foto que vira no site.

Heero reservava-se a uma análise muda. O quadro evocava algo como a chama primordial, como uma descoberta proibida. Não passavam de pinceladas disformes, mas fluídas, e ainda assim transmitiam todo um conceito de busca e revelação. A escuridão se partia com uma verdade que não podia mais ser contida. De repente, sentir o calor daqueles tons era como entrar em contato com seu próprio âmago. O fazia olhar para dentro de si e concentrar no que lhe era importante a ponto de tornar-se insuportável.

_O quadro é muito bonito… Quem é o artista? –Duo interessou-se.

_Hm… o nome dela… fugiu-me agora, deixe-me ver se tem aqui na nota… –Akane foi procurar o papel, afastando-se um pouco. –Darlian… Relena Darlian. –leu, depois de uns minutos.

O nome.

Aquele nome.

Só podia ser.

Heero encarou Akane com um fito endoidecido.

_Qual o problema? –Duo podia praticamente apalpar a tensão ao redor.

Heero nunca tinha falado exatamente dela para ninguém, nem mesmo para Duo e Akane, que eram seus melhores amigos. Tinha guardado para si todos os sentimentos que Relena despertara nele e depois descuidadamente dizimara. Tudo que seus amigos e familiares sabiam é que ele tinha se desiludido completamente e preferia nem mencionar o fato, tão profunda fora essa decepção.

Apesar disso, aquela tela trouxera tudo à tona. Um quadro, justamente o que havia pedido a ela e que ainda responsabilizava por terem se afastado irremediavelmente. Relanceou a pintura na parede outra vez e terminou de beber seu copo de uísque. Akane se achegou, com o cuidado que se deve usar para aproximar-se de uma fera acuada:

_Conte, Heero, o que foi?

Ele meneou a cabeça e sentou. Não precisava dizer nada. Estava tudo naquele quadro. As cores gritavam toda a dor que ele passara.

Akane sentou com ele e juntos, encararam a pintura para escutá-la.

_Vai haver um vernissage no final da semana… mesmo que seja do outro lado do país, acho que devíamos ir. –e ela foi murmurando, como se soubesse que qualquer solução existente para a perturbação de Heero estava ligada àquela tela e a quem a pintou.

_Sim, vou comprar as passagens. –Duo não esperou mais nada para decidir.

::::::::::

O vernissage se realizava em uma galeria nova da cidade. Era cercada por um jardim e as salas tinham, na maior parte, paredes de vidro. Em si, o prédio era uma obra de arte. Havia alguns bancos no centro de um dos ambientes e Milana subiu em um e ficou de pé, olhando o movimento. De sua posição vantajosa, via quem chegava, via vários quadros, inclusive aquele que a mãe fizera com as cores que ela escolhera, e localizava rapidamente Noin ou a mãe entre os convidados.

Seus olhos azuis seguiam as pessoas passando pelos quadros expostos. Ouvia os comentários, embora prestasse pouca atenção. Eram tantas palavras que não conhecia que chateava escutá-los falando. Agachou-se e ficou um tempo estudando os sapatos, orgulhosa de quão brilhantes estes estavam. Os cabelos castanhos lisinhos insistiam em vir para o rosto durante sua observação. Ela lutava com eles inutilmente. E foi quando se ergueu que o viu entrar.

Seus lábios pequenos e perfeitamente desenhados como que por um lápis vermelho se entreabriram, tão concentrada ficara em acompanhar o homem no terno da cor do céu de chuva. Ela teve o cuidado consciente de atentar-se a cor dos cabelos dele e compará-la a dos seus. Era marrom de verdade, como a nogueira, como o chocolate. Não estava sozinho. Do lado direito, vinha outro homem que sorria muito e parecia ser bem engraçado. Milana gostou dele, embora sua atenção estivesse em dedicação exclusiva ao homem do terno nublado. Do lado esquerdo, vinha uma moça, tão esbelta quanto ela, os cabelos cor de fogo, e ela parecia mesmo crepitar enquanto sorria. Milana também gostou dela, mas gostou ainda mais de escutar a moça dizer:

_Veja, Heero, aquela é Lucretzia Noin, a marchand…

_Papai! –Milana pulou do banco.

