Notas da Autora: Esclarecendo alguns pontos...

A fanfic se passa três anos após as aventuras de Kagome na Era Feudal, ou seja, em 2002. É verdade que algumas coisas estão em desacordo com a época, mas eu faço o possível para me manter fiel ao Japão de dez anos atrás;

Recebi uma review comentando sobre as idades dos personagens Ichiro e Souta, aparentemente houve uma pequena confusão quando a autora da review leu o seguinte trecho: "Para ele [Souta] tinha sido tão fácil entender aquilo quando tinha apenas dez anos. Enquanto que Ichiro, cinco anos mais velho que ele se encontrava tão confuso que mal conseguia formular uma frase sem gaguejar. " Nessa passagem Souta estava fazendo uma comparação com o "eu" dele de três anos atrás e o Ichiro de vinte anos de agora. Felizmente já corrigi essa errata no capítulo passado. A diferença de idade entre o Souta de três anos atrás e o Ichiro atual é, portanto, de DEZ anos, não CINCO como eu havia dito. Ichiro tem 20 anos, Souta 13 e Kagome e seus amigos tem por volta dos 17 ou 18 anos de idade.

Me divirto muito com os palpites sobre Zhang e quem vocês acham que ela era na Era Feudal : ) Continuem palpitando!

"Você acreditaria em mim?"

- ICHIROOOOO! NÃO! – Kagome gritou com todas as forças que tinha enquanto corria o mais rápido que podia.

"O que aconteceu?!" pensou Ichiro "Eu ainda estou ouvindo a voz dela?"

- K-KAGOME! – gritou ele e esperava que fosse alto o suficiente para ser ouvido até mesmo a quinhentos anos de distância.

A certeza de que Kagome estava ali bem próximo dele desesperou-o por completo. Não podia cair não importava que tipo de ser estivesse empregando uma força descomunal para levá-lo pra baixo! Ele fechou os olhos e usando toda a sua força conseguiu soltar um de seus braços que se agarrara firmemente ao que parecia ser um cipó brotando entre os blocos de alvenaria do poço. Em compensação o bicho que o prendia estava aprisionando o outro braço com tanta força que ele não sabia mais se iria aguentar aquela posição por tanto tempo.

- ICHIRO! – gritou Kagome debruçando-se sobre o poço, seus cabelos caindo em cascatas negras na sua direção – ICHIRO, AGUENTE FIRME!

- F-FAÇA ALGUMA COISA... AGORA! – gritou ele sentindo as forças diminuírem pouco a pouco.

Kagome só teve um instante para pensar no que fazer em seguida.

- Feche os seus olhos! – gritou ela – Ichiro!

- O-o quê?!

- FECHE OS OLHOS! – gritou ela, as mãos estendidas para o fundo do poço em posição – AGORA!

Uma luz muito brilhante saiu das palmas de suas mãos imediatamente após Ichiro proteger a visão. Até mesmo ela cerrou os olhos quando o poder saiu, forte e quente como uma descarga elétrica surgida de seu corpo. Ela ouviu um grunhido monstruoso do que imaginava ser o youkai que estava atacando.

Tudo o que Ichiro podia perceber depois de fechar os olhos era a presença de uma estranha luz. Você sabe, aquela sensação de que mesmo de olhos fechados, quando o ambiente em que se encontra torna-se iluminado. Apesar da vontade de descobrir que luz era aquela, Ichiro permaneceu com a cabeça baixa até que o peso em seu braço esquerdo afrouxou.

Foi quando ele abriu os olhos.

Ela estava debruçada sobre o poço, as mãos estendidas para ele, os cabelos negros caindo quase tocando seu rosto. Dava pra ver que estava ofegante, como se tivesse corrido uma grande maratona. Ela inclinou a cabeça e Ichiro percebeu que durante aqueles segundos ela não estava olhando exatamente para ele, mas sim para a tal coisa que tentara atacá-lo.

- Pegue a minhã mão, rápido! – disse ela, a angústia deixando sua voz esganiçada – Rápido, Ichiro!

Ele usou todas as suas forças para escalar o poço muito embora aquilo fosse realmente difícil já que seu braço esquerdo se encontrava um tanto inútil depois de suportar tamanho esforço. Quando alcançou a borda do poço, sentiu os braços de Kagome envolverem os dele e aquilo o ajudou a subir. Num só impulso ele apoiou os cotovelos e suspendeu o corpo.

E quando ergueu a cabeça estava a menos de cinco centímetros do rosto dela.

Os olhos de Kagome estava marejados, as bochechas mais coradas do que o normal e a franja ligeiramente bagunçada, alguns fios de cabelo caindo pelo rosto dela.

Ichiro sentou-se na borda do poço, mas não deixou de olhar nos olhos dela um só instante e esperava que isso fosse mantê-la por perto. Funcionou.

Ela se aproximou dele, uma mão ergueu-se tocando a testa do garoto de leve onde havia-se feito um pequeno corte, certamente decorrente da quase queda que ele sofrera. Que sensação era aquela que percorria Kagome por inteira? Como se um calor aconchegante se apoderasse do seu coração?

Ela conhecia bem. Era alívio.

Por que apesar de todas as preocupações que viriam com o fato de Ichiro ter presenciado o ataque de um youkai; apesar dele tê-la visto utilizando seus poderes e apesar dela ter certeza de que agora ele sabia muito mais graças à Souta... A única coisa com a qual Kagome se importava no momento era que Ichiro Masagami estava bem.

Ele desceu, ficando de pé e ainda olhava para Kagome quando ela, sem pensar duas vezes, impulsionou o corpo uma única vez, os dois braços enlaçando a cintura do garoto, acomodando-se no peito dele, soluçando baixinho.

- K-Kagome...?

Sim, eles já haviam ficado próximos antes, mas nada poderia preparar Ichiro para aquilo. Ele sentia a garota tremer um pouco.

- Kagome... O que houve?

Porque ela estava chorando? Ele não entendia. Ela balançava a cabeça de um lado para o outro, ainda escondida nos braços dele, como um animalzinho indefeso que no entanto havia acabado de salvar sua vida. Será que ela havia se machucado? Será que estava sangrando? Ichiro instintivamente afastou-a pelos ombros e começou a tocá-la nos braços e ombros tentando ter certeza de que tudo estava bem.

- O-o que você tá fazendo? – perguntou ela soltando um soluço baixinho.

- Você tá chorando então... Deve ter se machucado em algum lugar. – explicou ele acreditando piamente que aquele era o único motivo plausível para provocar o choro de Kagome – Tente me dizer onde está doendo.

- E-eu não me machuquei, Ichiro...

- O que foi, então? – perguntou ele e sua voz nunca soou tão compreensiva – Me diga o que foi, eu resolvo.

- E-eu pensei q-que... – ela tentou formular alguma frase, mas desistiu – Eu pensei que você fosse...

Ela não conseguia terminar a frase. Só de pensar em perdê-lo sentia uma tristeza tão profunda que as lágrimas brotavam sem que ela nem ao menos sentisse. Quando menos esperava, uma cachoeira havia se formado em seu rosto. Ela tentou olhar nos olhos dele.

A expressão de confusão que ele sustentava teria feito Kagome rir se ela não estivesse tão nervosa naquele momento.

- Kagome, me diga! – falou ele, segurando-a mais firmemente ainda pelos ombros – O que aconteceu?! Por que você está chorando desse jeito?

- E-eu... – e novamente ela interrompeu a frase com soluços.

- Ok, muito bem, já chega. – disse Ichiro recuperando o controle da situação e puxando-a pelo braço – Vamos num hospital agora! Você deve ter sofrido alg...

- Eu não vou! – ela soltou o braço outrora firmemente preso por Ichiro – Não estou machucada!

- Ei! Não fale assim comigo, sua idiota. – ela estava realmente se superando em termos de preocupá-lo, parecia que era seu novo esporte – Você que pensa. Você vai sim e vai ser agora!

- Eu já disse! – gritou Kagome recuando – EU NÃO ME MACHUQUEI.

- E PORQUE RAIOS VOCÊ ESTAVA CHORANDO SUA...

- POR QUE... – e alguma coisa explodiu dentro dela – EU TIVE MEDO QUE VOCÊ MORRESSE!

Foi como se o tempo estivesse à parte, flutuando na frente dele. As palavras de Kagome ecoando em seus ouvidos eternamente. Ele era capaz de imaginar mais de três dúzias de concusões, traumatismos e lesões que podiam estar ocasionando o choro descontrolado dela, mas nada passava nem ao menos perto do que ele tinha acabado de ouvir.

Ela teve medo que ele morresse. Ele. Masagami Ichiro.

Ela estava chorando por que não queria que ele morresse.

- K... K-k... – ele tentou chamá-la pelo nome e falar qualquer coisa para consolá-la, mas não conseguiu. Kagome continuou fungando, embora menos do que antes, mas parecia cobrar alguma atitude de Ichiro com o seu olhar. Ela queria que ele dissesse alguma coisa e o que ele diria? Tinha de pensar em algo que a consolasse ou a fizesse rir. Tinha de pensar e rápido.

- Hahaha, Kagome, sua tola! – falou ele rindo nervosamente – Você realmente achou que ia me acontecer alguma coisa?

Ela revirou os olhos para ele e cruzou os braços fungando uma última vez. Arrogante, como sempre. O que ela poderia esperar? Que ele a envolvesse num abraço e dissesse que tudo ficaria bem? Não combinava com Ichiro, não era do seu feitio. Ela procurou respirar fundo enquanto tentava se recompor.

Ichiro observou frustrado a não reação de Kagome à sua tentativa de animá-la. O que se passava pela cabeça daquela garota, afinal?

- Qual é o seu problema? – perguntou ele, irritado. E arrependeu-se no segundo em que recebeu um olhar magoado como resposta.

- É assim que você vai me tratar depois de eu ter salvado a sua vida?! – gritou ela, mais lágrimas rolando pelo seu rosto – Qual é o seu problema, Masagami?! Você ia morrendo!

- Idiota! – respondeu ele, segurando-a pelos ombros com força – Não aconteceu nada comigo, é isso que importa... Então pare de chorar!

- JÁ PAREI! – retrucou Kagome, com raiva – Eu não estou chorando! Satisfeito!?

Ele já havia se chamado de imbecil mentalmente milhares de vezes, mas daquela vez ele realmente estava sendo sincero. Tudo o que ele não queria era ver Kagome chorar e haviam mil maneiras românticas e delicadas de fazê-la parar. Obviamente ele não era capaz de escolher nenhuma delas e quando menos esperou suas mãos já tinham voado pros ombros de Kagome que agora ele segurava com firmeza. Tinha certeza que estava doendo um pouco nela e quando ganhou essa consciência, afrouxou um pouco as mãos.

"Você é um imbecil, Masagami." Pensou ele enquanto suas mãos desciam lentamente pelos braços da garota. Ele queria puxá-la para si mesmo e nunca mais soltar, mas Kagome chorava, então qual seria a reação dela? Será que ela realmente queria ser abraçada?

Ele tocou os cotovelos da garota brevemente e desceu para os pulsos. Sua intenção era segurar as mãos dela nas suas e Kagome percebeu isso. Ele podia dizer pela maneira como ela parou de respirar, olhando-o surpresa.

E então ele soltou os pulsos dela bruscamente.

"Fico te devendo esse abraço, Higurashi." Falou para si mesmo enquanto sua mente focava em um assunto mais intrigante e urgente. Por que a partir do momento em que fora sugado para dentro daquele poço por um monstro desconhecido, tudo o que Souta falara podia fazer sentido, certo? Ele precisava saber. E esperava que Kagome fosse capaz de contar tudo. Sem mentiras.

