Your needs come alive,

夜明け前

(Into the shadows, go)

o

Estava sentado no sofá da sala ao lado de seu pai, às dez e meia da noite daquele mesmo dia, e a televisão falava sozinha. Estava passando um filme antigo da Republic, em preto-e-branco, daqueles que costumam dar no Corujão. Parecia que era de crime, com Ray Milland no papel de um caixeiro-viajante que dá carona para Nick Adams, representando um jovem durão convicto que havia acabado e fugir da prisão em Gabbs. Ou seria Deeth? Sasuke não estava prestando atenção.

Havia escurecido mais depressa do que o normal, e a noite escura encostava nos vidros da casa ligeiramente embaçados. Kushina cerzia uma de suas meias na cozinha, Naruto esperava impacientemente o cup noodles esquentar no microondas, e o pai lia o jornal ao seu lado. Remexeu-se incomodado em seu lugar. Nas últimas horas Sasuke estava achando difícil decidir se queria ficar perto de sua família ou não; quando estava com eles, queria ficar sozinho e, quando se encontrava só, queria a companhia deles. Meditou se não seria hora de se recolher em sua cama.

Bem, e como fica a Ino?

O pensamento dava vontade de rir. Rir e bater nos joelhos. Ir na casa da alienada à meia noite, era realmente hilário, há-há-há, ho-ho-ho, mas nenhum sorriso lhe veio aos lábios. A verdade era que estava tentado a ir. Ino parecia saber alguma coisa a respeito das pessoas daquela noite de tanto tempo atrás, os... como ela os chamara? Alguma coisa a ver com aquele filme. Nosferatu, sim, era isso. Os mortos-vivos amaldiçoados, os habitantes além-mundo da Zona Crepuscular ou o raio que os parta. Iria, escutaria o que ela tinha para dizer e então jogaria terra sobre o assunto. Já estava mais do que na hora de fazer isso. E era o certo a fazer, mesmo que uma parte dele não estive plenamente convencida disso.

Ele pensava com desenvoltura, embora suas mãos estivessem contraídas sobre o colo. Sua mente estava clara, não tendo sido afetada por aquela conversa de vampiros e mortos-vivos. Era de sua espinha dorsal, de uma rede muito mais primitiva de nervos e gânglios, que o terror emanava em ondas. Porque não obstante, a mente, aquele demônio perverso, tudo pode conceber.

Conteve o impulso de dar uma olhada rápida no relógio.

- Aaaanda, microondas!

- Não grite, Naruto – murmurou o Sr. Uzumaki, das profundezas do jornal que estava lendo.

Seu coração latejava no pescoço. Teve um momento em que estava tão nervoso que rejeitou a ideia de ir. Ela se foi... mas era difícil livrar-se dela. Como empurrar um piano. E ele ainda podia ver seus contornos nas sombras.

Encontrou um deles, não encontrou? Não negue.

Você pode porque você quer.

Levantou a mão e esfregou a testa distraidamente.

- Algo errado? – perguntou o pai.

- Nada.

Sua mãe veio da cozinha procurando buracos remanescentes em sua meia que seus olhos não detectaram.

- Não vão para cama muito tarde, hein? – ela disse. – Amanhã é outro dia.

- Sim, mamãe – concordou Minato, docilmente. Fechou o jornal e se levantou.

- Você também não vá dormir muito tarde, Sasuke.

- A-hã. – fez ele.

Beijou seu pai – não beijo leve costumeiro, mas um beijo de verdade que, de repente, o fez perceber que ele deveria estar em outro lugar. O apito do microondas soou.

- Deus é pai, não é padrasto!

- Naruto, para cama! – Kushina ordenou.

Sasuke pegou o controle remoto, começando a trocar de canais sem realmente estar procurando algo para ver. Ela subiu as escadas e seu pai provavelmente também, apesar de não tê-lo visto. Naruto também estava indo para seu quarto, chupando o marrão instantâneo do mesmo modo ruidoso que costumava fazer quando criança.

- Como está a Hinata? – Sasuke perguntou.

Naruto estacou na metade da escada.

- Sei não... por quê?

- Não vai ligar para saber? Ela ia gostar se você ligasse.

