Capítulo 4. Como sempre

Era como se a tristeza brigasse por um tempo até chegar. Vinha pelo pântano da arrogância de adolescente que persistia ainda, através da lama e da pouca luz. Esse período em que ela tentava afugentá-la era inquietante, cansativo, às vezes desesperador. Como se esperasse à borda do pântano pronta para atacar, em eufórica agonia.

Mas quando finalmente a via, sentia certo carinho (era um pedacinho de si mesma), deixava que se aproximasse, e a tristeza se aconchegava num cantinho sob uma nesguinha de Sol; fazia seu coração bater mais devagar e sua mente, de certa forma, clareava-se.

Estava no trem que a deixaria em Bournemouth, que lhe rendia umas boas horas de pensamentos. Marlene aceitou aquele tempo quieta como se o aguardasse, tal qual a tristeza que agora causava um peso quentinho em seu coração.

Ao menos estava sentindo alguma coisa que fazia sentido… E a tristeza agora era o mais perto da paz que podia chegar. O que estava acontecendo era difícil para Marlene entender. Gostava de sua vida, ao menos pensava que gostava… faculdade, festas… e seus amigos foram todos para a mesma cidade, que mais ela queria?

Os trilhos fizeram o trem se curvar e Bournemouth chegou à vista de Marlene. Intocada. Foi como lhe pareceu a cidade. Do jeitinho que ela deixara, foi quase como voltar no tempo. O Sol do meio-dia fazia o céu parecer imenso, e ela já podia sentir o mar antes mesmo de desembarcar.

Sua cidadezinha pacata e a vida de interior pareciam saudosas quando ela pensava em muitos dos dias do seu novo cotidiano. Antigamente, ao menos, algumas coisas faziam sentido em sua vida. Nada era… vazio, como sentia agora.

Seu pai a aguardava na estação. Marlene sorriu e sentiu que não o fazia tão sinceramente há muito tempo. Desceu e abraçou com força seu pai, que beijou seus cabelos. Estava em casa.


Tomava o chá da tarde com sua mãe, quando bateram à porta dos fundos, a porta da cozinha. Seu pai, apoiado no balcão (insistiu a vida toda em tomar seu chá em pé, "observando as garotas", era o que ele dizia), virou o pescoço e olhou pela janela.

- Lennie, é pra você. – Ele disse.

- Já? Quem é?

- Sirius. – Informou enquanto abria a porta. – Ei, cara! – Disse alto, tal qual o amigo que sempre fora para Sirius. Abraçou-o como a um filho. – Veio para o chá? Sente-se!

Sirius entrou sorridente, beijou a testa da mãe de Marlene e depois olhou para a amiga, um sorriso de "vamos esquecer a última briga, certo?". Marlene riu, sentiu-se, agora sim, totalmente em casa.

- Ei. – Ela cumprimentou.

- Ei, maluca. – Ele a abraçou como se não tivessem vindo da mesma cidade.

Depois se apoiou no balcão como o Sr. McKinnon enquanto comia sanduíches.

Passaram um tempo conversando com os pais de Marlene, e depois alguns minutos sozinhos antes de ela levá-lo até a porta.

Marlene abriu a porta para Sirius e notou o frio e a escuridão de sua varanda. Virou para acender a luz da porta de entrada, e quando voltou a olhar para fora, seu amigo lhe tampou toda a visão ao lhe abraçar outra vez. Marlene apoiou o rosto no ombro de Sirius e fechou os olhos sentindo a tristeza se deslocar para um lugar de pleno luar em seu peito, a ponto de fazer duas grossas lágrimas escorrerem de seus olhos.

Marlene não saberia dizer quanto tempo durou aquele abraço. Durou uma visão perfeita de sua tristeza, durou até que o cheiro de Sirius tomasse seu pulmão, durou até que seus dedos, agarrados com toda força às costas da camiseta dele, começassem a doer. Durou até ela perceber que Sirius afogara o rosto em seus cabelos e segurava suas costas com força demais, pois fazia suas costelas doerem.

Ele a soltou devagar, porque lhe parecia que já a segurara tempo demais, e com força demais, já que sentira praticamente todas as costelas dela entre seus dedos, e começava a suar um pouco nas mãos.