- Kagome... – disse ele, hesitante – O que é tudo isso?

Não sabia por que estava se iludindo com a ideia de que ele fosse deixar passar. Por que no fundo razava por isso. Como se fosse remotamente possível esquecer que um youkai havia aparecido em pleno século XXI e tentado matar você.

Ela subiu o olhar e mirou Ichiro. Ele estava sério. Assustadoramente sério.

- Souta já me contou tudo, Kagome. – disse ele e Kagome não conseguiu esconder a exclamação de surpresa – Eu só preciso ouvir de você.

- Você não pode... – e ela sabia exatamente a resposta para a pergunta que iria fazer – você não consegue simplesmente esquecer que tudo isso aconteceu?

Mas como ele poderia esquecer? Como esquecer que um demônio havia acabado de tentar acabar com a vida dele e, mais insano ainda, que uma garotinha que mal pesava cinquenta quilos havia conseguido salvá-lo sabe-se lá como?

Ele poderia muito bem dizer isso à ela. Mas soltou a pergunta-chave que de alguma forma ele sabia que lhe daria todas as respostas.

- Quem é Inuyasha, Kagome?

Ela congelou.

Jamais poderia imaginar que Souta havia chegado tão longe.

Durante os segundos em que permaneceu parada ali, ela refletiu. O que esperava afinal de contas? Que as coisas permaneceriam enterradas para sempre? Que ela fingiria que nada tinha acontecido? Ela ia mesmo omitir uma das coisas mais importantes e decisivas que aconteceram em sua vida? Não. Não era covarde desse jeito. Nunca fora. Nem podia ser...

Ichiro havia sido forte o suficiente para contar todo o seu passado para ela. Ele expôs todos os seus erros ali, na frente dela. Kagome devia isso à ele. Devia uma resposta. Uma explicação. Ele merecia saber.

Ele precisava saber.

- Precisamos sair daqui. – falou ela recuperando a firmeza outrora perdida em sua voz – Agora. Vamos.

- O quê foi isso que saiu dali, Kagome? – perguntou ele temeroso que Kagome estivesse apenas mudando de assunto.

No fundo, parte dele ainda acreditava que havia sido tudo obra de sua imaginação. Como um daqueles filmes em que acontecem coisas bizarras e você quebra a cabeça tentando descobrir como elas podem ter acontecido e no final é tudo um sonho, um devaneio do personagem principal.

- Era um youkai. – falou ela, calmamente – E ele vai retornar se não formos embora daqui agora, Ichiro.

"Ela falou." pensou Ichiro, atordoado, uma mão ergueu-se apontando sutilmente para Kagome. Ela havia dito aquela palavra que ele costumava ver escrita em antigas lendas japonesas sobre monstros e demônios. Ouvir a coisa toda sendo falada por uma adulta como ele mexia muito mais com sua mente do que as histórias que Souta havia dito. Souta era apenas uma criança. Kagome, não.

Ele queria dizer algo, mas não conseguia.

Kagome aproximou-se de Ichiro e segurou a mão dele na sua. Ela lhe deu um olhar consolador enquanto o garoto a encarava boquiaberto. Em seguida ergueu a mão que estava livre em direção ao poço e eliminou mais um pouco de energia ali. Aquilo purificaria o ambiente pelo menos por um dia. E um dia era tudo que ela precisava.

Quando se virou para Ichiro percebeu que sua boca se abrira mais ainda. Kagome não havia se importado em pedir para que ele fechasse os olhos. Ele havia visto a luz lilás que brotara de sua mão sem esforço. Certamente aquilo estava confundindo-o ainda mais.

Ela andou para fora dali, segurando firmemente a mão de Ichiro. Imediatamente avistou Souta correndo munido com um arco e algumas flechas.

- Kagome-nee-san! – disse ele, nervoso – Kagome-nee-san eu t-trouxe...

- Souta... Eu já cuidei disso. – falou ela sorrindo para o irmão – Mas me escute com atenção...

- S-sim!

- Você vai trancar o abrigo do poço. – instruiu Kagome pausadamente – Não precisa usar nenhum tipo de selo, você sabe que esses papéis que o vovô me deu nunca fizeram efeito. Eu voltarei aqui amanhã.

- Irmãzinha... – Souta parecia extremamente envergonhado e decepcionado – M-me desculpe, eu não consegui te ajudar.

- Souta.

Ele ergueu a cabeça para a irmã.

- Um dia você vai entender o quanto foi importante pra mim hoje. – Kagome olhou de Souta para Ichiro e acenou a cabeça para o segundo – Precisamos ir. Cuide de tudo por aqui, irmãozinho.

Souta viu a irmã se afastar lentamente. Ela estava de mãos dadas com Ichiro que ainda parecia totalmente consternado, como se mal pudesse acreditar no chão em que estava pisando. Ele acenou levemente pra Kagome e deu uma última olhada para trás. Seu olhar se cruzou com o dele.

Ichiro o mirou desconfiado, como se pedisse para que tudo aquilo que acontecera não tivesse sido real; como se pedisse para que alguém dissesse que não passara de uma brincadeira. Talvez se lhe tivesse sido dada a chance de escolher, ele optasse por não saber de nada, nunca.

Mas alguma coisa dizia à Souta, lá no fundo, que ele tinha feito a coisa certa.
_

Não esperava ser acordada tão abruptamente naquela manhã. O céu estava incrivelmente bonito e não combinava com a atmosfera tensa que ela captou assim que um pesadelo a despertou.

Alguma coisa não estava bem.

O primeiro nome que ela chamou foi o dele. Veio correndo, como sempre. Ela apreciou como Shippou não precisou de nenhuma explicação para entender onde eles precisavam ir naquele momento. O youkai agachou-se respeitosamente deixando-a subir nas costas dele e os dois partiram.

Agora eles estavam ali, parados, em frente ao Poço Come-Ossos. Hatsue tentando raciocinar sobre o que acontecera e Shippou aguardando sua palavra.

Quando ela finalmente falou a voz saiu baixinha e tímida, como sempre.

- Ela deteve este aqui. – disse ela.

A primeira coisa que Hatsue havia notado quando eles chegaram foi uma energia maligna no local. Ao tentar apalpar as bordas do poço e sentir alguma coisa um tentáculo pegajoso voou em sua direção, agarrando seu pulso.

Estava quase que completamente destruído.

Ela retirou o tentáculo calmamente, apesar de ter ouvido as advertências de Shippou atrás dela que gritava para que ela tivesse cuidado. Mas Hatsue sabia dos riscos. E aquele youkai já era. Tinha sido muito forte sim, ela podia sentir, mas já estava morto.

A questão era: demônios não se autodestroem daquela forma. E era evidente pela forma como fora destruído que aquele monstro havia entrado em contato com uma energia espiritual fortíssima e mais do que isso, purificadora.

A energia de uma sacerdotisa.

Hatsue mirou o que antes era parte de um poderoso youkai, completamente destruído e suspirou preocupada. Aquilo a fazia chegar à perigosas conclusões.

- Hatsue-sama... – a voz de Shippou soou atrás dela, mais perto do que esperava – Como ela pode ter destruído esse youkai...? Você não acha que ela esteve aqui, acha?

Os olhos da sacerdotisa se estreitaram. Ela ainda mantinha os olhos no tentáculo de youkai, mas não estava necessariamente analisando-o. Na verdade, aquilo ajudava-a a raciocinar sobre o por quê de outras coisas. Como o que Shippou acabara de perguntar.

- Difícil dizer. – concluiu ela – A energia está muito forte, sem dúvida. Mas não sei se é por que estamos falando do poder espiritual dela, que é muito forte, ou se seria o caso dela ter realmente atravessado o poço.

- Eu não acho que tenha sido isso. – afirmou o youkai raposa, chamando a atenção da garota.

Não era sempre que Shippou emitia suas opiniões. Ele sempre agia como se Hatsue detivesse todo o conhecimento por isso sempre julgava-se inferior guardando seus pensamentos consigo; sempre tão misterioso.

Mal sabia ele que Hatsue ansiava por ouvir sua voz. Sempre.

- Continue... – disse ela, voltando-se para fitá-lo. Ele recuou um pouco com a aproximação e abaixou a cabeça. Ela notou que tinha corado.

- A primeira coisa que Kagome faria se conseguisse vir aqui seria... Tentar falar comigo. Com... Todos os que foram nossos amigos.

Shippou mal acreditava que tinha realmente dito aquilo. Em seus piores pesadelos a sacerdotisa à sua frente dava uma resposta monosilábica, desprezando a afirmação dele. Afinal ele era só um youkai, certo? Não havia aprendido nem metade do que Hatsue aprendera em toda a sua vida e, considerando que a diferença de idade entre eles era consideravelmente grande, aquilo era um pouco vergonhoso.

Mas Hatsue não raciocinava assim.

- Eu não havia pensado nisso... – falou ela e Shippou sentiu um certo alívio – Vocês realmente tinham uma ligação muito forte, não é?

- S-sim. – respondeu ele ainda de cabeça baixa – Ela era como uma irmã mais velha pra mim.

- E você a conhecia muito bem... – emendou Hatsue – Estou certa, Shippou-kun?

Ele apenas balançou a cabeça afirmativamente. A sacerdotisa sorriu e se aproximou ainda mais dele, o suficiente para que pudesse olhar na imensidão verde escura de seus olhos que mantinham-se baixos.

- Então me diga, Shippou-kun... – ele sentiu um arrepio quando a voz dela soou tão perto – Você realmente acha que Kagome-sama viria aqui outra vez? Você acha que ela assumiria novamente toda a responsabilidade? Mesmo tendo perdido tanto aqui...?

Uma parte dele queria muito acreditar que sim. Entretanto haviam tantas memórias que lhe vinham à cabeça naquele momento. Ele fechou os olhos por alguns instantes tentando imaginar uma resposta para a pergunta da sacerdotisa.

- Ela voltaria. – afirmou ele – Ela sempre voltava.
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A primeira coisa que ocorreu à Kagome quando despediu-se de Souta foi: o que Ichiro estaria pensando naquele momento? Estava com muita vontade de perguntar, mas não conseguia prever que resposta receberia. Enquanto eles caminhavam lentamente em direção a um parque próximo muitas possibilidades passaram pela cabeça de Kagome. E se ele tivesse achado tudo aquilo um absurdo, uma brincadeira de mau gosto? E se ele se irritasse ou, pior ainda, ficasse triste?

Como fazer um homem de vinte anos entender que viajar no tempo era possível sem que ele a achasse completamente lunática?

Instintivamente, Kagome procurou a mão de Ichiro e a agarrou.

Ele apertou a mão dela, mas não conseguiu deixar de corar violentamente.

Eles chegaram numa pequena praça com alguns balanços mais à frente. Kagome o conduziu para eles e os dois se sentaram lado a lado enquanto meia dúzia de crianças brincavam numa grande caixa de areia, 15 metros à frente.

- Parece loucura, não é? – começou Kagome, rindo de leve – Eu sei o que você deve estar pensando. Às vezes nem eu acredito que isso aconteceu, de fato.

- O que foi aquilo na sua mão? – disse ele, fazendo a pergunta que ficou em sua cabeça durante todo o caminho.

- Energia espiritual.

Ela olhou para Ichiro depois de falar e o viu balançar a cabeça uma, duas vezes, confuso.