Ninguém a escutou. O trio passou em direção de Noin, tranquilamente. Milana franziu as sobrancelhas e arrumou o cabelo de novo. Não os achava mais, só via pessoas grandes por todo lado, lhe prejudicando o campo de visão. Encheu as bochechas de contrariedade. Subiu no banco de novo. Lá, viu Noin aproximar-se com seu olhar mágico e estender a mão para a moça ruiva. Prestou bem atenção na direção de novo e pulou do banco.

_Desculpe. –pediu, desinibida, quase pisando alguém.

Provocou risos, como se era de esperar. Ela era a coisa mais graciosa daquele vernissage. O vestidinho verde-floresta fazia os cabelos achocolatados se destacarem em uma perfeita combinação cromática.

Foi atropelando quem foi preciso.

_Papai… –repetia, como se isto a fosse aproximar dele mais rápido.

Quando viu as pernas cinza de suas calças, agarrou-se nelas como um macaquinho.

_Papai! –olhou para cima, sorrindo sem mostrar os dentinhos perolados, com uma sinceridade irresistível.

_O que temos aqui? –a moça ruiva dirigiu-se a ela, quase se abaixando.

_Será que se confundiu? –o homem sorridente indagou, divertido.

Mas o homem da roupa nublada apenas olhava para Milana, prendendo-a com seu fito insistente e perfurador, extremamente magnético. Ela entreabriu os lábios de novo, perplexa.

Heero inclinou-se como pôde e estendeu as mãos para ela, erguendo-a no colo em um segundo. No mesmo nível, se encararam. Ela seguia mesmerizada pelo homem, piscando e pensando. Tocou-o no rosto de levinho com a mãozinha macia.

_Qual o seu nome, querida? –pediu, firme, mas atenciosa. A voz dele, envolvente e rouca, era tão atraente quanto seus olhos. Milana queria ouvir mais, queria que ele lhe contasse uma história bem comprida para que ela dormisse àquele som.

_Milana. –e sem nenhuma entonação, informou.

Ele assentiu. Olhou em redor, embora não percebeu Noin voltar trazendo Relena.

_Está perdida? Onde está sua mãe? –investigou.

Mas Milana não teve tempo de responder.

_Milana? Oh, meu Deus, o que você está aprontando? –e os dois escutaram uma voz doce e bem-humorada acertá-los por trás. –Milana, deixe o… –e a fala de Relena foi se desmanchando ao passo que o homem que segurava sua filha se virava para vê-la.

_Veja, mamãe! Eu achei o papai! –Milana proclamou prontamente no ápice de sua satisfação. Heero olhou-a e sorriu com os olhos, sem saber o que mais dizer. Emoções demais. A menina deitou a cabeça no ombro dele, abraçando-o.

Relena paralisou, apesar de ter começando a chorar instantaneamente. Chorava em grandes soluços, tentando sorrir, tentando parar. Milana não se preocupava em ver a forma como a mãe chorava porque sentia algo parecido em seu coraçãozinho.

Noin, Duo e Akane só conseguiam concluir o que havia com base nos cacos que possuíam da história. Porém os três sorriam e não interrompiam o fluxo, mesmo que os convidados tivessem ficado um pouco agitados.

_Heero… –Relena falou, embora sem som, porque as lágrimas lhe roubavam a voz.

Com a mão que estava livre, ele chamou Relena para perto. Fora um gesto tão simples, fora algo tão espontâneo… Relena encolheu os ombros e corou.

Milana assistia tudo com a cabeça deitada perto do pescoço dele. Nunca mais iria sair dali. Prendia-se nele como à garantia vitalícia de segurança.

Relena queria muito correr para os braços dele, tão inocente e sincera quanto Milana, queria mesmo, mas, de repente, não conseguiu. Afastou-se devagar, indo para o jardim dos fundos.

Noin a seguiu somente com seu sereno olhar violeta e depois sorriu:

_Acho que foi um choque para ela. –soou generosa, achegando-se a Heero. –Mila, venha…

_Não quero. –virou o rosto.

Heero mantinha-se imóvel e calado, olhando a criança. Não reagia, o que poderia ser estranho, mas ninguém sabia como é que estava o íntimo dele.