Quando ele olhou para o rosto dela, porém, achou que não devia tê-la soltado. Estava muito frio, e ela o olhava como a um milhão de anos atrás, mas com tanta tristeza pintada nos olhos que ele teve que fazer força para não abraçá-la outra vez.

- A gente devia parar de brigar. – Ele disse, tocando seu rosto e olhando-a naquele sorriso de olhos tristes que as vezes aparecia nele.

- Eu sei. – Ela fungou baixinho. – Desculpa, 'tá, eu não sei, não sei o que 'tá… - Sua voz morreu num choro reprimido. Sirius a abraçou outra vez.

- Não 'tá acontecendo nada, Lene. 'Tá tudo bem, tudo como sempre foi, ok?

- 'Tá bem. – Ela se afastou e meneou o rosto úmido. Mas continuou se sentindo perdida. "Tudo como sempre foi"…

Alguma vez foi… o que foi?

Ela o acompanhou até onde pudessem dar uma olhada no céu. Algum costume que sempre tiveram.

Olharam as estrelas lado a lado por uns instantes, até que o frio o falasse mais alto. Era quase Natal, afinal.

- Praia amanhã? – Ele perguntou.

- Praia amanhã.

- Vai estar frio.

- E cinza, tudo cinza.

Ele riu, esperou ela rir também, e andou até a casa de James.

Marlene ficou olhando suas costas até elas desaparecem atrás da porta, como sempre.


[Alguns anos atrás]

- Saca que tem o troço da refração, né? – disse a garota comprida por volta de seus 15 anos.

Na lembrança, a voz e o tom dela, e a cena toda eram nítidos: ela estava sentada em uma pedra a uns dois metros dele, as pernas cruzadas a fazerem do vestido simples azul uma cestinha onde o resto das framboesas vermelho-intensas que ela comia pousavam. Dava para ver os joelhos ossudos e os ombros queimados de sol, cheios de pintinhas marrons e descascando, como a todo fim de verão da vida de Sirius Black.

- Eu sei. – Respondeu entre ríspido e distraído o garoto alto e bonito demais para sua idade. Os cabelos negros lhe caiam aos olhos, pois ele mirava o fundo raso do mar, mais exatamente os peixes que ali nadavam. Na mão esquerda, erguida acima do ombro, segurava uma lança visivelmente feita por ele mesmo.

Marlene se lembraria perfeitamente, por toda a vida, das calças dobradas até os joelhos, as pernas com alguns poucos pelos masculinos submergidas até o meio das canelas; e o peito nu, já bastante bronzeado, como a todo fim de verão da vida de Marlene McKinnon.

- A gente ainda precisa atravessar a praia toda, Sirius, e o morro! E andar até em casa… Vamos logo… - Disse ela, um tanto entediada, jogando as últimas framboesas para os peixinhos. Alguns que estavam rodeando as pernas de Sirius vieram pegá-las. Sirius lhe lanõu um olhar raivoso.

- Shh. Você 'tá espantando os peixes. – Reclamou a voz rouca e baixa. Marlene revirou os olhos e suspirou cansada.

- Que coisa mais chata para se fazer, Sirius.

- Quieta. – Ele murmurou, sem olhar para a amiga, sentindo-se irritado.

- Estamos aqui há horas! Você não vai conseguir.

- Cala a boca, Lene.

- Você não se acha grandinho demais pra brincar de pegar peixinhos com uma vara?

Ele finalmente a olhou, o cenho franzido e os olhos tão fendidos para se proteger da claridade que tudo o que ela viu foi o brilho prata faiscar em raiva. Aquilo sempre era como… cócegas. Ela se esforçou para não sorrir.

- Eu 'tô caçando. – O rapaz falou como se aquilo exprimisse toda a importância e seriedade da questão.

Ela riu com toda a vontade, direcionando todo o tédio reprimido naquele gesto.

Sirius a mirou tenso, o suor escorrendo dos cabelos nos cantos do rosto e na testa. Ela parou de rir com esforço, fingindo seriedade por uns segundos em que disse irritantemente plácida em tom poético:

- Sirius Black, o caçador feroz de meigos peixinhos dourados!

Marlene então inclinou o pescoço para trás e gargalhou, os cabelos queimados ondulando na brisa.