- Muito bem. – continuou ela – Acho que as coisas devem seguir uma ordem cronológica certo?

Ele assentiu com a cabeça positivamente e Kagome respirou fundo antes de começar.

- Preciso que você escute tudo até o fim. – falou ela – Preciso que você não me faça perguntas por enquanto, muito embora eu saiba que elas vão surgir e que uma hora ou outra você vai perguntar algo.

Ela observou Ichiro assentir positivamente, as sobrancelhas tensionadas e os lábios crispados. Será que não seria demais para ele? Será que não deveria lhe dar mais tempo?

"Não, Kagome" pensou ela, instintivamente. "Chegou a hora."

- É tudo verdade, Ichiro. Youkais existem. Ou existiram há muitos anos atrás já que nesta era eu ainda não vi nenhum que não tenha chegado aqui por intermédio daquele poço. – ele abriu a boca para falar algo e Kagome soube instintivamente qual seria a pergunta – Sim, aquele poço é um portal. Eu descobri isso quando tinha quinze anos. Estava indo resgatar meu gato que havia caído lá e quando eu cheguei perto aconteceu exatamente o que aconteceu com você agora a pouco. Um youkai me puxou. E eu viajei no tempo. Voltei quinhentos anos. E a história que eu tenho de lhe contar aconteceu há ainda mais tempo...

Ele observou enquanto Kagome respirava fundo e mirava algum ponto fixo à frente, onde as crianças brincavam na caixa de areia. Ela parecia um pouco perdida, sem saber por onde começar. Ichiro soltou o braço e encostou no dela de leve, encorajando-a. Ela virou a cabeça para mirá-lo e deu um sorriso triste antes de recomeçar a falar.

- Há quinhentos e cinquenta anos atrás havia uma sacerdotisa chamada Kikyou que guardava uma jóia muito poderosa. Você deve conhecer a lenda da jóia de quatro almas, certo? Era exatamente essa. Kikyou era muito bondosa, mas como sacerdotisa não podia se envolver com nenhum homem amorosamente falando. Acredito hoje que isso a deixava frustrada. Ela não conseguiu evitar de se apaixonar no fim das contas. E muitos youkais cobiçavam o poder dessa jóia de forma que, com Kikyou vulnerável, surgiram muitas oportunidades para que qualquer um deles se apoderasse dela.

"Kikyou cuidava de um ladrão chamado Onigumo. Ele havia caído numa caverna, sofrido várias queimaduras e estava incapaz de se mover. Ele tinha um coração terrível, ganancioso, ambicioso... E quando ele se apaixonou por Kikyou tudo piorou. Onigumo vendeu sua alma e corpo a muitos youkais malignos diferentes. E se tornou um hanyou chamado Naraku.

"Mas ele queria mais. Ele queria a jóia que estava com Kikyou e por isso armou uma emboscada para ela e... O homem, o hanyou pelo qual ela se apaixonou. Eles terminaram se odiando e Kikyou foi gravemente ferida. A jóia seria corrompida pelo ódio se não fosse pelo pedido final dela para que fosse queimada junto com seu corpo e..."

- Kagome... – interrompeu Ichiro, mal conseguindo se conter – Eu não entendo... O que essa história tem a ver com você afinal de contas?

Ela respirou mais uma vez, sentindo-se fraca e nervosa ao mesmo tempo. Olhou Ichiro no fundo dos olhos e continuou.

- Kikyou pediu para a jóia antes de morrer uma chance de ver de novo aquele que ela amava. Esse pedido purificou a jóia e essa chance veio. Não da forma que todos esperam, mas veio. A jóia nunca se negaria a atender um pedido desses... Foi aí que a alma de Kikyou, que antes não tinha intenção alguma de reencarnar, renasceu em outro corpo... No meu corpo.

- V-você...? – gaguejou ele. Parecia estar absorvendo bem as palavras de Kagome, mas naquele momento sua mente trabalhava tentando chegar à uma conclusão que ela já podia prever.

Depois de alguns segundos ele se virou pra ela abruptamente.

- Então é por isso que você pode fazer essas... Coisas. Certo? – falou ele.

- Isso.

- Por isso você pode atravessar o tempo, não é? – raciocinou ele – através daquele poço.

Ele estava pegando as coisas mais rápido do que ela pensava. Kagome sentiu medo. Não pretendia contar tudo, afinal de que adiantaria para Ichiro saber que ela achava que ele poderia ser a reencarnação de Inuyasha? Melhor não. Quanto mais ela pudesse retardar o momento em que finalmente falaria dele, melhor.

- Não exatamente. – respondeu ela – Eu só consegui atravessar da primeira vez por que a jóia estava comigo, dentro de mim.

- Dentro?! – exclamou ele, surpreso.

- É, eu sei. – riu ela – um pouco bizarro, mas sim. E quando eu atravessei o poço pra outra Era esse mesmo monstro que me puxou, me perseguiu e arrancou a jóia que estava na minha barriga. E tudo estaria resolvido se eu não tivesse cometido o deslize de... Er... Quebrá-la em vários pedaços acidentalmente.

Ichiro ergueu uma sobrancelha.

- Um monstro dá uma dentada na sua barriga sem quebrar uma bolinha minúscula de vidro e você com essas mãozinhas diminutas conseguiu gerar um estrago maior? – provocou ele, brincando, tentando amenizar a tensão entre os dois – Eu já devia imaginar que você sempre foi atrapalhada assim. Sério, Kagome como você conseguiu quebrar essa jóia?

Ela cruzou os braços revirando os olhos, mas satisfeita por ele ter ensaiado uma tentativa de piada.

- Você quer que eu conte a história ou não?! – resmungou ela.

- Tá... Que seja. – ele ergueu os dois braços se rendendo.

Kagome deu um sorrisinho vitorioso e continuou a falar.

- É que um youkai em forma de pássaro pegou a jóia e engoliu e eu tive que atirar nele com um arco de flecha. Só que... – ela colocou a mão atrás da cabeça envergonhada – Nessa época eu não sabia bem atirar com um arco e flecha então...

- Você acertou a jóia...

- Isso. Então eu tive que sair à procura dos pedaços. – retomou ela – E então eu fiquei transitando entre os dois mundos coletando os fragmentos. E depois que a jóia foi completada terminou minha missão. E eu voltei pra cá, com ela. Só que agora esses youkais estão aparecendo e eu acho qu...

- Espera.

Kagome parou de falar e olhou para Ichiro. Ele carregava uma expressão desconfiada no rosto o que a fez ficar nervosa.

- Alguma coisa não se encaixa. – disse ele, pensando em voz alta – Foi fácil coletar esses fragmentos? Eles caíram perto um do outro?

- Errr... Na verdade, eles se espalharam por todo o país.

- Todo o país?! Quanto tempo você demorou pra fazer isso? E sozinha? Durante o ano de colegial?

- Não, não! Na verdade eu tive ajuda!

- De quem?

- Eu estava com... Uns amigos!

Ele ergueu a sobrancelha novamente.

- Amigos daqui? E como eles atravessaram o poço? Como eles acreditaram em você?

- Oras! Primeiro que não eram daqui e segundo que... Bem, você está acreditando em mim agora, não está?

- Se você estiver me contando tudo eu vou acreditar em você.

Ele deu uma ênfase na palavra "tudo" ela tinha certeza. Ele sabia. Ela só tinha que se fazer de desentendida por mais tempo. Torcia para estar enganada, para ele não ter percebido nada de estranho.

- Eu estou. – falou ela, simplesmente.

- O pedido da Kikyou foi atendido, você disse.

- S-sim... – ele estava bem perto, ela sentia.

- Então você o viu. O cara que ela gostava.

E Kagome lembrou-se com nitidez da primeira vez que avistara Inuyasha. De como ele parecia sereno e tranquilo, preso à uma árvore, como se nem um dia tivesse se passado. E as lágrimas começaram a querer aparecer.

- Sim, eu vi.

- Qual era o nome dele, Kagome?

- Isso é pessoal. – respondeu ela, sem pensar.

Ichiro soltou uma risada alta e balançou a cabeça, sem acreditar nela.

- Você me conta todas essas histórias que poderiam querer me fazer me internar num hospício e não quer me dizer um nome por que é pessoal demais? Ora, vamos, Kagome.

Ela se levantou do balanço e ficou de costas pra ele. Um vento muito leve soprava contra o seu rosto adiando o momento em que as lágrimas rolariam inevitavelmente.

Sentiu um movimento atrás dela. Ele havia se levantado, estava se aproximando. Ela sentiu uma mão pesada se apoiar em seu ombro e a respiração quente e tranquila dele soprando seus cabelos.

- Era Inuyasha, Kagome?

- Não... Não. – ela se virou com raiva tirando a mão dele de seu ombro – Como?! Como você pode saber tanto?!

- Era o nome dele que você resmungava durante o sono, naquela vez que dormi na sua casa! – gritou ele, sem tentar esconder os ciúmes – Ele é o cara da fotografia que Zhang encontrou na sua gaveta! Eu sei! O cara que você perdeu há três anos atrás!

- A Zhang te contou isso? – falou Kagome, magoada, sem acreditar que sua confiança pudesse ter sido quebrada dessa forma.

- Não desconte nela, EU a pressionei. E não mude de assunto, Kagome. Tá na sua cara que é ele.

- E do que isso importa?! – gritou ela, irritada – Você não tem nada a ver com isso. Não é da sua conta!

As palavras dela o atingiram como facas. Por que ele havia acabado de perceber que não estava em posição de exigir nada de Kagome. Nada além das explicações que ela já havia dado... E somente por que ele escapou por um triz da morte naquele maldito poço. Ela não tinha mais nenhuma obrigação além disso. Ela era livre como fora a três anos atrás e como era agora. Como ele poderia pensar que ela estava interessada em ter alguma coisa com ele? Como ele conseguiu se iludir dessa forma?

- Você tem razão. – falou ele, sua voz soando incrivelmente calma – Eu não tenho nada a ver com isso.

- Ichiro...

Ela ia se desculpar pelas grosserias, tentar reparar o erro, mas ele passou por ela como se ela não existisse e seguiu na direção oposta. Sem dizer uma palavra.

- Ichiro, desculpe... – ela correu na direção dele, agarrando-o pelo braço – Espera! E-e...

Ele não se deu o trabalho de virar-se completamente. Olhou de relance para Kagome e ela poderia jurar que viu um brilho diferente nos olhos dele.

- Você não tem que se desculpar. – disse ele, magoado – Desculpe a mim... Por me intrometer na sua vida.

- Ichiro, pare! – ela não iria deixá-lo escapar tão facilmente – Eu quero você na minha vida, você não entende!

Ele quase sentiu-se melhor com aquela frase, mas manteve-se firme e soltou o braço que Kagome segurava.

- Como posso fazer parte da sua vida, Kagome? Como posso competir com a memória de um cara que, apenas por ter existido, deixa você chorar até hoje?

Ela soluçou baixinho. Não sabia responder. E não soube o que responder nem quando ele começou a andar novamente, firme, sem olhar pra trás. Ele não ia voltar e ela queria chamá-lo de volta, mas simplesmente teve que se ajoelhar para tomar ar.

O que havia acabado de fazer, afinal?
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Zhang bateu na porta do quarto de Ichiro pela vigésima vez naquele dia. Ou ao menos ela achava que era a vigésima, já fazia um tempo que havia parado de contar.

- Será que dá pra você sair desse quarto um instante? – chamou ela – Ou ao menos me deixe entrar, eu fiz comida pra você.

