Conto do Fundo do Mar

A menina vivia em uma ilha deserta, feita só de pedra e vazio. Nada crescia ali, e ela não era exceção, porque ninguém em sã consciência diria que passar dia após dia sentindo o sol queimar a pele e enterrando os pés na areia era crescer.

O homem vivia em um barco, sempre navegando de um lado para o outro, através de mares cinzentos e desconhecidos que eram tão vazios quanto uma ilha deserta. Ele tinha pernas compridas e pés grandes para andar ao redor do mundo, mas correntes de aço prendiam-no ao barco, e tudo o que ele podia fazer, dia após dia, era sentir o sol queimar a pele e brincar de arranhar a madeira do barco com as unhas dos pés.

Um dia, o suave ir e vir das ondas do mar foi substituído por um solavanco que fez as lascas de madeira criadas por seus pés rolar para frente. Depois, foi só o silêncio e a estática da terra firme, de um jeito que ele nunca tinha sentido antes.

O homem tirou os olhos do sol, e foi ofuscado por branco e dourado. Ele nunca tinha visto aquilo, em todas as suas viagens, e perguntou o que era. Ela respondeu do único jeito que sabia, pousando a mão sobre o peito nu e dizendo, como quem guarda as chaves do universo:

- Hiyori.

Ela, no entanto, não devolveu a pergunta, o que foi bom. Ele não saberia mais responder, não a partir daquele instante. Ele era – tinha sido – transição e movimento, eterno e inconstante, e tudo o que ele sabia agora era uma palavra ecoando em seus ouvidos, como nunca antes: Hiyori, Hiyori, Hiyori.

Todo aquele tempo, ele tinha sido uma orquestra tocando sem ninguém para ouvir.

E como não era mais possível viajar sozinho, não quando ele nem mesmo sabia quem era, o convite veio simples e casual. Ela fincou os pés na areia, no entanto, e negou furiosamente. O movimento inconstante das águas do mar a assustava, e ela não queria partir sem saber aonde ia, sem saber com o que ia. Tudo o que ela conhecia era a areia das pedras desgastadas pelo vento e o sol queimando sua pele. Ela não queria conhecer mais, não desconfiando que tudo o que existia além do mar podia ser muito pior.

Ela correu para dentro da ilha, até o topo das escarpas de pedra branca, e ele, acorrentado ao seu eterno movimento, foi impedido de seguir. Sem escolha, ele fincou o barco na terra firme e sentou-se sobre a madeira descascada, esperando.

Às vezes, ela aparecia. Nesses dias, ele afastava os olhos do sol e mergulhava em branco e dourado. Ele ouvia com ternura suas ideiazinhas firmes e simples de quem nunca tinha visto o mundo, e se enrodilhava devagar na insuspeitada armadilha de seus cabelos cor de areia. Ela falava e falava, para encobrir o som das ondas e fingir que não via a cor dos seus olhos de mar, e muito raramente ouvia com relutante fascinação as histórias dele, contos fantásticos de outros mundos que eram todos, na verdade, histórias de amor sobre eles disfarçadas.

Geralmente, no entanto, ela permanecia escondida, distante, perfeitamente visível no topo dos rochedos de sua ilha deserta, mas completamente inalcançável para alguém acorrentado a ondas inconstantes e madeira gasta. Quando isso acontecia, ele fechava os olhos e deixava a cabeça cair para trás, sentindo o sol aquecer seu rosto e as gaivotas ao longe gritando, chamando, lembrando: Hiyori, Hiyori, Hiyori. Ele estendia as mãos para o sol até elas queimarem, e depois as pousava sobre o peito, as pernas, o rosto, mas elas eram grandes demais, erradas demais. Elas não tinham a aspereza da areia e a firmeza da terra firme, e ele suspirava, imitando as gaivotas e gritando, chamando, lembrando: Hiyori, Hiyori, Hiyori. O vento levava as palavras até o alto, e ela achava que poderia até gritar, chamar, lembrar também, se soubesse quem ele era. Mas ele estava sempre oscilando, sempre em movimento, sempre transição. Ele não sabia quem era, como ela podia saber? Então ela fincava os pés na rocha, e pensava que o sol nunca tinha queimado tanto.

Depois ela voltava para ele, às vezes.

Um dia, no longo percurso entre o topo dos rochedos e o barco onde ele esperava, branco e dourado e azul foram cobertos por vermelho, e ela caiu. A água do mar cobriu-se com suas cores, o sussurro das ondas foi coberto pelo grito de seu nome, e o barco agitou-se de um lado para o outro, para e frente e para trás, mas ele estava acorrentado e ela estava dançando rumo ao fundo. O que ele não sabia, no entanto, era que o vento cheio de areia da terra firme e os sussurros das gaivotas tinham desgastado, pouco a pouco, devagar e com paciência, todo o aço de suas correntes, e que novos laços tinham-se amarrado aos seus braços e pernas, ao seu peito e ao seu espírito, laços feitos de cabelo dourado e olhos cor de terra firme, laços que puxavam e arrastavam, devagar e com cuidado, sem força, sem insistência, porque ele não resistiu nem por um segundo à sua suave coerção e deixou-se levar, com um suspiro, que morreu nas águas do mar: Hiyori, Hiyori, Hiyori.

O mar respondeu, retraindo-se e expirando, num sussurro de noiva deflorada.

- Shinji.

Juntos, eles afundaram.


N.A:

Então, o negócio é o seguinte.

Eu tenho dezenas – e dezenas MESMO - de one shots, drabbles e pedaços de histórias muito compridas que provavelmente nunca vou terminar sobre o Shinji e a Hiyori, e sabe de uma coisa? Esse bando de arquivo tava fazendo uma bagunça danada nas minhas pastas. Então decidi juntar tudo o que dava numa pasta só, formar uma coletânea, e ir publicando-a aos pouquinhos. E é isso que vocês vão ver aqui – um bando historinhas sem qualquer relação entre si, algumas longas e outras curtas, algumas com começo, meio e fim muito bem marcados, outras que parecem pedaços de coisa nenhuma, algumas passadas no universo da Bleach que conhecemos tão bem e outras passadas num lugar de conto de fadas, num mundo pós-apocalíptico ou em uma escola que poderia ser a sua.

Quanto a essa história em particular, eu a escrevi depois de ver um filme magnífico chamado "O Arco". Vejam se puderem, é realmente maravilhoso, de uma sutileza e delicadeza inigualável. Espero ter alcançado um pouco dessa delicadeza com esse pequena conto cheio de metáforas – e não, não vou explicá-las, vocês são livres para interpretarem como desejarem.

E por fim, quanto ao título dessa coletânea, não, ele não é meu. É vergonhosamente roubado de um dos livros que eu mais amo no mundo inteiro. Ele se chama, coincidentemente, Do Amor e Outros Demônios, e foi escrito pelo magistral Gabriel García Márquez. É uma história de amor, loucura e demônios, e acredito que seja mais do que apropriada para simbolizar o nosso casal favorito.

Boa leitura, e saudações.

Lady Macbeth