Não era comum ela o irritar daquela forma. Em geral, ele é quem provocava. Mas o cansaço e a frustração, talvez o Sol e o sal nas roupas, ou ela ali, as pernas cruzadas sobre a pedra e as mãos pousadas no colo como se ela fosse a menina mais boazinha do mundo, alguma coisa irritou muito Sirius Black aquele dia.

Ele deu três passos longos e largou sua lança antes de puxar Marlene da pedra, levantá-la por aquele irritante pulso fininho e derrubá-la com uma rasteira na água rasa, fazendo-a cair deitada de costas. Então, sentindo uma raiva estranha que ardia na boca e no baixo-ventre, ele inclinou o corpo sobre a garota caída e assustada (os enormes olhos castanhos ingênuos demais!), e a fez mergulhar a cabeça para trás, na água salgada.

Puxou-a em seguida, assustado com a intenção do que fizera.

Marlene respirava fundo e rápido, olhando-o horrorizada. Sirius sentiu medo das próprias mãos, do próprio corpo e do que sentia. Segurou os ombros da amiga num instinto.

- Me larga! - Ela tentava se desvencilhar.

- Desculpa! – Ele disse em tom preocupado, encarando-a como se sentisse medo, segurando seus ombros como se precisasse que ela lhe respondesse.

- Você 'tá doido? – Ela tentou se levantar, mas caiu onde estava, as pernas estavam fracas pelo susto.

- Desculpa.

- Sai de cima de mim!

- Lene, diz que me desculpa.

- Não!

- Lene!

Ela tentou se erguer outra vez, mas ele a puxou, metade do corpo dela sob o seu, pedindo com os olhos que ela o perdoasse.

- Vai me afogar de novo?

- Marlene, me desculpa, por favor.

- Não quero te desculpar! Você podia ter me afogado! – Ela se sentia nervosa.

- Me desculpa. - Ele falou mais grosso dessa vez, num tom quase como comando.

Marlene a olhou entre curiosa e assustada. Encolheu as pernas contra o tronco, tirando o corpo de sob o amigo.

Ele suspirou irritado. Por que ela não a desculpava de uma vez…? Segurou outra vez seus ombros, aproximando mais o corpo, mesmo com as pernas dela comprimidas entre eles, olhando bem fundo nos olhos, a ver se ela parava com as tolices.

- Me desculpa, por favor.

Marlene conseguiu se desvencilhar e começou a se levantar, mas Sirius puxou-a de volta com eficiência, e, ficando de joelhos, abraçou a amiga, acariciando seus cabelos molhados, sentindo a diferença da suavidade dos fios e os grãos de areia que se prenderam neles.

- Me desculpa e a gente volta pra casa agora mesmo. – Ele falou baixinho.

Ela o empurrou para olhá-lo nos olhos.

- Você quis me afogar?

- Não.

- Por que fez aquilo?

- Pra você calar a boca.

Marlene franziu o cenho, os olhões castanhos brilhando em algo que ele não soube descrever. E então acrescentou em seu tom normalmente calminho de voz:

- Sirius, você me assusta quando fica nervoso.

Ele deu um sorriso porque soube que ela o perdoara.

- É só não me deixar nervoso.

- Ah, não dá pra controlar!

- É só me obedecer. – Ele ampliou o sorriso na frase, um olhar sonhador para uma Marlene que faria tudo o que ele dissesse.

- PFFF! Ah, tá! – Ela fez irônica e começou a rir. - Seu monstro. – Acrescentou olhando-o daquele jeitinho dela, a feição e o movimento dos lábios que sempre o deixava mais leve.

- "Seu monstro". – Ele a imitou toscamente.

Ela riu e ele teve vontade de ficar ali para sempre.

- Você fala "monstro" de um jeito engraçado. – Ele disse só para ficarem mais um pouco assim.

Ela ergueu uma sobrancelha.

- Falo assim desde sempre.

- É, e sempre foi engraçado.

- E 15 anos depois você decide notar.

- Quase 16. – Corrigiu mais por hábito do que por qualquer outra coisa.

- Não te conheci antes de nascer. – Ela falou ilogicamente, só para ficarem mais um pouco ali, de frente, de pertinho, a brisa e os olhos dele só para ela.

- Ultimamente você anda… - Ele começou a falar, mas desistiu, não era realmente algo que ele saberia descrever.

- O quê?

Ele fez um movimento com a mão, como se tentasse afastar um inseto.

- Esquece.