- Não. – murmurrou ele sem se importar se ela ouvira.

Zhang abanou a cabeça preocupada e depositou a bandeja no chão, ao lado da porta do quarto dele.

- É o seu favorito... – disse ela, fazendo uma última tentativa – Eu só quero que você saiba que quando estiver preparado pra me contar o que raios aconteceu no Templo Higurashi entre você e Kagome... Bom, eu estarei pronta pra ouvir.

- Eu não quero conversar! – gritou ele, sem ligar se estava sendo mal educado.

- ÓTIMO! – gritou Zhang em resposta. E saiu pisando forte rumo ao próprio quarto.

Ela poderia ter feito um discurso enorme dizendo como estava preocupada com a falta de apetite dele já que eram dez horas da noite e ele não dava sinais de querer comer nada. Kagome não atendera nenhuma de suas chamadas e isso confirmava que alguma coisa tinha acontecido entre os dois de forma que era isso que o estava incomodando. Ela havia conseguido arrancar de Ichiro que ele estivera no Templo e só precisou juntar as peças para concluir que provavelmente ele havia estado lá na mesma hora que Kagome chegou.

Ela conseguia imaginar os dois discutindo por algum motivo bobo – na verdade não entendia por que eles simplesmente não podiam ficar juntos de uma vez – mas nunca tinha visto na vida o irmão ficar daquele jeito. Qualquer que tenha sido a razão da briga, definitivamente era algo sério.

Zhang pegou o celular e ligou para Kagome mais uma vez, em vão. Já havia tentado falar com a amiga catorze vezes ao todo. Suspirou desapontada e decidiu telefonar para Samantha que devia estar tão desinformada quanto ela, mas ao menos poderia ajudá-la a pensar numa forma de animar Kagome no dia seguinte.
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Todo o seu corpo doía quando levantou pela manhã do dia seguinte. Em parte, pelo esforço psicológico que teve de fazer para contar toda a verdade para Ichiro; por outro lado, depois da discussão ainda ousou voltar ao Templo e emanar mais energia purificadora o que ela esperava que mantivesse o local seguro até que pudesse fazer algo a respeito.

Não sentia a menor vontade de ir à Toudai, mas faltar à aula não era uma opção e ela precisaria encará-lo mais cedo ou mais tarde. Preferia que fosse o mais cedo possível. Se livrar logo da culpa.

Sim, culpa. Ichiro não merecia ter ouvido aquelas mentiras. Ainda se perguntava como tinha tido coragem de falar que não o queria em sua vida quando era exatamente o contrário. Não podia evitar: gostava dele. Muito. Tinha medo do que aquilo poderia causar na sua vida, mas não negaria mais nem por um segundo. Ela soube no momento em que sentiu o impulso de salvá-lo, soube no momento em que começou a chorar agradecendo por ele estar vivo.

Se havia uma coisa que consolava Kagome era ter salvado a vida dele. Era o pensamento que usava para se alegrar quando a tristeza e a angústia se tornavam insuportáveis: ele estava bem, ao menos.

Mesmo assim, concentrava-se em bolar um bom pedido de desculpas para ele. Era improvável que ele quisesse ouvi-la, mas ela sempre esperava o melhor.

Ergueu-se da cama de uma só vez e tomou um banho rápido vestindo-se rapidamente depois. O relógio indicava que ela já estava atrasada de forma que tomou um copo de suco às pressas e ignorou o carro andando até a estação de metrô mais próxima. Pelo menos estava com sorte: o trânsito era insuportável àquela hora, havia tomado a decisão certa ao pegar o trem.

Entrou de fininho na sala de aula, tentando não fazer muito barulho. Logo avistou Samantha na outra ponta sacudindo um braço discretamente: ela havia guardado a carteira do lado para Kagome.

- Obrigada! – murmurrou ela, sentando-se. Mal teve tempo de se acomodar no lugar quando uma Zhang irritada cutucou-a pelo ombro. Kagome virou-se discretamente e viu a amiga apontar para o próprio celular enfaticamente.

Ela sabia que era um sinal para checar seu aparelho e quando destravou o teclado deu de cara com as catorze chamadas não atendidas de Zhang, mais duas de Samantha. Ela devia saber que as amigas iriam cobrar explicações. Esperava que Ichiro não tivesse dado com a língua nos dentes para a irmã e achava que estava certa. O nível de curiosidade de Zhang era palpável de forma que Kagome percebeu que ela provavelmente não sabia de nada.

Para sorte das amigas e azar de Kagome, o segundo horário era totalmente livre. Foi só o professor anunciar que a aula estava terminada para Zhang levantar da cadeira e enchê-la de perguntas.

- Então, pode começar... – disse Zhang, batendo o pé no chão demonstrando sua impaciência – Por que meu irmão recusou-se a comer ontem à noite e ficou trancado no quarto hoje ao invés de vir pra cá?

- Ele não veio...? – perguntou Kagome, um tanto desapontada – Ele disse alguma coisa?

- Não! – interveio Sam surgindo atrás dela – Não tá vendo que é por isso que a Zhang tá prestes a ter um infarto fulminante?

- Mas de quem vocês tanto falam, hem? – intrometeu-se Kayri – Posso saber?

- Sai daqui, é conversa de mulher. – respondeu Sam, sem dar muita trela.

- Eeeei! – Kayri franziu o cenho, irritado e pôs as mãos na cintura de Samantha – Eu pensei que uma das vantagens de ser seu namorado seria ficar sabendo dessas conversas "internas" de vocês três.

As três olharam para Kayri com as respectivas expressões de incredulidade.

- Namorar comigo traz muitas vantagens – falou Sam numa entonação quase maliciosa – mas saber dos nossos segredinhos não é uma delas, portanto dê meia volta e vá comprar alguma coisa pra gente comer.

- Não contem com isso. – resmungou Kayri dando um beijo no rosto de Sam contraditoriamente. Eles sorriram um pro outro e ele piscou um olho pra ela enquanto se distanciava chamando os outros três amigos do grupo.

- Cara... – falou Zhang – eu ainda preciso me acostumar com vocês dois.

As três riram juntas, mas Sam não deixou o assunto escapar e logo interrompeu o momento descontraído com mais perguntas para Kagome.

- E então? Vai nos contar de uma vez o que rolou entre você e o Ichiro?

- Por favor, meninas, foi mais sério do que vocês pensam e... – Kagome apertou os olhos com força tentando não chorar – Eu não to muito a fim de conversar sobre isso agora. Tudo o que eu quero é me distrair um pouco. Pode ser?

Ela olhou de Sam para Zhang com o olhar de súplica mais convincente que conseguiu fazer e as amigas, apesar de trazerem expressões preocupadas nos rostos, acenaram positivamente com a cabeça e se apressaram a mudar de assunto.

O fato é que ambas perceberam que Kagome estava à beira das lágrimas e como Ichiro também se comportava de maneira extremamente bizarra concluíram que o assunto dizia respeito somente aos dois. Zhang acenou para Sam e ela captou a mensagem: a missão do dia era deixar a curiosidade de lado e tentar animar Kagome um pouco.

Por sorte, Kayri não ignorou o pedido da namorada e voltou com três chocolates quentes caprichados para cada uma delas. Não foi tão difícil arrancar risadas de Kagome com todos ali, reunidos. Os garotos, ao contrário de Kagome, tinham histórias muito mais engraçadas e divertidas para contar sobre o fim de semana que passou e ela ficou satisfeita em ouvi-las. Ajudava-a a distrair-se.

Mas durante toda a manhã, Kagome não pôde deixar de pensar em Ichiro sem comer, nem vir pra aula possivelmente por causa dela.

A culpa não a abandonou nem por um segundo.
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- Fico feliz que tenha aceitado vir comigo. Você sabe que eu teria partido com ou sem você, não sabe?

O vento batia forte em seu rosto delicado agitando o longo quimono esvoaçante e os cabelos presos em um alto rabo-de-cavalo. Ela sempre se sentia relaxada e tranquila quando montava nele e os dois viajavam juntos por todo o Japão, conhecendo todo tipo de lugar que ela sempre quis conhecer. No entanto, aquela viagem era um pouco diferente. Havia um clima de tensão no ar, como se algo estivesse para acontecer a qualquer momento.

Os youkais não eram os únicos que sentiam, mas eles e os sacerdotes e monges eram os mais afetados pela mudança. Ela já havia comentado com ele algumas vezes e conseguira arrancar algumas poucas explicações, mas as coisas só ficaram mais compreensíveis quando recebeu a visita de um velho conhecido youkai de cabelos vermelhos e olhos intensamente verdes.

Até mesmo ele ficara atordoado com a vinda de Shippou e com as coisas que dissera. Obviamente fingiu que pouco se importava e fora ela que o atentou para os perigos dos acontecimentos futuros e o que tudo aquilo representaria para todos os youkais, não só para os diretamente envolvidos no assunto.

Finalmente convencera-o a partir com ela. Não que ele estivesse de muito bom humor. Ao ouvir o que ela disse, rugiu baixinho e virou a cabeça acelerando mais o passo de propósito.

- Vá mais devagar, por favor. – protestou ela, um vinco de tensão formando-se em sua testa – Você sabe que odeio quando você vai rápido demais.

O grande cachorro branco grunhiu em resposta, mas desacelerou um pouco, obedecendo aos pedidos dela.

- Isso. – falou ela, docemente e acariciou os longos pelos brancos dele – Obrigada.

Ele deu uma olhada para trás e mirou o rosto da jovem mulher que sorria para ele, nenhum traço de irritação ou impaciência em sua expressão.

Imediatamente sentiu uma sensação de paz. E o resto do caminho foi uma agradável viagem para ambos apesar da responsabilidade que os aguardava no final.
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O relógio de parede na sala de aula já marcava quase meio-dia quando a aula foi dada como terminada pelo professor. Kagome já tinha se encolhido na carteira, o queixo apoiado numa das mãos, um ar de sonolência constante. Começou a juntar suas coisas devagar preparando-se para enfrentar um metrô lotado na volta para casa.

- Se sente melhor? – perguntou Sam, solícita.

Kagome apenas abanou a cabeça em resposta, mas quando ia fazer menção de dizer algo que melhorasse o humor da amiga uma voz aguda e irritante encheu seus ouvidos.

- Será que eu poderia falar com a Zhang? – perguntou a garota entrando pela porta da sala de aula – Masagami Zhang estuda aqui?

Zhang ergueu uma sobrancelha, tentando entender quem era aquela menina, mas Kagome reconheceu-a imediatamente.

Era Hasegawa. Provavelmente a única pessoa em toda a Toudai por quem Kagome nutria uma sincera antipatia. Zhang levantou um braço discretamente enquanto olhava a estranha se aproximar como se fosse uma velha amiga de infância dela.

- Oi, querida! – falou ela para Zhang – Você é a irmã do Ichiro, não é?

- Er... Sou, claro. – respondeu ela ainda desconfortável com o fato de ter sido chamada de "querida" por uma desconhecida – E você é...?

- Ah, claro! – respondeu a outra sacudindo os cabelos loiros pra cima de Zhang – Sou Kyiomi Hasegawa! Sou uma grande amiga do seu irmão e como ele não veio à aula hoje, estou disponível pra levar tudo o que ele perdeu e entregar em mãos para ele.

Kagome balançou a cabeça de um lado para o outro. "Como ela ousava...?"

E Zhang lembrou nervosamente da única vez em que encontrara Kyiomi. Na portaria de seu prédio, saindo com cara de sono, as roupas meio mal colocadas. Uma garrafa de whisky quase vazia e um Ichiro de ressaca.