- Por que iria? Aliás, meu negócio não é com ela. Sou louco pela Sakura, você sabe disso.

Sasuke não queria discutir, mas sua boca não pôde deixar de comentar:

- Você realmente não conseguiria achar o próprio traseiro com as duas mãos e uma lanterna.

- Como é que é? – Naruto retrucou, corando de raiva. Desceu os degraus e veio marchando até Sasuke, agarrando-o pela camisa. A expressão no rosto dele não se alterou.

Por um momento, os dois ficaram ali, Sasuke levemente inclinado para frente, Naruto o puxando para si com uma mão e segurando o copo de macarrão na outra, um silêncio pesado entre os dois. Por fim, foi Naruto quem o soltou, fazendo um muxoxo de descontentação.

Sasuke voltou a se recostar no sofá, arrependido de ter dito o que disse. Ouviu Naruto saltar os degraus da escada. Então uma voz provinda da cozinha disse:

- Não deixe essa coisa cair no chão, Naruto. – Era papai, prejudicando um pouco a retirada do filho.

- E daê? – Naruto virou-se, o rubor ainda presente em seu rosto. – Parem de mandar em mim!

E voltou a subir as escadas, desaparecendo nas trevas. Uma porta bateu.

Um momento de silêncio, quebrado apenas pelo ruído dos passos de Minato ao contornar o sofá. Ele desabou no sofá, deslocando um pouco o corpo de Sasuke. O garoto sentiu um calafriozinho esquisito subir-lhe pelas costas. Teve a ligeira sensação de o plano estar se decompondo por entre seus dedos.

- Pegamos muito pesado com ele, não?

- Sim.

- Às vezes, não dá para evitar. Não é culpa dele, não é culpa nossa. Simplesmente se tornou um hábito.

- Sim.

Minato virou-se para ele, seus cândidos olhos azuis cercados por rugas miúdas.

- Você não está com uma cara boa, Sasuke. No que está pensando?

- Eu... – Por um milésimo de segundo, sentiu que precisava desembuchar para alguém, qualquer um, vomitar aquela sensação de que dedos invisíveis remexiam brutalmente dentro dele, repuxando e torcendo suas tripas. Falar, falar, falar até que achar que poderia se acender um fósforo em sua língua de tão seca estaria sua boca. Mas o impulso passou abençoadamente rápido. – Acha que Hinata tem alguma chance com o Naruto?

- Hum? Não, não acho. A menina não tem iniciativa, e seu irmão não tem interesse algum nela. A água pode furar a pedra, mas somente após centenas de anos. Pessoas são mortais.

- É, sim. Suspeitei que fosse assim.

- Seja como for, não vá dormir muito tarde. Você tem cursinho amanhã.

- Pai?

Ele se virou.

- Você... Alguma vez, você já ficou... digamos que, obcecado, com alguma coisa?

Minato pensou durante um bom tempo, quase um minuto inteiro. Por fim, respondeu:

- Sim, sim, já fiquei obcecado. Já contei a vocês que minha vida nem sempre foi um mar de rosas, já não contei?

- Hum.

- Então. Queira muito mudar de vida, quando tinha sua idade. Não suportava mais colchões duros, o ventilador de teto quebrado e privada entupida. Ia para escola, estudava feito um louco, e depois ajudava meu pai no armazém. Achava que somente quando realizasse a grande aspiração de minha vida, que era me tornar um bom chefe de gabinete, poderia completar aquele vazio que sentia no âmago do estômago. Mas não foi bem assim que a coisa aconteceu. Quando me vi sentado naquela mesa cara, lustrosa, e não mais no balcão com tampa fórmica onde costumava vender réstias de cebola e cerveja para a rapaziada, senti como se grande parte dos meus objetivos tivesse sumido. Foi uma época exaustante e depressiva, mas quando me casei com sua mãe e tive vocês dois, finalmente percebi que sim, meus esforços valeram a pena, e eram mais do que suficiente para dá-la conforto, garantir as fraldas de vocês dois e ainda por cima custear os meus maus hábitos, que eram a cerveja e os cigarros.

Ele terminou de forma pouco conclusiva, seus pensamentos começando a embarcar no passado há muito tempo ido, mas ele voltou.