- Fala, Sirius.

Ele não respondeu. Olhava para um ponto fixo ao lado do corpo de Marlene, entre observar o vestido dela ondular na água e pensar num modo de desviar o assunto, começou a ficar irritado outra vez por ter falado aquilo. Que dia esquisito

- Sirius, fala…

- Não é nada. – Falou mais grosso.

- Fala. – Ela insistiu, abrindo os olhões num comando brincalhão.

Estranhamente, aquilo o irritou mais.

- Não é nada, larga de ser boba.

- Uuuuhhhhh, perdão. Vai tentar me matar de novo?

Sirius suspirou impaciente, começando a se levantar.

- Não tentei te matar. Vem, vamos embora. – Ele ofereceu um braço para ajudá-la a se erguer.

Mas ela o usou para puxá-lo e ele caiu sentado a seu lado.

- Para, Lene! Vamos logo!

Ele tentou desviar a raiva, passou as mãos pela cabeça e depois as apoiou no fundo do água, esticando as pernas a frente do corpo e pedindo a si mesmo para se acalmar.

Infeliz e irritantemente, Marlene parecia não entender o perigo.

- 'Tá com muita vontade de me matar, Sirius Black? – Ela zombou da expressão séria e cansada dele, o peito nu para o céu tão azul daquele dia a fazia querer brincar um pouco mais e mais...

- Lene… hoje você 'tá um saco.

- Não é como se eu tivesse medo de você. - Ela mentiu rindo.

Então ficou de joelhos na areia dolorida, ao lado dele. Puxou suas mãos, obrigando-o a mudar o apoio para as pernas, e as segurou em volta do próprio pescoço, Sirius olhando-a como se ela fosse louca e entediante ao mesmo tempo. Ela segurava o riso, porque Sirius não a achava nenhuma das duas coisas, ela sabia.

- É sua grande chance. – Ela disse risonha pelas palavras, e pelas cócegas que o toque dele lhe causava; o rostinho perto do dele, e ele fingindo de maneira muito convincente que permanecia irritado.

Ela parou de rir quando sentiu as mãos dele se fecharem voluntariamente em seu pescoço.

A pele era mais macia ali, e o pescoço parecia muito frágil assim, entre as mãos grossas e descuidadas de um jovem de praia. Ele o apertou um pouquinho mais, sem pensar no porquê.

Ficaram assim sem razão por um tempo, ela com o corpo inclinado acima do seu, de joelhos na areia que sempre a machucava. Ele sentado na água, sentindo as gotas que escorriam do cabelo e do vestido dela para seu peito. Dava para ver o vestido molhado contornando o corpo magro de menina, as curvas suaves começando a existir. Sirius sentiu a respiração acelerar.

Ela sabia que o peito dele subia e descia, mais rápido e mais forte. Tinha plena consciência deste e de todos os outros movimentos e não-movimentos do corpo dele. Os olhos dele refletiam o azul do céu, ou talvez do mar.

Então, ainda sem razão, talvez impulsionada pela dor da areia nos joelhos, Marlene encostou o corpo no de Sirius, e suavemente o empurrou; ele se inclinou um pouco mais para trás, soltando seu pescoço e apoiando os cotovelos na areia, para que não submergissem – ele e o corpo quentinho e perfumado que sentia sobre ele.

O vestido molhado continuava pingando gotinhas frias em seu peito. Para parar isso, ou talvez pela outra razão sem nome (a que fazia suas mãos esquentarem), ele a puxou pela cintura um pouco mais para cima, e bem mais juntinho de seu corpo. E era exatamente o que faltava.

Subiu a mesma mão para a nuca dela, mas não precisou puxar seu rosto. Ela encaixou seus lábios nos dele como um anjo encaixaria uma framboesa para mordê-la.

Framboesas frescas, o ondular da água no céu azul, a areia no cabelo dela, os lábios de um anjo.

Como num sonho, eles se esqueceram por um momento como vieram parar ali.

"Eu te amo para começar a amar-te,

para recomeçar o infinito

e para não deixar de amar-te nunca:

por isso não te amo ainda."


N/A: achei esse chap aqui, os outros preciso arrumar ainda, mas virão!

Muitos beijos e muitos obrigadas pelas reviews! Vou agradecer respondendo dessa vez, ok?

Ah, o poema é do Pablo Neruda!