Kagome e Ichiro já estavam tendo problemas suficientes sem ninguém se intrometer entre os dois. Não iria deixar essa aproveitadora tomar um segundo que fosse do tempo do seu irmão que, naquele momento, encontrava-se bastante vulnerável.

- Na verdade não precisa, Hasegawa. – respondeu Zhang, secamente – Eu mesma... Posso entregar isso à ele.

- Você não tem aulas de violino às segundas e quartas, Zhang? – falou Samantha.

Por um instante Kagome se enfureceu com a amiga. De que lado ela estava jogando fazendo um comentário daqueles? Se Zhang estava disposta à faltar a aula para evitar que aquela garota se encontrasse com Ichiro, tudo bem. Tudo mais do que bem!

Kagome lançou um olhar fuzilante para Sam que a ignorou totalmente.

- Nesse caso... – continuou Kyiomi, com um ar de vitória detestável – eu mesma posso...

- Não! – gritou Zhang, um tanto quanto enfática demais. Kyiomi olhou para ela, estupefata.

Mas Sam estava pronta.

- Kagome, você tinha mesmo umas coisas pra resolver com o Ichiro agora, não?

E então o plano de Sam ficou bastante claro para as duas. Kagome virou-se para a amiga, um sorrisinho discreto formando-se pelo canto dos lábios.

- Aqueles CDs que eu fiquei de pegar com ele? – perguntou ela, entrando no jogo.

- Ah, é mesmo! – disse Zhang esperando complementar a mentira – Ele separou todos pra você ontem, Kagome!

- Então... Hasegawa. – chamou Kagome, aproximando-se – Eu não me importarei nem um pouco de entregar todas as suas anotações para Ichiro. Muito pelo contrário, vai ser um prazer. Assim você não tem nem que se deslocar até lá.

Kyiomi não pareceu se convencer muito e ergueu uma sobrancelha descolorida, os lábios cheios de gloss cor-de-rosa estalando-se. Parecia se esforçar consideravelmente para entender o que as três estavam tramando ou por que Zhang não tinha interesse que ela fosse ver pessoalmente o irmão. Como sua mente mostrou-se incapaz de elaborar um protesto, ela entregou, ainda que relutantemente, os papéis que havia preparado para Ichiro.

Kagome nem ao menos esperou ela terminar de estender a encomenda, agarrou tudo das mãos de Kyiomi abruptamente e deu um sorrisinho falso enquanto saía da sala.

- Ele vai ficar agradecido, querida – falou Zhang antes de sair de cena – obrigadinha!

Kagome mal conseguia conter o riso, em parte por que a situação toda foi muito engraçada, mas principalmente por que se sentia extremamente nervosa ao pensar que dentro de mais ou menos meia hora estaria de cara com Ichiro, trazendo uma desculpa aceitável para falar com ele. Era a oportunidade perfeita para demonstrar seu arrependimento e, principalmente, ver como ele estava lidando com todas as revelações que ela fizera.

- Muito bem então – começou Zhang – isso aqui deve ficar com você, pode subir direto quando chegar lá você ainda lembra o caminho, não lembra?

Kagome olhou para a amiga pegando o molho de chaves que ela lhe estendia.

- Você não vai? – mas a pergunta que queria mesmo fazer era "eu vou ter de ir sozinha?"

- Claro, Kagome, eu já estou atrasadíssima pra aula! – disse ela como se tudo estivesse óbvio e claro desde o princípio – Não vai ter problema nenhum, é só o Ichiro...

Kagome franziu o cenho, relutante. Não era Ichiro era especialmente Ichiro. Sentiu um certo pânico apoderando-se dela aos poucos, mas controlou-se. Tinha que conseguir, ele merecia um pedido de desculpas ou ao menos uma tentativa da parte dela.

Pegou o metrô e foi direto para o apartamento no centro da cidade de Zhang. Enquanto esperava a estação certa não parou de pensar na situação toda um só minuto. Na noite anterior não tinha tido tempo algum para refletir sobre o que acontecera, mas agora que se encontrava sozinha sem ter aulas ou amigos que a distraíssem as cenas voltavam à sua mente com uma velocidade incrível.

Ela segurava o riso todas as vezes que se lembrava que estava vivenciando as mesmas coisas que vivenciara com Inuyasha só que de um ponto de vista diferente. Daquela vez, ela que era atormentada por dramas passados e admitia que por causa disso não conseguia se entregar nem deixar as pessoas se aproximarem tanto. Naquele instante, Kagome nunca havia conseguido entender Inuyasha tão bem. Era difícil se desapegar de um passado tão traumático e marcante.

Ichiro tinha todo o direito de estar magoado como ela própria ficara tantas vezes antes. Talvez ele já tivesse superado tudo em apenas uma noite – nunca conseguia prever muito bem o efeito das coisas sobre ele – e então Kagome seria poupada do trabalho. Abanou a cabeça levemente. Se ele não se importasse significava que ele não sentia nem metade do que ela sentia por ele. E isso era doloroso demais para que ela pudesse sequer imaginar.

Com um susto, percebeu que já havia chegado à estação de metrô mais próxima da residência dos Masagami e saiu com dificuldade por entre a multidão quase ficando presa entre as portas. Ela então apressou o passo e seguiu cruzando um ou dois quarteirões e dando de cara com a fachada imponente da guarita.

O porteiro não fez perguntas, apenas abanou a cabeça e indicou-a o elevador. Zhang provavelmente tinha deixado-o de sobreaviso. Kagome agradeceu com um sorriso e subiu rumo ao apartamento de Ichiro.

Ela seguia num ritmo constante e rápido até que deu de cara com a porta pesada de madeira, a entrada do apartamento. O hall era minúsculo – já que só havia um apartamento por andar – mas mesmo assim Kagome se deteve ali, muda, todos os seus músculos parados, recusando-se a se mexer. Isso porque pela primeira vez desde que decidira ir até ali ela estava pensando, de fato, no quê exatamente ela iria dizer.

Mas Kagome se conhecia muito bem e logo desistiu de bolar um discurso mais complexo. Ela também sabia que todas as vezes que tentara prever as reações de Ichiro havia falhado miseravelmente. Então pra quê gastar tempo precioso pensando em frases que ela provavelmente nem iria usar? Assim que ele desse a resposta que ela menos esperava, seria obrigada a mudar toda a sua fala.

Sem pensar mais ela colocou a chave na porta e girou.

Imediatamente ela escutou uma música vinda do lado direito, provavelmente de um dos quartos do corredor. Tentou identificar a música ou ao menos a banda, mas não conseguiu.

Ela teria de se aproximar mais para descobrir.

Por algum motivo começou a andar na ponta dos pés, como se estivesse fazendo algo tremendamente errado. Passou pela cozinha que estava um tanto quanto bagunçada: uma caixa de lasanha de micro-ondas vazia e duas latas de refrigerante amontoadas na pia.

"Então ele comeu alguma coisa depois que a Zhang saiu."

Suspirou aliviada e deu os primeiros passos no corredor.

Havia três suítes na casa: uma para Zhang, uma para Ichiro e uma para o casal Masagami. A de Ichiro ficava exatamente entre as duas e assim que observou mais atentamente Kagome notou que era de lá que vinha a música.

Aquilo era óbvio visto que os pais de Ichiro estavam quilômetros distantes e que ela havia acabado de se despedir de Zhang. Revirou os olhos para si mesma.

Nos instantes que se seguiram, tomou coragem e caminhou rapidamente para a porta do quarto de Ichiro. Estava entreaberta e ela conseguiu finalmente escutar que música estava tocando. Já conseguia identificar a canção Auto Pilot pela metade. A segunda coisa que notou foi o cheiro de tabaco forte e em seguida viu um vulto passando pela fresta da porta.

Ela o ouviu mexer em algumas gavetas e foi o momento que escolheu para apoiar a cabeça na porta e bater levemente três vezes.

Não disse nada apenas esperou a reação dele. Não o ouvia mais abrir e fechar as gavetas então presumiu que ele havia escutado. Passado dois segundos, bateu mais duas vezes.

Kagome ouviu passos pesados se aproximarem e se desencostou da porta no exato segundo em que Ichiro a escancarou, resmungando irritado.

- O que você quer, Zhang?

Ele parou e todo o seu corpo entrou em estado de alerta quando viu quem estava parada em frente a porta. A última pessoa que esperava ver em tão pouco tempo... Parecia-lhe que seu coração brincava com ele, fazendo-o sentir vontade de gritar, chorar, sorrir, abraça-la e expulsa-la tudo ao mesmo tempo. Mas como poderia ter outra reação que não fosse ficar completamente parado, olhando pra ela sem acreditar.

Estava tão linda... Ela sempre estava tão linda.

Kagome se encolheu um pouco, mas procurou não demonstrar. Ele estava usando uma camiseta preta regata com uma caveira enorme estampada e as calças de moletom cinza. Trazia nas mãos um cigarro quase no fim e uma expressão indecifrável no rosto que ela interpretou como uma defensiva. Sem perder tempo, recorreu à desculpa perfeita que jazia em seu braço na forma de inúmeras folhas com anotações.

- E-eu vim trazer isso! – e ela estendeu os papéis à ele.

Ele analisou os papéis e logo percebeu que eram alguma coisa relacionada às aulas que ele havia perdido naquele dia. Como tinham ido parar na mão de Kagome? Como ela havia entrado no seu apartamento sem que ele notasse? Sua cabeça zunia de questionamentos, mas ele só conseguiu estender a mão e pegar os papeis, finalmente, depois de longos segundos. Deu longo trago no cigarro e balançou a cabeça uma vez discretamente e Kagome perguntou-se se aquela era a forma que ele tinha de se dizer agradecido?

- Ichiro... Será que a gente pode... – ela começou, cautelosa – Sei lá, conversar sobre o que aconteceu ontem?

Ele ergueu uma sobrancelha para ela. E em seguida sem dizer mais nenhuma palavra virou-se, entrando no quarto e apagou o cigarro no cinzeiro. Kagome entrou também sem parar muito para pensar se a porta escancarada era um convite e fechou-a atrás de si o que fez com que ele se virasse imediatamente, surpreso.

- Você não veio só para entregar meu dever de casa, afinal. – disse ele, irônico.

- Não, não vim só por isso. – respondeu ela, segura – Eu vim pra pedir desculpas...

Ichiro olhou para Kagome um pouco mais surpreso, mas o momento não durou nem um milésimo de segundo. A ação seguinte dele foi catar mais um cigarro da carteira. Kagome percebeu que ele já havia fumado metade do maço.

Ela se aproximou rapidamente de Ichiro e tirou o cigarro das mãos dele sem cerimônia.

- Acho que você já teve demais disso por hoje. – falou ela descartando o cigarro.

- Qual é, Kagome, desde quando você se importa comigo ou com a saúde dos meus pulmões? – respondeu ele, adquirindo o tom sarcástico.

- Ah, qual é você, Ichiro?! – retrucou ela, sentindo-se provocada de repente – Desde quando você esquece que eu me importo tanto ao ponto de salvar a sua vida?

Ele soltou uma risada seca e tentou evitar o olhar de Kagome.

- Eu sabia que você iria falar isso. – respondeu ele, deixando Kagome desconcertada – Você é uma pessoa boa Higurashi. Salvar os outros é algo que você simplesmente... faz. E não ouse dizer que estou errado.

