Extraordinário

Da primeira vez que ele passou, ela não o notou de imediato. Seus olhos estavam muito ocupados com o rapaz sorridente e bêbado que ele ajudava, aquele que cantava uma música desafinada e que parecia tão bonito que não deveria ser humano. Seu vizinho.

Os olhos dela estavam ocupados com o beijo que o delinqüente na jaqueta de couro, roubou do magricela de óculos. Não notou o sorriso constrangido dele ou as bochechas vermelhas, mas o seguiu com os olhos – sem perceber – enquanto ele ia embora.

Demoraram algumas semanas. Ela trabalhava até tarde. Uma trabalhadora medíocre, em um emprego medíocre, metida em uma vida medíocre que tinha como único consolo observar os ébrios que cruzavam a rua na frente da sua casa. Morava no centro histórico em uma casa bonita, com móveis bonitos e uma sacada bonita.

Sacada que dava para a sacada da frente, a sacada do quarto daquele bêbado de cabelos longos e sorriso fácil que sempre a cumprimentava quando ela estava saindo, e ele chegando.

Foi em um desses encontros que ela finalmente o viu. Já tinha o notado por perto, mas foi ali que ela o viu. Os cabelos desgrenhados, o cachecol caindo do pescoço e o nariz avermelhado do frio que fazia. Estava nevando. Os dois estavam juntos.

— Bom dia... Moça que se recusa a me dizer seu nome. — Sirius era o nome dele. Já havia se apresentado e por algum motivo ela não havia retribuído. Talvez fosse o medo de gaguejar olhando nos olhos dele. — Esse é o James, James diga olá para a moça.

Ele não disse. Sorriu constrangido para ela e rolou os olhos, empurrando o amante bêbado porta à dentro. Ela notou a voz dele, falando baixo, resmungando enquanto ralhava com Sirius por seu estado e por sempre estar daquela maneira. Lily teve vontade de sorrir para ele. Sorrir para o recém descoberto James. Mas não sorriu, ela não sorria para estranhos bêbados amantes de seu vizinho delinqüente que tinha uma moto escandalosa e que usava calças mais justas que as dela.

O tempo só fez com que ela ficasse mais curiosa. Sobre os dois. Sobre James e sua propensão de deixar que Sirius lhe roubasse beijos à porta, mas de nunca de ficar até o amanhecer seguinte. Eram estranhos aqueles dois. E isso apenas a intrigava mais. Em silêncio, apoiada na sacada com uma xícara de chá aquecendo-lhe os dedos ela observava James indo embora, e tinha a sensação de que ele sempre estava indo, como se todas as vezes que ele deixava o vizinho em casa fossem partidas.

Então ela ria das próprias conclusões alucinadas e ia terminar de tomar seu chá antes de ir trabalhar. No emprego medíocre, no lugar medíocre, com as pessoas medíocres, para juntar dinheiro e conseguir estudar para deixar de ser medíocre. Porque Lily tinha sonhos, não só aqueles que envolviam o vizinho e seu amigo de óculos, mas sonhos onde ela era mais, onde era melhor. Outros onde ela era Lily, e ela gostava mais desses sonhos.

E então a estação mudou. E não havia mais observações na sacada.

Lily, que tinha os cotovelos vermelhos e os pés enregelados durante todo o inverno, já não tinha porque olhar novamente. James não ia mais. Curiosamente começou a sentir falta de observar e achou que estava precisando de uma vida própria ao invés da do vizinho. Sirius, o vizinho. Sirius que agora ela também não via mais chegar. Talvez estivesse chegando mais tarde, talvez estivesse com James e não voltava mais para o apartamento.

Talvez tivesse notado que quando passava nu na frente da janela, dois olhos verdes arregalavam-se, mas a dona deles não se movia um centímetro que fosse.

Até naquela manhã. Quando na noite anterior ela decidiu que aceitaria o convite medíocre de Amos Diggory para que saíssem. E aquela noite acabou apenas com surgir do Sol, e foi divertida e medíocre e ela riu enquanto Amos tentava abrir a porta da sua casa, sempre errando a posição da chave. Era um lugar velho, e ele – meio bêbado, meio alcoolizado – nunca conseguiria sozinho. E quando as vozes masculinas se juntaram as dela e de Amos na rua, ela encontrou os três no sobrado da frente, tentando colocar Sirius para dentro.

James estava ali. E ela não conhecia o outro homem, com seus olhos brilhantes e cabelos castanhos. Ele se parecia com Amos, porém... Ele não parecia medíocre.

Sirius mais uma vez estava se curvando e capturando os lábios de James, e até mesmo Amos parou para ver melhor o que acontecia. E James novamente tinha as bochechas coradas e o sorriso constrangido, e dessa vez ela havia notado. O outro homem que os acompanhava, abraçou James e os três sorriram. Então Sirius o beijou. Não James, o outro.

O beijou como não havia beijado James. Não eram os lábios. Eram as mãos, os braços, corpos. Tudo era um único beijo. E Lily teve que desviar os olhos, envergonhada como nunca se sentiu antes, sorrindo do mesmo jeito embaraçado como James sorria.

Pra ela.

Então eles se despediram e Amos conseguiu abrir a porta.

Do outro lado da rua, James ergueu os olhos para a ruiva parada na frente daquele sobrado antigo. E viu novamente o quão extraordinária ela era. E sorriu. E acenou. E quando ela acenou de volta, sentiu que alguma coisa estava acontecendo. E ainda nem sabia o nome dela.

— Lily.

E ele pareceu confuso e admirado, se perguntando se ela podia ler mentes. Ele esperava que não.

— Meu nome é Lily.

— James.

— Eu sei.

Riso.

— Tchau Lily.

— Até outra hora, James.

E enquanto ele se afastava ela sentia que não era uma partida. Pela primeira vez ele não estava se afastando. Estava mais perto do que nunca. E boba feito a romântica que nunca quis ser, Lily riu e cobriu o rosto se perguntando por que tudo em relação a ele era tão extraordinário. E lá no fundo, ela sabia que descobriria. E mal podia esperar.

Oh sim, ainda tinha que colocar Amos para fora da sua casa. E vida. Não haveria mais espaço para mediocridade. Não mais.