- De qualquer forma, por que quer saber?

Porque não consigo parar de pensar sobre como encontrei duas pessoas mortas – mortas, e ainda assim vivas – na noite do seu aniversário, já faz um tempinho, e também como o rosto de uma delas não desgruda do papel pega-moscas do meu subconsciente e permanece ali até agora. Mas claro, não foi isso que disse em voz alta.

- Na verdade, não sei, papai. Acho que estou meio obcecado, na verdade, mas não parece ter muita importância. Não agora, pelo menos.

- Ela é bonita?

Sasuke lhe dirigiu um olhar estranho.

- Por que acha que é algo a ver com garotas?

- Ora, bem – seu pai passou a mão pelo cabelo, e então se levantou –, você parece tão interessado no triângulo Naruto-Sakura-Hinata, pensei que fosse algo relacionado.

- Não gosto de garotas – Sasuke declarou, resoluto. – Sério, eu não suporto elas.

- Ah, mas um dia irá gostar – Minato lhe disse em voz baixo, sigilosamente. – E se não gostar, também, não tem problema. Tem gente demais nesse mundo.

Sasuke o observou subir as escadas com um quê de perturbação.

o

O tempo esfriara à medida que as horas silenciosas e sem amigos avançaram pela madrugada. A fatia de céu que conseguia ver tinha assumido um turbulento, gótico tom cinzento em que correntes frias e quentes se encontravam e lutavam entre si. Um trovão se abateu pelos céus.

Sasuke ficou deitado, inquieto, vendo os ponteiros luminosos do seu relógio de pulso avançarem para o número 12. Fazia um silêncio sobrenatural, talvez porque seus ouvidos estivessem atentos ao menor ruído. A casa era velha, mas sólida, e suas tábuas não rangiam. Os únicos sons eram o do relógio e o do vento lá fora. Não passava nenhum carro na rua dos Sorvedouros nas noites de semana.

Chegou a hora. Se ele quisesse ir, tinha que ser antes que sua determinação se esvaísse de dentro dele como um balão murchando. Foi meio difícil se levantar do sofá, porém, pois seus pés pareciam imersos em cimento seco.

Quietinho como um camundongo, calçou seus chinelos e pegou um casaco no cabide da porta ao mesmo tempo em que procurava pela chave da casa no bolso da calça. Estava lá, tal como ele a colocara ali, e seu peso era reconfortante, como lhe impelindo a prosseguir com aquela coisa muy loca que estava fazendo. Girava a maçaneta quando escutou um ruído. Uma porta sendo aberta? Fechada? Saiu da casa antes que pudesse ter certeza de qualquer coisa.

Os sons da noite encheram seus ouvidos, tais como o farfalhar da brisa na grama e um grilo que estridulava ali perto. Começou a andar, observando as nuvens pendendo baixas e escuras. Nunca antes em sua vida sair debaixo de uma tempestade dera-lhe a sensação de uma fuga.

A escuridão caiu sobre ele enquanto caminhava, e sua sombra crescia e encolhia à luz dos postes. A cada passo que dava, dizia a si mesmo que aquilo não passava de um esforço para lancetar a ferida e limpá-la. Mesmo assim, não se sentia senhor de suas ações. Era como se estivesse lidando com um mecanismo do qual não tinha total controle. E como essa ideia ia entranhando-se em sua alma, ao dobrar a esquina, sobressaltou-se, literalmente, com sua própria sombra.

Calhou de a casa não ser tão longe da sua quanto Sasuke pensava. Já havia bastante tempo desde a última vez que ele estivera ali, e não tinha certeza se lembrava-se com clareza o caminho. Por fim, conseguiu localizar a casa estilo cape cod, construída com bordo de boa qualidade. Ao abrir o portãozinho, Sasuke pôde ver que o jardim, sempre conservado com tanta beleza, agora parecia abandonado. Ele parecia ser quase todo feito de nada mais do que folhas que não tinham sido varridas.

Ao subir o último degrau em direção à porta, bateu o primeiro pé-de-vento. Parecia sussurrar em seu ouvido (uu-uu-uu, alguém está morto) e varrer para longe o calor de seu corpo.