Ela o deixou pensar como quisesse. No fundo, sabia que tinha certa razão e também sabia que não tinha escolhido a forma mais segura de começar. Passou a considerar que ter bolado um discurso não teria sido uma má ideia. Mas naquele momento era tarde demais e ela teria que apelar para o que quer que pudesse improvisar.

Eles ficaram calados por tempo o suficiente para que uma nova música começasse a tocar. Foi aí que ela se encheu de mais um pouco de coragem para fazer uma nova tentativa.

- Me desculpe, Ichiro. De verdade. Eu não sei onde estava com a cabeça. – ela massageou as duas mãos uma na outra e respirou fundo – Foram coisas demais pra você ontem e eu ainda fui grossa com você, tentando te afastar, saiba que o que eu disse sobre não querer que você... Bom, não é verdade.

Ela experimentou tentar encontrar o olhar dele. Ichiro mirava-a com as sobrancelhas tensionadas, a boca presa num não-sorriso torto e os braços cruzados.

- Por favor... – Kagome apoiou as mãos nos braços dele fazendo uma pequena pressão para descruzá-los – Eu não quis dizer que não era da sua conta nem que... Eu não queria você na minha vida ou qualquer outra coisa que você possa ter entendido, eu...

- Não. – Ichiro se mexeu para um lado, mas não ousou fugir do contato corporal de Kagome – Eu não entendi nada errado. Você me disse que não era da minha conta. Eu sei muito bem o que ouvi.

- E você sabe mais do que ninguém... – ela se aproximou mais ainda dele, a cabeça um pouco levantada para poder olhar nos olhos – que muitas vezes a gente faz e diz certas coisas sem querer.

Ichiro parou um instante, assimilando a indireta de Kagome. Era óbvio que ela estava se referindo a todas as merdas que ele tinha feito no passado. Talvez também no presente, mas o que ela realmente queria dizer com aquilo? Será que Kagome poderia ser capaz de passar por cima de todas as coisas ruins que ele fizera e mesmo assim ainda querer estar junto dele?

Não, impossível.

- Olha, Kagome... Mesmo que o que você está me dizendo seja verdade eu...

- Ichiro, escute aqui. – ela tomou um segundo para respirar fundo antes de prosseguir – Eu não sei exatamente o quê está me atraindo pra você. Eu nem ao menos sei por que estou insistindo nisso quando você disse claramente e com todas as letras que achava melhor que nos afastássemos. Só que... Eu me importo.

- Eu não quis dizer aquilo... – era quase impossível acreditar que ele tivesse realmente proferido aquelas palavras, tudo para protegê-la dele mesmo. Era muito difícil de acreditar que ele algum dia conseguiria se manter longe daquela garota por muito tempo, especialmente agora com ela tão perto e se aproximando ainda mais. Perigosamente próxima... Quando se deu conta percebeu que Kagome havia vencido grande parte da distância entre eles e o olhava de uma forma que ele nunca vira antes.

- Então você... Quer dizer... Nós vamos continuar...? – perguntou ela, os olhinhos tremendo levemente, hesitantes.

Terrivelmente linda.

Ele franziu as sobrancelhas demoradamente e, desobedecendo os conselhos de Kagome puxou um outro cigarro do maço que estava logo atrás dele.

Kagome revirou os olhos e se afastou de novo. Ichiro suspirou de alívio: tinha dado certo.

Ele simplesmente não ia conseguir se segurar por muito tempo se ela continuasse tão próxima. Respirou a fumaça suavemente e a expulsou dos pulmões provocando exatamente a reação que esperava provocar nela.

- Argh. – Kagome abanava as mãos afastando a fumaça – Como você consegue fumar num quarto claustrofóbico desses?

- Eu nunca deixei de ser quem eu fui, sabe? – falou ele, afastando o olhar em direção à janela – Um moleque egoísta, quebrado pela vida... Não importa o que me levou a ser quem eu sou, Kagome, eu só quero que você saiba que eu nem sei por onde começar a tentar, mas...

Ela cruzou os braços sem entender a princípio até que ele continuou.

- O que eu sei é que eu não quero me afastar de você. – ele tornou a olhar pra ela – E se você me deixar tentar não ser um idiota com todas as minhas forças, não vou te deixar em paz um só minuto. Eu sei que isso não é nenhuma garantia, mas...

Ela piscou os olhos duas vezes, devagar, como que pra se certificar de que aquilo estava mesmo acontecendo. Muito embora na verdade não tenha duvidado uma só vez que era real. Era exatamente o tipo de coisa que Ichiro diria. Nunca proferindo as palavras exatas e romanticamente clichês como "eu quero estar com você mais do que tudo" ou "não há um dia em que eu não pense em você". Não. Apenas "eu quero tentar não ser um idiota e ficar com você." Sem promessas. Só a pura e simples verdade do que ele queria realmente naquele momento.

- Ichiro, eu nunca trabalhei com garantias na minha vida... – ela ignorou a fumaça do cigarro e deu um meio-passo pra frente – E jamais deixaria você ser nada além do egoísta e idiota que você já é.

- Heh! – ele riu secamente da brincadeira dela e prendeu o cigarro entre os lábios.

Ela tinha razão. De certa forma nenhum relacionamento tem garantias e se parecia disposta a encarar aquele desafio com ele, bem, era tudo que ele precisava ouvir. Na vida.

- Temos um acordo, Higurashi. - pontuou ele.

Ichiro tirou o cigarro da boca soprando mais fumaça no ar. Seus olhos se estreitaram e ele estendeu a mão para ela. Kagome nem ao menos hesitou e, devolvendo o olhar penetrante na mesma medida, apertou a mão dele.

Tudo aconteceu tão rápido quanto aconteceu da primeira vez em que Ichiro tentou algo parecido, na noite em que dormiu, bêbado, no sofá dela. De repente ele havia exercido um impulso que jogou-a diretamente nos braços dele. E no instante seguinte eles estavam abraçados, os rostos extremamente próximos, os narizes praticamente se encostando.

Só que Ichiro não estava bêbado. Ele tinha plena consciência do que estava fazendo. E naquele momento o que viria a seguir? Eles estavam no quarto dele. Será que Ichiro ousaria beijá-la ali mesmo enquanto suas mãos fortes a empurravam contra o corpo dele quase que desejando que ambos ocupassem o mesmo lugar no espaço?

Ela ofegou só de pensar nisso. E era realmente difícil afastar aqueles pensamentos quando Ichiro estava olhando fixamente pra ela, uma mão acariciando o lado esquerdo de seu rosto, descendo pelo seu ombro, passando direto pelo cotovelo e se alojando bem ali, na sua cintura.

Ela se deu conta de que já havia fechado os olhos.

Ichiro umedeceu os lábios e sorriu.

- E então...? O que você pretende fazer... Com aqueles monstros saindo do seu poço, hem?

Kagome olhou-o surpresa.

Ela deveria saber.

Mas nem ao menos conseguiu ficar com raiva. Apenas riu. De início baixinho, discretamente e depois mais alto e mais alto. E quando ela ouviu as risadas de Ichiro começarem a acompanhar as dela teve um acesso de risos. Ali, nos braços dele; no quarto dele. Os dois rindo juntos como se nenhum problema realmente existisse.

E durante os instantes em que eles passaram rindo, de fato, não existia nenhum problema no mundo.
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Faziam semanas, ou arriscaria dizer meses desde que ele não acordava de tão bom humor. Nem ao menos colocou o despertador na soneca, acordou ao primeiro toque, disposto como nunca.

"Até derrotaria alguns youkais se eles ousassem aparecer, quem sabe."

No dia anterior ele tinha tido uma das memórias mais lindas que se lembrava nos últimos tempos: Kagome havia passado ao menos cinco minutos rindo sem parar e o som das gargalhadas dela ainda estava preso em sua mente. Talvez fosse justamente o que lhe dava disposição para acordar tão cedo.

Ela havia saído meia hora depois, claro, com o pretexto de que tinha coisas a fazer de forma que não sobrou muito tempo para que Ichiro pudesse perguntar tudo o que queria sobre a Era Feudal, a joia de quatro almas e o que eles fariam para deter aqueles monstros que insistiam em pegar pessoas desprevenidas e tentar matá-las.

Por algum motivo.

Tinha também o babaca do ex-namorado dela. Sim, Inuyasha. Mas – e esse foi um pensamento que até mesmo ele achou maldoso demais – o cara já tinha saído de cena. Uma vez decidido que Kagome era uma mulher adulta capaz de lidar com as consequências de ter um cara como Ichiro no pé dela, bem... Ele iria tentar conseguir o que queria. E desde o momento em que aquela garota o desafiou pela primeira vez ele vinha sonhando com o dia em que finalmente ela seria só dele.

Nem que fosse só por uma noite e que no dia seguinte ela percebesse que não queria de forma alguma continuar com um idiota como ele – o que provavelmente aconteceria, ele era forçado a admitir.

Ah, a dor. Ela viria, com certeza. Se Kagome não fosse tão inteligente quanto ele tinha certeza que ela era, não haveria nenhum problema... Mas era uma garota esperta. O que o fazia pensar que talvez ele conseguisse um único beijo dela, já seria o suficiente. Nem por um instante pensava que ela teria reais intenções de ficar com ele mais de uma vez. Ok, talvez mais de uma... Duas ou três, sendo bastante otimista.

Mas não iria durar muito. E quando ela quisesse ter "a conversa" ele seria maduro como nunca foi e cortaria o papo pela raiz. "Vá" ele diria. "Eu sabia desde o princípio que você iria embora." Kagome era o tipo de garota que se casaria com um tipinho como Éric, aquele francesinho boiola. E os dois teriam três filhos e seriam uma porra de família muito feliz.

Mas enquanto aquele dia não chegasse, ele iria aproveitar cada oportunidade de estar por perto. E quando fosse o momento de tê-la – se é que haveria um momento – Ichiro iria agarrar-se a ele com todas as forças. Precisava se agarrar. Precisava dela.

Não tinha o menor medo de se decepcionar. Ela era mais importante do que todos os seus traumas passados. Pela primeira vez na vida ele estava pulando no vazio da incerteza. Sem saber se algum dia iria parar de cair.
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Os dias seguintes amanheceram leves como há muito tempo não acontecia para Kagome. Ao contrário da maioria das pessoas, era o tipo de garota que se incomodava até com a menor das discussões não resolvidas com pessoas por quem ela não dava a mínima. Claro que um atrito com Ichiro, por exemplo, seria motivo mais que suficiente para deixá-la constantemente inquieta.

Desde que eles haviam se conhecido eram curtos os intervalos de tempo que passavam sem brigar ou discutir. Aparentemente estavam rumo a um novo recorde: uma semana inteira comportando-se como pessoas civilizadas. Kagome estava realmente orgulhosa de si mesma. E dele também, muito embora a iniciativa de consertar tudo tenha partido dela.

Agora sim poderia pensar em ter alguma coisa com aquele cara birrento e irritante. Agora sabia tudo o que havia para saber sobre ele e ele também. Kagome esqueceu-se instantaneamente da aula que estava assistindo e parou pra pensar na loucura que era ter contado tudo à Ichiro. Como as coisas poderiam ter acabado mal, ela pensava. Até o presente momento ela ainda divagava sobre como teria tido a estranha sorte de ter falado justamente para alguém que estava reagindo incrivelmente bem a tudo.