_Por favor, seja uma boa mocinha… mamãe e o senhor Yuy precisam conversar agora. –Noin voltou a mostrar-lhe as mãos brancas e, após deliberar um minutinho, Milana decidiu aceitar. Só que, conforme se afastava, mantinha a vista presa em Heero.

_É ela, Heero? –Duo veio para ter certeza de que Heero estava bem. –A moça que você perdeu cinco anos atrás…?

Vieram ao vernissage para comprovar, mas desde que Heero olhara o quadro, ele tivera certeza de que aquela Relena Darlian pintora só podia ser a sua Relena.

Todos os quadros ao seu redor gritavam isso… a menininha que tivera em seu colo gritara isso.

Uma filha… ele tinha uma filha com a mulher que amava. Essa percepção ocupou inteiramente sua mente por muitos instantes.

Engoliu seco e foi procurar Relena no jardim.

Agia tão naturalmente sobre tudo, às vezes surpreendendo-se consigo mesmo.

Ela estava encostada em uma parede, chorando com os olhos tampados, querendo se controlar. Ele estudou a figura dela no vestido vermelho. Não mudara nada, só ficaria mais bonita. Para ele, Relena sempre seria como ele se lembrava e seria capaz de reconhecê-la idosa, a reconheceria mesmo que se chamasse Roxane ou qualquer outro nome que escolhesse.

_Relena. –chamou, brando.

Ela descobriu os olhos, mas não os abriu.

_Relena… –sentiu em seus ouvidos. Deitou a testa no peito dele, chorando mais.

Os braços dele instintivamente a circundaram, devolvendo-lhe a velha sensação de pertencer a algum lugar por direito.

Não queriam falar nada, somente se beijar. Um beijo que precisou de anos para se realizar. Você consegue imaginar a intensidade deste beijo? Consegue sentir a urgência deste beijo? Consegue ouvir a forma como seus corações batiam?

Estava tudo ali: as cores e os calores integramente intocados pelos dias e distâncias.

_Me desculpe, Relena, se coloquei sobre você um fardo. –acanhado, Heero murmurou assim que pôde.

Ela alisou-lhe o rosto, hipnotizada.

_Está tudo bem. Eu tenho que te agradecer. Se mudei, se alcancei alguma vitória, foi graças a você.

_Não. Foi graças a você, Relena. Deixei você sozinha… foi você quem fez tudo isso acontecer.

Relena meneou a cabeça, alisando o rosto dele com as duas mãos e sorrindo.

_Você viu? Viu o quadro que pintei para você? Aquele que você me pediu? –e murmurou, corando de agitação.

Heero a encarou, inexpressivo.

_Viu a nossa obra-prima? –e insistiu, rindo e brincando com a gola do paletó dele.

Ele sorriu por fim, beijando-lhe a testa.

Capítulo 03 – Milana


Free Talk

Boa tarde!

Este é o capítulo final. TTuTT Tão bonito!

Eu nem sei descrever o prazer que tive em escrever esta história. Foram só três capítulos, mas de repente eu acreditei ter criado todo um mundo. Desculpem ter incluído a Akane de novo, eu já não sei mais escrever fics sem ela. Eu tento, mas no fim, sempre falho.

Me preocupa um pouco a coerência de tom da história, porque o final parece de repente tão distante do começo... Mas talvez tenha sido este mesmo meu objetivo: outro narrador e cinco anos passados produziram um relato diferente do que encontramos nos dois capítulos, que, na verdade, são paralelos no curso do tempo.

Sabe que quase cai na tentação de escrever um quarto capítulo?

E sabe que eu tentei de todo o jeito fazer o Heero chorar no reencontro? LOL Mas ele não chorou, danado! Não encontrei espaço para fazer ele chorar... então desculpe se por acaso ele soou meio frio, meio alheio.

A situação vivida é tão especial que deve ser difícil produzir uma reação para quem não é muito expressivo. Cada um lida com o choque de um jeito, também. O que mais me diverte, entretanto, falando nisso sobre lidar com o choque, é que a forma de Heero fazer isso dá uma ideia de que ele não ficou chocado, mas que esperava de fato tudo o que houve. Por isso que ele age tão naturalmente.

Sim, estou muito satisfeita com esta história.

Espero também que tenham gostado.

Agradeço a todas que acompanharam e mandaram reviews.

Beijos e abraços calorosos!

18.11.2011