Sasuke ficou parado em frente à porta, as orelhas em pé para detectar outro som. Seus olhos estavam ardendo, como se ele tivesse lido As Crônicas de Nárnia de fio a pavio. Percebeu que nunca iria bater naquela porta. Saíra de casa depois do toque de recolher, caminhara quase três quadras em meio ao frio da noite, sob a forte probabilidade de chuva, e ficaria parado ali até amanhecer, o nariz entupido e coberto de relento.

Porém, ouviu passos vindo de dentro da casa. Eles se aproximaram, perderam o eco e a porta se abriu.

Imediatamente sentiu a medula espinhal como uma coluna de gelo. Era Ino, e não se parecia nada com a garota de sete horas atrás. Trocara a roupa para um macacão de sarja azul e o cabelo sujo e desgrenhado, que não tinha um estilo de corte discernível, estava solto. Sasuke olhou para o seu rosto pálido e espectral, para os círculos escuros em torno dos olhos e a mecha solta de cabelo loiro caída sobre a testa. Olhou para os olhos dela, que estavam injetados de chorar e que, na verdade, ainda continuavam a verter lágrimas, como se alguém tivesse deixado uma torneira aberta dentro deles.

Ela ficou parada ali, como um androide cujos circuitos da memória haviam sido 75% apagados. Antes, no Aspel Park, demonstrara alguma vida, se não exatamente vivacidade; agora isso havia desaparecido, assim como a cor de suas faces.

Sasuke parecia ter a boca cheia de algodão molhado. Tentou falar alguma coisa, e na mesma hora um trovão explodiu como uma granada de canhão acima deles. Ele saltou, seu coração palpitando muito rápido no peito.

O estrondo pareceu acordar Ino. Devagar, ela enxugou as lágrimas com a base da palma das mãos.

- Você veio – ela disse numa voz rouca tipo uísque-com-Marlboros.

- Vim – Sasuke concordou. Ino deu espaço para ele passar, e Sasuke entrou.

Olhou em volta com curiosidade. A porta dava para uma pequena sala-cozinha decorada no melhor estilo brechó, tendo ao meio uma televisão Vídeo King, com tela de sete polegadas e lente de aumento sobre o tubo de imagem. No pequeno espaço entre o fogão a gás e a geladeira, estavam alguns utensílios de limpeza: um esfregão, um balde cheio de trapos velhos, uma vassoura com uma pá de lixo enfiada na ponta do cabo. Uma lareira refletida no verniz do soalho de tábuas de pinho sazonado era a fonte mãe de um calor insuportável, que fazia o cérebro zunir. Os móveis que não eram iluminados pelo clarão da lareira eram apenas sombras na escuridão. Uma porta de correr estava entreaberta, lançando um leque de luz branca no chão.

Ino encostou-se na parede, olhando para aquele leque de luz, os cotovelos apoiados nas palmas em concha. Sasuke não sabia porquê, mas achava que havia alguém ali dentro. Sentia isso, algo como um espirro.

- Cadê a senhora Chyio?

- Vovó não está aqui.

De certo modo, ele acreditou nas palavras dela.

- Acho que temos que entrar – ela falou baixinho.

- Temos? Temos mesmo?

- Sim.

Ela se desencostou da parede e fez uma careta quando outro estrondo de trovão sacudiu o terreno. Dessa vez ele foi seguido pelas primeiras batidas de pingos de chuva sobre o telhado. Faziam um ruído forte, como se alguém estivesse atirando punhados de bolas de gude sobre uma tábua de passar roupas.

Sem se deixar parar, Ino empurrou a porta para o lado. Uma explosão súbita de luz cegou Sasuke por vários segundos, produzindo um cardume de peixinhos faiscantes em seu campo de visão. A medida que seus olhos foram se acostumando, percebeu que a porta de correr dava para um banheiro. Os tubos fluorescentes nos dois lados do espelho do armário e o anel fluorescente no teto esparramaram uma luz forte, ofuscante e lavada que imprimia ao banheiro a sensação de uma fotografia de local de crime.

Sentada na privada estava uma velha senhora gorda, usando um penhoar alcochoado, metade dos cabelos caindo-lhe pelo rosto como a mortalha de um penitente, metade presos e cobertos por uma rede. O creme de beleza tornava seu rosto pálido e fantasmagórico. Não tinha idéia de sua idade. Ela podia ter 70, 90 ou 110.