Depois do choque inicial – o que ela não considerava nada mais do que o normal – Ichiro vinha lidando muito bem com a situação. Kagome suspeitava que se ela não tivesse sido uma idiota ao magoá-lo, Ichiro provavelmente teria superado tudo naquele mesmo dia, talvez minutos depois dela ter revelado tudo. No fim das contas, julgou melhor. Ele deveria mesmo ter precisado de um tempo para refletir e, provavelmente, fazer mais uma de suas intermináveis pesquisas históricas sobre Era Feudal. Pronto. Simples até demais.

Eles haviam, sem querer, estabalecido uma rotina. Se encontravam ao menos uma vez por dia – geralmente aos almoços e antes do jantar – Ichiro chegava no meio de sua rodinha de amigos ou de quem quer que estivesse na companhia de Kagome. Ele já não ligava mais para os olhares desconfiados que recebia de Éric, Kayri, Johnny e Hideki muito embora Kayri viesse cedendo bastante. Kagome acreditava piamente que, no fim das contas, ele e Johnny tinham muitos aspectos em comum com Ichiro o que os poderia tornar bons amigos. Logicamente não estava tentando forçar nada, mas torcia secretamente para estar certa.

No entanto havia uma única coisa incomodando-a. Ichiro se encontrava em uma luta constante com ela para convencê-la a deixá-lo atravessar o poço quando ela pretendesse tentar resolver todo o problema dos youkais fujões. Kagome torcera o nariz, obviamente. Não achava que seria uma boa ideia, primeiramente por que não sabia quem poderia encontrar por lá. Será que Sango e Miroku estariam vivendo por perto? E se eles se encontrassem o que diriam para Ichiro? Eles iriam notar a semelhança com Inuyasha, provavelmente. Shippou seria o primeiro a apontar freneticamente, dando pulinhos enquanto atestava as grandes chances de Ichiro ser a reencarnação de Inuyasha.

Essa era uma preocupação que Kagome não podia se dar o luxo de ter. Se Ichiro ainda não havia surtado com tudo o que sabia, poderia surtar ao descobrir que era um forte candidato a ser a reencarnação de Inuyasha.

Ela estava indo ao poço constantemente, uma vez ao dia às vezes até mais. Queria atravessá-lo o quanto antes, mas haviam pendências na faculdade que não podiam ser deixadas para depois e, de qualquer forma, Souta dissera que a partir do momento em que ela começara a ir regularmente para purificar o poço, os youkais pararam de aparecer.

Souta era uma ajuda e tanto. Ele havia bolado um esquema que consistia em passar grande parte do dia observando o entra-e-sai dos insetos menores perto do poço. Matava os youkais com seu inseparável estilingue e aquilo era o suficiente, mas Kagome sabia que não podia continuar. Por mais que só pequenos youkais fossem capazes daquilo no momento, nada sabia sobre o futuro. Precisava estar preparada para o caso de uma catástrofe acontecer.

Iria à Era Feudal no sábado e cometera o erro imperdoável de ter contado à Ichiro quando ele a convidou para um ensaio da banda no fim de semana.

- Não vou poder – dissera ela, sem especificar exatamente o que a impedia.

Ela se lembrava do som da risadinha sarcástica que ele soltara e de como aquilo a irritou e divertiu ao mesmo tempo.

- Vai sair com seu amiguinho francês? – provocara ele.

- Claro que não. – ele havia conseguido irritá-la, como sempre – Quando você vai parar com essa história?

- Quando ele parar de agir como se fosse seu dono. – Kagome virara a cabeça pro lado, evitando a conversa, mas ele continuara – Sempre olha pra mim com aquele jeitinho afetado quando chego perto de você... De qualquer forma, o que tem de tão importante pra fazer no sábado?

- Vou resolver o problema do poço. – Kagome respondera feliz por estarem mudando de assunto, mas assim que falou percebeu que tinha sido uma péssima ideia – E antes que você diga qualquer coisa... Não, você não vai comigo!

Ichiro nem ligara para o fato dela ter antecipado sua reação, coisa que geralmente o irritava. Simplesmente dera uma risada irônica.

- E quem vai tomar conta de você por lá? – perguntou ele, duvidando em todos os sentidos da capacidade dela – Desastrada do jeito que é vai conseguir quebrar essa joia de novo... Ou pior.

Ela sabia que ele dissera aquilo na brincadeira, apenas para tentar fazer com que ela escorregasse em algum momento e ele pudesse encontrar uma brecha no discurso dela que validasse a ideia dele. Revirou os olhos e permaneceu calada ao que ele repondeu com um suspiro impaciente.

Naquela tarde de sexta-feira, no entanto, Kagome começara a sentir um pouco de insegurança. Faziam três anos que ela não pegava num arco e flecha decentemente e, muito embora já tivesse começado a treinar no Templo após os últimos acontecimentos, não era o suficiente para voltar à velha forma. Mesmo assim nem passava pela cabeça dela adiar a viagem. Não era o tipo de coisa que se adiava. Se aqueles youkais se espalhassem pela cidade de Tokio seria o fim.

Suspirou pesadamente e revirou os olhos perante seu próximo pensamento: ela sabia o que a deixaria mais segura para enfrentar o que viria. Ou melhor, quem. A única pessoa além de sua família que sabia do grande segredo. O único que tinha condições físicas de enfrentar monstros selvagens com ela. Coincidentemente a única pessoa da qual ela desejava estar perto o tempo todo.

Kagome se deu conta de que estava sorrindo. Abanou a cabeça, tentando se concentrar. Muito bem, qual era o assunto que o professor estava discutindo mesmo? Sim, os pilares são estruturas verticais que...

"Ichiro poderia ir junto."

Kagome se reprimiu imediatamente. Parecia que a sua consciência e a sua vontade estavam brigando dentro de sua cabeça. Ao mesmo tempo em que pensava em argumentos que a convenciam que não era uma boa ideia levar companhia, automaticamente surgiam contra-argumentos capazes de fazê-la mudar de opinião em segundos. Era torturante.

Finalmente ouviu o barulho das cadeiras se movendo. A última aula do dia havia terminado. Ela se levantou e começou a juntar suas coisas jogando-as na bolsa desordenadamente ao mesmo tempo em que captava a conversa de sua rodinha de amigos.

- Essa matéria fica cada vez pior. – comentou Johnny jogando a mochila nas costas – Mal posso esperar pra mergulhar na piscina, francamente.

- Acho que a gente podia assistir àquele filme novo no cinema – chamou Hideki abraçando Zhang por trás – que acham? Kayri? Samantha?

Johnny teve uma reação exagerada antes mesmo que os amigos tivessem tempo de responder.

- Kagome, você ouviu isso? – disse ele fingindo que estava prestes a vomitar – Eles já estão fazendo encontros duplos, argh! Vocês me dão náuseas.

- A culpa não é nossa se você está encalhado, baby. – cortou Sam fazendo Kayri dar uma risadinha.

- Cala boca. – falou ele – E eu odeio esse apelido.

- Ai, Johnny como você é azedo! – disse Zhang colocando as mãos na cintura lembrando, comicamente, uma irmã mais velha – Chame um de seus rolos e vamos com a gente.

- Não estou interessado. – ele fez bico e emburrou a cara – Eu e Kagome vamos arrumar alguma coisa interessante pra fazer.

- Ah, Johnny, sinto muito. – dessa vez Kagome falou, tentando não deixar o amigo magoado – Tenho muito pra fazer esse fim de semana.

Zhang trocou olhares com Sam e deu uma risada discreta.

- O que foi isso? – perguntou Kagome sem reunir nem um pouco de paciência para as piadas internas das duas.

- Haha, você sabe. – disse Sam – A gente sabe que você tem mesmo muito o que fazer com aquele ali.

Ela apontou para algum canto no fim da sala e Kagome nem precisou virar-se para se dar conta de quem ela estava falando. Automaticamente a impaciência desapareceu e ela não conseguiu disfarçar o sorriso pra ninguém. Ichiro chegou discretamente – o que era um feito e tanto para ele – e acenou com a cabeça para os garotos.

Hideki foi o mais efusivo – Kagome se divertia imaginando como ele deveria ter medo do irmão mais velho de Zhang. A forma como ele a soltou um pouco quando ele chegou foi engraçada. Ele sorriu para Ichiro. Johnny estava de mau humor, mas mesmo assim correspondeu ao aceno com a cabeça. Kayri soltou um "e aí, cara?" e Éric...

Onde estava Éric?

- E aí? – falou Ichiro apertando a mão de Kayri – Estão desfalcados hoje, não?

- Éric saiu de repente mesmo. – falou Sam enquanto passava as mãos pelos cabelos castanhos – Nem ao menos falou com a gente.

- Bom! – Ichiro bateu as mãos, sem conseguir esconder que estava satisfeito com a ausência de Éric – Zhang, vamos?

- Ah, não, eu acho que vou sair com o Hideki-kun agora e...

Zhang nem ao menos teve chances de terminar a frase. Em poucos segundos Ichiro fez contato visual com Hideki, um olhar que dizia algo como "você é um homem morto". Hideki automaticamente se afastou um pouco da namorada e interrompeu-a.

- P-preciso estudar bast-tante hoje, Zhang-chan, desculpe.

Zhang revirou os olhos e cruzou os braços, chateada com ambos.

- Ah, que bom garoto. – comentou Ichiro sarcástico – Sendo assim você vai pra casa mocinha.

Zhang ia abrir a boca para protestar quando Kagome puxou Ichiro pelo braço.

- Ei! – disse ele.

- Já chega, Masagami. – ela deu um sorriso cúmplice para Zhang – Aproveitem a tarde de vocês! Eu cuido desse aqui.

- Com licença... – interrompeu Hideki num fiapo de voz – E-e-eu realmente preciso estudar.

- Pffff, me poupe, Hideki! – respondeu Kagome – Volte a abraçar sua namorada que eu mantenho seu cunhado assassino em segurança, não se preocupe.

- Eeeeei! Você está tirando minha autoridade, sua idiota! – retrucou Ichiro soando revoltado, mas sem tirar o braço do controle de Kagome.

- Que autoridade? – perguntou Zhang, irônica enquanto Sam e Kayri faziam estardalhaço atrás deles – E não se esqueça que eu estou te fazendo um favor também você deveria me agradecer!

Ela olhou para Kagome e Ichiro sugestivamente enquanto ela corava violentamente e ele permanecia quieto, as sobrancelhas tensionadas e um meio sorriso quase se formando, sem querer admitir que, de fato, Zhang estava certa. Sam e Kayri já não estavam se aguentando de tanto rir.

- Que seja. – cedeu Ichiro soltando um olhar assassino para Hideki. Depois se virou para Kagome passando o braço pelos ombros dela – Só me dê notícias, fedelha.

Zhang mostrou a língua e se virou para abraçar Hideki que permanecia dividido entre demonstrar felicidade ou não sob o risco de um Ichiro violento arrancar a cabeça dele. Kagome acenou para todos e saiu da sala com Ichiro passando pelos corredores lotados.

Na Toudai já começavam a comentar. Ichiro era bastante popular por ali. De alguma forma, mesmo tendo chegado na mesma época que Kagome ele havia conseguido fazer muito mais amizades do que ela. Ele conseguia ser quase tão cativante quanto Samantha, considerada por muitos a queridinha da universidade. Era impossível que ele passasse por aquele corredor sem acenar para inúmeros grupos de pessoas.

Samantha veio dizer à Kagome no dia anterior que uma estudante de engenharia civil havia perguntado se Ichiro e ela tinham alguma coisa. Samantha apenas riu e desconversou por que não sabia responder àquela pergunta precisamente. Na verdade ninguém sabia, nem mesmo eles dois.