Uma rajada sublime de alívio passou por Sasuke – um alívio tão grande que parecia alguma espécie de revelação sagrada. Esperava, sinceramente, encontrar a velha parada em pé, com dois furos de cada lado do pescoço, sorrindo e esperando dar o bote.

Mas ela não vai fazer isso, pensou Sasuke, sentindo o suor começando a porejar em sua testa, nas maçãs do rosto, até na ligeira depressão sob o nariz. Ele estirou a língua e lambeu esta umidade sem se dar conta. Não vai fazer isso porque está mortinha da silva. Morta e sentada no trono, como Elvis.

- Ino, eu... – Não sabia direito o que falar. Chegou a levantar a mão para tocar no ombro dela, mas deixou-a cair. Era um garoto que se alijava de quaisquer atitudes românticas. – Eu sinto muito, mas muito.

A garota nada respondeu. Entrou no aposento e Sasuke a seguiu. A banheira estava vazia, exceto pelo chuveirinho de mão, cujo tubo estava pousado no fundo como uma cobra morta. Ela se ajoelhou diante da avó e encaixou o rosto em suas mãos.

- A encontrei logo quando cheguei em casa. Ela não me pareceu ter adormecido sentada, porque não é preciso ser bidu para se ter uma ideia dos sons que um morto produz: nenhum. Lambi um lugar no lado de cima do meu pulso e o levei até em frente das narinas dela, depois dos lábios. Nada.

Sasuke estava mudo. Achava Ino a pessoa mais desapegada que já conhecera, e não sabia que ela era capaz de possuir vínculos com outra pessoa.

- Estávamos felizes com o que significávamos para nós próprias e uma para a outra – ela disse numa voz embriagada, e os olhos começaram novamente a verter lágrimas, como sangue de um ferimento que nunca pode cicatrizar. Ela encostou a testa da avó na dela, apertando os olhos com força, e a semelhança entre as duas se acentuou. Não era espantosa, mas existia. Sasuke sentiu o amor que Ino tinha pela avó, uma emoção simples e autêntica, não maculada pela dúvida, pelo egoísmo, nem mesmo pela gratidão. Ele a pegou pela mão e a tirou dali.

- Desculpe – disse ela, caminhando meio trôpega. Respirou fundo várias vezes antes de conseguir falar novamente e, ainda assim, sua voz saiu falha. – Por mais comovida que eu esteja, no entanto, há algo que preciso falar com você, Sasuke.

- Claro, o que quiser. – disse ele, preocupado somente em sentá-la em algum lugar e dar-lhe de beber. – Quer um copo de água?

- Tem cerveja sem álcool na geladeira. Estou precisando de uma.

Sasuke a pôs no sofá coberto com um tapete de tricô e foi buscar a cerveja, enchendo generosamente dois copos até a metade.

Ela murmurou um agradecimento e engoliu metade da sua cerveja feita em casa, fazendo uma careta como quem sente o gosto de um remédio amargo. Sasuke bebericou a sua, e ela estava fria, forte e deliciosa. O suor corria pescoço abaixo pela sua camisa, onde ficava retido e fazia cócegas. As trovoadas, que o telhado mal abafava, ressoavam com violência. Seus olhos foram atraídos pela luz da lâmpada elétrica do banheiro, tão potente que seria possível ler-se as menores letras impressas em jornal. Lembrou-se de ter lido em algum lugar que o animal humano tinha um desejo intrínseco de ver os restos mortais.

Ino fungou ao seu lado, esfregando o nariz na manga do macacão. As duas conservavam uma caixa de lenços de papel na gaveta da mesinha de canto. Sasuke tirou um lenço, olhou para ela, depois tirou um bom punhado. O relógio cuco da Floresta Negra fazia tique-taque.

- Obrigada. – Ela assoou o nariz com força. – Não pretendo ficar nessa por muito tempo.

Sasuke, que estava observando reflexivamente o papel de parede – rosas silvestres vermelhas espalhando-se por uma parede de jardim – enquanto bebericava sua cerveja, olhou-a sem entender.

Ela o encarou muita séria, apesar dos olhos injetados e as bochechas molhadas.

- Eu vou me mandar desta cidade. Você vem comigo?

A cerveja entrou pelo lugar errado e ele se engasgou, começando a tossir violentamente, mal conseguindo tempo entre um ataque e outro para respirar de novo. Ino o esperou se acalmar.

- O nome dele é Itachi. Ele está isolado numa ilha oceânica que não é do conhecimento humano. É para lá que vou.

- O que você está dizendo? – perguntou, o rosto vermelho e os olhos marejados.

- A ilha muda de nome de dez em dez anos – ela continuou, como se não o tivesse ouvido. – Está prestes a mudar novamente, e assim que acontecer, vamos perder para sempre a chance de encontrarmos quem queremos.

Sasuke a olhava, estupidificado.

- Isso o incomoda, não incomoda, Sasuke? Incomoda porque está a meio caminho de se apaixonar por...

- Cale a boca!

Ela o olhava pacificamente. Sasuke arfava, tanto do engasgo quanto do nervosismo. Uma trovoada ribombou acima deles, tão alta quanto um móvel desabando no chão. Sua respiração foi gradualmente se acalmando – primeiro passou a um galope lento, depois a um trote e, finalmente, a um passo.

Aquela era uma ideia que vinha lhe atormentando com freqüência nos últimos tempos, como uma coceira inatingível entre as omoplatas. Era algo que ora afundava, ora aflorava como uma coisa ruim submersa e demasiado encharcada para vir totalmente à superfície. Mas agora tinha certeza. Quando pensava no rapaz de tantos anos atrás, no sorriso que continuava tão nítido em sua mente quanto um fio de prata, recordava-se de como ele era bonito.

Bonito o cacete, ele era lindo.

- Itachi...? – repetiu. Achou o nome diferente, exótico, uma espécie em extinção.

- Minha avó me disse uma coisa antes de eu sair para o parque à tarde...

- Sei – ele disse, sorrindo desdenhosamente para o chão. – Ela lhe disse algo do tipo "siga seu coração", não é?

- Quase isso. Ela disse "Nunca se arrependa de fazer uma coisa que ache certa."

- O que você quer com ele?

Não pôde evitar a raiva e o ressentimento em sua voz. Como Ino podia saber mais sobre aquele rapaz do que ele? Sasuke apostava que o conhecera a muito mais tempo do que ela.

- Não dou a mínima para ele. Há outra pessoa que quero encontrar e que coincidentemente também está naquela ilha. Estou apenas lhe dando a única chance que você tem de encontrá-lo de novo. Eu sou a única pessoa que pode levá-lo.

Durante um momento longo, Sasuke ficou calado. Não conseguia pensar em nada – literalmente mesmo, não conseguia pensar numa única coisa – para dizer. A possibilidade de reencontrar o rapaz era incrivelmente maravilhosa... e indizivelmente assustadora ao mesmo tempo.

- Eu lamento, mas não posso lhe dar muito tempo para pensar. O nome mudará daqui a cinco dias e, sem ele, nunca conseguiremos chegar lá.

Ele estava inquieto; era como se ele tivesse que fazer a decisão naquele exato momento, e podia sentir o pânico roendo as bordas de sua mente com dentes de aço. Uma torrente de terror queria invadi-lo e afogá-lo. O trovão ribombou e se assustou. O suor caiu-lhe num olho, fazendo-o arder.

- Só vou lhe alertar de uma coisa, e nunca falei mais sério em minha vida. – A mão dela pousou em seu rosto e o obrigou a encará-la. – Pense com muito cuidado. Por você e por mais ninguém. Deixar a coisa rodar em sua mente até conseguir vê-la sob outro ângulo seria o pior erro da sua vida. Talvez o último.

- E você pode fazer isso? – ele perguntou, incrédulo. Sentia que o perfume frio da cerveja pairava forte no ar e fazia seus pulmões lhe parecerem achatados como folhas de papel. – Você consegue?

- Eu vou me arriscar – Ino declarou com fervor, e ele jamais veria seus olhos brilharem daquele jeito novamente –, e torcer para que dê certo. Eu vou...