- Por que você tem que conhecer tanta gente, hem? – perguntou Kagome quando o quinto grupinho de garotas seguido passou por eles, rindo.

- Não conheço tanta gente assim por aqui. – respondeu ele totalmente alheio ao efeito que causara em duas calouras que já haviam ficado pra trás.

- Você conhece meio mundo, nem vem... – ela ouviu a risada sonora de Ichiro. Ele sabia que era famoso, mas não iria admitir. Ela gostou assim.

- E então? – perguntou ele, apertando-a ainda mais perto – O que quer fazer hoje a noite?

Ela estremeceu um pouco ao sentir as mãos fortes dele segurando-a ainda mais forte. Deu um suspiro discreto e tentou pensar em algo.

- Não faço ideia... O que você acha de...

E de repente ela sentiu Ichiro inclinando-se e aproximando-se dela. Eles continuavam caminhando, mas agora o rosto dele se inclinara, procurando o pescoço dela. O que diabos ele estava pretendendo?

- Q-q-q... – gaguejou ela.

- O cheiro do seu cabelo. – explicou ele, encostando o nariz atrás da orelha de Kagome, fazendo seus pelos da nuca arrepiar-se – O que você usa, hem? É muito bom...

Ichiro não era bobo, estava mesmo tentando de todas as formas seduzi-la. Eram constantes as tentativas que ele fazia de beijá-la, mas sempre parava quando Kagome estava quase fechando os olhos. Era um jogo divertido, mas ela ansiava pelo momento em que finalmente acabaria.

Ou quando ela perderia a paciência e tascaria um beijo na boca dele de surpresa.

- Quando você vai parar com isso, hem? – perguntou ela fingindo irritação.

- Isso o quê? – respondeu ele, se fazendo de inocente.

Kagome bufou de raiva. Odiava quando ele fingia que não sabia do que ela estava falando. Ichiro riu da reação dela e era como se eles tivessem uma conversa muda: ela revirou os olhos; ele riu novamente e a empurrou de leve com o ombro; ela virou-se fingindo estar furiosa, mas quase sem conseguir segurar o riso; e então ele assumiu a vitória, erguendo o queixo enquanto a olhava de esguelha.

Eles não chegavam a segurar as mãos um do outro, mas Ichiro sempre gostava de apoiar o braço nos ombros dela. Era a maneira despojada de dizer aos outros que ele não estava meramente a acompanhando pelos corredores da Toudai; uma forma de dizer que eles estavam "juntos" muito embora não oficialmente. Naturalmente quando alcançaram o ponto em que Kagome havia deixado seu carro nos estacionamentos ela se desvencilhou e acenou para ele, despedindo-se.

Mas antes que pudesse alcançar o carro, sentiu sua mão ficar presa na dele.

- Ei, espera.

Kagome virou-se procurando os olhos dele e o encontrou com uma expressão totalmente diferente de todas que ele havia mostrado até o momento. De alguma forma ela sabia que o que quer que ele estivesse pensando em dizer iria soar novo aos ouvidos dela.

E estava certa.

- Eu sei que não posso forçar você a nada, sabe... – começou ele devagar, se aproximando um pouco – Só que pelo que eu conheço de você... Bom, ir enfrentar esses monstros sozinha não vai ser fácil... Eu sei que você já foi lá muitas vezes antes, eu sei que você pode mas... é que você é desastrada, Kagome.

- Ichiro... – ela revirou os olhos impaciente – Eu lido com isso melhor do que você.

- Tá, tá! Você não me deixou terminar! – ele abanou as mãos e respirou fundo recuperando a paciência – Só, conte comigo, ok?

- Contar com você...?

- É... - ele olhava pra baixo um pouco envergonhado - Só... Me chame. Se quiser...

Ele deixou a palavra morrer em sua voz rouca e colocou as mãos nos bolsos. Observou Kagome sorrir sem dizer nada e entrar no carro. Pensou em detê-la mais uma vez e enfatizar o quanto se preocupava com ela, mas achou melhor acenar discretamente quando a viu dobrar à direita mais à frente e sumir pelas ruas movimentadas.

"Garota teimosa."
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Deu uma breve olhada nas coisas que tinha separado em cima de sua cama. Aquilo era tudo mesmo? Será que não tinha se esquecido de nada? Então se lembrou do arco e flecha que estava no templo, sim era daquilo que estava dando falta...

Abriu a mochila amarela que a anos não usava e começou a colocar todos os apetrechos dentro. Um frio na barriga começou a tomar conta dela e teve de parar um segundo ou dois para respirar enquanto olhava fixamente para o teto do apartamento. Parecia procurar qualquer coisa – qualquer coisa mesmo que pudesse fazê-la mudar de ideia. Ridículo estar se acovardando logo naquele momento, logo quando todos precisavam dela.

Abanou a cabeça, envergonhada e apressou-se. Entardecia rapidamente, ela não queria partir antes que escurecesse. Colocou uma muda de roupa extra só por precaução e vestiu um casaco cinza leve. As pernas estavam protegidas pelas meias de lã pretas que subiam até a metade de sua coxa quase alcançando a saia quadriculada em tons de vinho. Não era a roupa mais adequada para enfrentar youkais, mas Kagome tinha certeza que iria encontrar assistência em algum vilarejo próximo.

Pensou imediatamente em Kaede, Miroku e Sango recebendo-a de braços abertos, nas saudades que sentia de cada um deles. Mal conseguia acreditar no que estava se aventurando depois de passados três anos. Seguiu repleta de bons pensamentos durante todo o trajeto que ligava seu apartamento minúsculo ao Templo Higurashi. Segurava a mochila com firmeza e de vez em quando colocava a mão sob a joia que brincava entre as suas clavículas saltadas.

Subiu as escadarias apressadamente, o sol já estava quase se pondo entre as nuvens. Ela avistou Souta e o avô no pátio conversando animadamente sobre alguma coisa. Assim que eles a avistaram se puseram de pé: Souta foi chamar a mãe deles e seu avô foi buscar o arco e as flechas já separados e polidos especialmente para ela.

- Kagome... – sorriu-lhe a mãe quando alcançou a porta – tem certeza que não se esqueceu de nada, filha?

- Sim, chequei várias vezes mãe. – ela respondeu enquanto a abraçava – Souta?

O irmão mais novo aproximou-se e acenou de leve com a cabeça.

- Aqui, Kagome! – interrompeu seu avô – coloque isso. Preenchi de amuletos sagrados, vão te proteger e tornam suas flechas ainda mais poderosas.

Kagome se limitou a sorrir fingindo que acreditava nas magias do avô. Ele nunca mudaria mesmo... Sentiu que Souta segurava o riso ao seu lado e o cutucou com o braço. Ele engoliu a risada e ela agradeceu ao avô.

Depois de mais abraços andou na direção do poço e antes que se desse conta estava de frente para o mesmo. Souta estava ao seu lado.

- Eu não conseguiria fazer isso sem você... – disse ela segurando a mão dele com força – Souta.

- Vai dar tudo certo, Kagome! – respondeu ele, sem dar espaço para que a irmã desanimasse – Você sabe o quanto é habilidosa com isso aqui – e apontou para o arco em suas costas – e eu acredito em você!

Kagome sorriu e beijou o irmão na testa. Subiu uma perna, depois a outra até que ficou sentada olhando para o fundo do poço, imóvel.

Tinha congelado de medo.

- Kagome... – disse Souta enquanto olhava nervosamente pros lados por algum motivo – Kagome?

Ela respirou profundamente três vezes. Souta olhou para trás e apoiou uma mão nas costas da irmã.

- Kagome?

Ela subitamente recobrou a consciência e olhou para Souta. Acenou com a cabeça, olhou fixamente para o fundo do poço, jogou um impulso para frente e arremessou seu corpo na direção do nada.

Antes de ser engolida pela luz violeta ouviu duas vozes chamarem o seu nome, mas quando virou a cabeça para cima não enxergava nada além do céu azul sem nuvens de uma era 500 anos atrás.
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Tão logo a viu desaparecer em meio ao clarão luminoso não se conteve e levantou-se sem se importar de revelar que estivera ali o tempo todo. Foi inevitável chamar o nome dela, em desespero, e ele e Souta formaram um coro em uníssono que cantou as três sílabas do nome dela.

Apoiou as mãos na borda do poço e contemplou o fundo vazio e escuro do mesmo.

- Ela sumiu... – disse, mais para si mesmo do que para Souta.

- É. – confirmou ele – Eu nunca me acostumei com isso. Sempre penso que ela nunca vai voltar.

- Ei! – Ichiro comoveu-se com as palavras do garotinho e não achou justo deixá-lo sozinho com aqueles pensamentos desesperançosos – Ela já fez isso muitas outras vezes, garoto, ela sempre voltou, não é verdade?

Ele meneou a cabeça vagamente e apoiou o queixo nas mãos, suspirando, sem falar mais nada.

- Se ela não voltar... – recomeçou Ichiro – Eu a trarei de volta. Como combinamos.

Souta olhou bem para Ichiro. De fato ele lembrava muito Inuyasha e, de alguma forma, quando ele dizia algo, aquilo pesava como uma verdade irrefutável no ar. Sentia uma confiança inexplicável nele. Por isso quando ele chegara horas antes desesperado por informações de Kagome decidiu colocá-lo a par do que estava se passando. Era muito arriscado, mas ao menos ele agora sabia que Kagome havia lhe revelado toda a verdade então não estava traindo a confiança dela. Ao menos não tanto assim.

Era verdade que ela não fazia ideia que Ichiro assistira a tudo, calado, em um canto escuro o suficiente para que não pudesse ser visto. Só esperava que ela não tivesse reconhecido a voz dele quando chamara seu nome. Não sabia quanto tempo levaria para Kagome perdoá-lo se descobrisse aquilo.

Mas alguma coisa dentro de Souta dizia que na verdade Kagome queria que Ichiro estivesse ali. Ela queria que ele se preocupasse, queria que ele prometesse ir buscá-la caso algo desse errado. E talvez por isso o peso em sua consciência fosse mínimo. Porque sabia que se havia alguém que podia trazer de volta sua irmã e a felicidade dela esse alguém era Ichiro.

E Souta foi o primeiro a perceber que eles se amavam.

FIM de capítulo, gente! :O Aposto que nenhum de vocês colocava mais fé em mim né? Triste demais passar MESES a fio sem postar, eu sei eu sei. Não há muita justificativa plausível pro meu atraso, mas se serve de consolo esse capítulo estava 90% pronto desde o INÍCIO DESSE ANO. Eu sei, chocante, ne? .-. Passei por uns problemas pessoais esse ano, na verdade acho que a opinião geral é que 2012 foi uma bela duma bosta, né, gente? Então, pra mim não foi diferente. Ainda bem que já tá acabando!

O que me deu força pra não abandonar a fanfic foi exatamente as cobranças e o feedback de todos vocês e eu agradeço imensamente a quem nunca desistiu de mim e sempre acreditou que algum dia eu fosse atualizar.

Eu espero que vocês tenham gostado do capítulo! Não há previsão de quando eu vou postar o próximo, mas eu quero acreditar que não vai demorar muito até pq já já eu entro de férias e vou poder me ocupar mais com isso!

Bom, gente é isso, podem me mandar e-mail cobrando, perguntando e dando bronca é o que vocês já conhecem e no facebook ces me acham fácil também, essa semana uma leitora antiga me achou lá e um muito obrigada especial pra ela que me fez criar mais coragem pra atualizar isso aqui!

Beijos enormes! Bom fim de semana suas lindas e lindos! ;*

Gabi