Naquele instante, o estrondo de trovão mais forte até então abriu-se por cima deles, tão forte que fez vibrar o gramado. Mas nenhum dos dois se assustou. Os trovões eram apenas parte do papel de parede do mundo.

-... eu vou me apossar do futuro.

Sasuke apoiou os cotovelos nas pernas e segurou a cabeça nas mãos.

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Acordou e o quarto estava imerso em total escuridão, embora ele já não percebesse mais isso; o barulho das ondas nem notava, depois de ouvi-lo pelos últimos anos, dia e noite. Sua impressão, contudo, era a de que haviam se mudado recentemente. Podia não parecer para Shisui, porque era mais novo, mas para ele, se passara apenas três meses.

Itachi apoiou-se nos cotovelos e girou as pernas para fora da cama. Andou até a janela, que não deixava penetrar um único raio de sol por causa da veneziana cerrada, girou a tranqueta para cima e empurrou-a para fora. Seu quarto devassava o oceano, as ondas indo e vindo, limpas e profundas. De algum lugar chegava uma música tocando a todo volume, mas ali o volume mal passava de um sussurro. Ali era bom, pois ficava longe da central. Era bom e escondido.

Com os cotovelos apoiados no batente da janela, observava o crepúsculo noturno. O horizonte estava esverdeado, e aquela réstia de pôr-do-sol fazia seus olhos vermelhos doerem, mas não muito. Duas estrelas já tinham surgido no céu.

- Alguém está vindo. – murmurou.

Braços passaram em torno de sua cintura, e ele não precisava se virar para saber que era Shisui. A música trance tocava por sobre as ondas da arrebentação. O vento agitou o cabelo dos dois, e Itachi pousou a mão sobre as de Shisui.

Hold tighter, feels right

- Quem que está vindo?

Itachi não respondeu. Permaneceu olhando fixamente para o mar, os olhos meio fechados, parecendo distante, e nada disse.

- Acho que você está sob muita tensão, sabe – Shisui disse em tom de conversa, o queixo pousado no ombro de dele. – Esse peso que você carrega não é nenhum macaquinho incômodo, nenhum mico de circo no seu ombro, mas um verdadeiro gorila invisível de 300 quilos nas suas costas.

As mãos na cintura a viraram de modo que os dois ficassem frente a frente. Ambos os olhos, do mesmo vermelho vivo como bagas de azevinho, brilhavam suavemente no escuro.

- Faça-o descer – ele disse, aproximando o rosto. – Deixe-o descer.

Encostou a boca na bochecha de Itachi, devagar, com cuidado. Fazia tempo que não tinham aquele tipo de contato, e o momento exigia cautela. Não era algo sério, uma relação de compromisso entre eles – Shisui o estava confortando, e ele aceitava o consolo em silêncio. Itachi fechou os olhos e entreabriu os lábios, o ar saindo de sua boca sem fazer som algum. A música continuava a tocar ao longe.

Sometimes you open your arms and we just keep quiet

- Isso... – Itachi foi interrompido pelo indicador de Shisui em seus lábios.

- Sssh, - fez ele – keep quiet.

E da bochecha passou para a linha da mandíbula, e então o pescoço. Devagar, Itachi abriu a boca e envolveu o dedo de Shisui com os lábios, e o dedo foi parar em seu pescoço, substituído pela língua dele. O vento soprou nos dois, gelado como o mar, suave como é o cetim na pele. E enquanto Shisui o deitava novamente na cama, os dedos adentrando por debaixo da camisa do pijama, suas mãos fecharam-se nos lençóis e aquele peso, que não era um gorila, mas um peixe-lua de duas toneladas, recaiu sobre ele como uma grossa mortalha negra. No fim, era tudo culpa dele.

Era culpa dele Deidara estar morto.

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Saudações, meu Brasil varonil.

Não gostei muito desse capítulo, acho que ficou meio desconjuntado, mas ah.

Fiquei vibrando de felicidade com as reviews, obrigada a todos! Nada como opiniões construtivas (e longas, adoro reviews longas) para fazer uma escritora seguir adiante com sua história. O apoio é tudo, é a base, a moeda energética, aquele necessário pé na bunda.

Tenho enorme carinho por vocês, pessoal. Sério mesmo.

Viic.