Olhos sobre teu corpo

"Cesaris império regbi custodia fio

Quam míseros facio quos variares cio."

(Por ordem de Cesar, o guardião do reino sou eu, que desgraçados tornarei aqueles que saiba que discordam de mim.)

"And doth men lese thorw hire love – that lawe mwght wyne."

(E os homens perdem por amor a esta dama, aquilo que a lei lhes podia ganhar.)

Caius pov

Não importa o que eu diga sobre os mil anos que se passaram dês do dia em que me transformei. Naquele tempo tudo se resumia à sede incontrolável e o desejo de sangue. Meus irmãos, aqueles iguais a mim, compartilhavam meus sentimentos, ainda que Marcus tivesse o alívio do apoio de sua esposa. Didyme era gentil, mais do que isso, era uma companhia agradável que se recusava a perturbar meus momentos de rabugice, ajudava-me e esquecê-los com seu dom da alegria. Aro discordava de mim neste ponto, compreensível já que eram irmãos de verdade.

Eu não me dei ao trabalho de reparar nos humanos por muito tempo. Não havia nada na monotonia da monarquia romana que me interessasse. Com a república foi diferente. Eu sentia o desejo de poder que cada um daqueles seres imundos exalava. Roma era o centro de toda podridão, de toda perversão que havia no mundo. Mas as leis, a capacidade que tinham de criar sua política, sua cultura, sua estrutura de poder organizada para por ordem no caos e na barbárie que se estendia por todo território me fascinavam. Se eu fosse um homem de verdade, eu teria sido parte daquela estrutura e a teria amado sobre todas as coisas porque eu acreditava no poder e acreditava em lei.

Roma engatinhava com sua república edificada sobre escravos e plebeus, enquanto patrícios debatiam o destino de todos no senado, defendendo interesses mesquinhos. A plebe se revoltou eventualmente, os irmãos Graco se tornaram mártires da causa e então se criou o Tribuno da Plebe. Dê a massa o que a massa quer, mas nunca de maneira a por em risco o que a elite tem. Era cômico, era astuto, era brilhante.

Então Roma já não era o bastante para os romanos. Os olhos do poder se voltaram para terras além da península e começaram as guerras de conquista. Cesar ascendeu e caiu, e após ele as feras começaram a se enfrentar abertamente. Tempos instáveis e nada daquilo interferia em minha existência de maneira relevante. Éramos discretos por necessidade e nos tempos de riqueza e extravagância, podíamos nos dar alguns luxos e seriamos considerados apenas excêntricos. E os humanos jamais teriam idéia do quão sombria era essa excentricidade.

Augustus Cesar ascendeu e então as coisas mudaram consideravelmente. A velha república caiu e deu lugar ao império mais grandioso da terra. Escravos se proliferavam com tantas conquistas bélicas e nesta época eu e meus irmãos vivíamos numa propriedade nos arredores do centro de Roma. Afastada o bastante para que ninguém reparasse em nossos hábitos, a casa dos Volturi era uma verdadeira mansão e para manter o disfarce alguns elementos eram necessários.

Comprávamos muitos escravos, mais do que o que seria normal para uma propriedade como aquela. A desculpa era o crescimento constante de nossos negócios no campo. O motivo real era bem diferente.

Os escravos eram destinados a cuidar da parte externa da casa, que consistia de uma cozinha grande, sala de estar, jardins internos, sala de música, jardins externos, galpão dos escravos, dispensas e latrinas. Quando um deles se mostrava preguiçoso, ou de caráter questionável, era levado às câmaras internas onde eu e meus irmãos vivíamos a maior parte do tempo. Aqueles que eram recrutados jamais voltavam.

Para aqueles que demonstravam alguma habilidade especial, ou que eram muito atraentes para os padrões humanos, Aro concedia um agrado. Na verdade, eles se tornavam parte da seleta coleção do meu irmão. Imortais de primeiro escalão para formar a guarda da nossa família. Era o início do nosso império que estava destinado a durar por pelo menos mais dois mil anos.

Sulpicia apareceu um pouco antes disso. Era filha de uma família patrícia. Nobre como o ouro, orgulhosa de sua beleza e de seu status. Aro a amou como nunca julguei que ele fosse capaz de amar. Eles se completavam de uma maneira estranha. Enquanto meu irmão era vaidoso com seu poder e suas conquistas, Sulpicia se enaltecia por estar ao lado dele. Ambos eram delicados na fala e incontroláveis na fúria. Elegantes nos modos, selvagens quando ameaçados. Ela era indulgente com os desejos dele e ele sentia prazer em satisfazer os dela.

Então eu era o único que não possuía uma companheira, o único que gastava o tempo livre observando a movimentação sutil da política e o vigor das leis com a paixão de um amante dedicado. Nas noites eu gostava de vagar pelas ruas da cidade, sempre repletas de todo tipo de escória do qual eu podia me alimentar. Ladrões, escravos fugitivos, mendigos, prostitutas, meu cardápio era bem variado.

Foi numa dessas noites que eu perdi o controle sobre a minha existência infinita. Era véspera de uma grande feira de escravos e a cidade estava mais movimentada do que de costume com os comboios que traziam mercadoria nova. Gauleses, negros, egípcios, macedônios, gregos, chegavam amontoados dentro de carroças para serem vendidos no dia seguinte. Homens, mulheres e crianças, sujos e maltrapilhos, alguns doentes, outros fracos de mais.

Uma das carroças foi aberta e o feitor empurrava a mercadoria para fora com truculência. Em meio a tantos seres ordinários e de pouco valor foi que eu a encontrei. Usando trapos e de mãos atadas. O cabelo sujo era de um castanho escuro, quase negro. Os olhos eram expressivos e profundos, também castanhos. O rosto era arredondado, claro e suave. A boca uma romã madura. Uma beleza como aquela despertaria o interesse de Aro, ele gostaria de uma nova obra de arte para nossa coleção e até mesmo eu me alegrava com a idéia de contemplá-la como uma imortal.

Nunca desejei nada se não o poder e o controle, mas naquele instante tudo o que eu podia desejar era tê-la.

Quando voltei para casa meus irmãos estavam reunidos na sala privativa. Aro e sua Sulpicia trocavam carícias no divã enquanto Marcus e Didyme dividiam uma refeição. Minha chegada repentina despertou o interesse deles. Aro me encarou por um momento, o que deixou sua esposa aborrecida. Ele parecia desconfiado de alguma coisa.

- Parece agitado, irmão. – ele disse com sua habitual cortesia. – O que é?

- Algo que pode interessá-lo. – estendi minha mão para que ele a tocasse – Veja você mesmo e julgue.

- Não costuma ser tão atencioso comigo. Deve ser algo extraordinário. – Aro segurou minha mão. Podia ver nos olhos dele que estava tendo a mesma visão que tive minutos antes. Um rosto notável, o rosto de uma deusa. Meu irmão me soltou e tornou a encarar sua esposa com devoção – Acho que terá uma escrava em breve, querida. O que te parece? Gostaria de uma que cuidasse de seus cabelos? – Sulpicia sorriu deliciada.

- Seria adorável. – ela respondeu melodiosa. Aro sorriu para ela em aprovação.

- Teremos a garota, Caius. – meu irmão me respondeu – O feitor irá comprá-la amanhã cedo e ela ficará na parte externa a princípio. Vejamos como ela se sai e se for boa o bastante para poder cuidar de minha Sulpicia. A menos que a queira para si, irmão. – meu semblante não se alterou, me mantive sereno diante do comentário indiscreto.

- O que sugere? – perguntei num falso desentendimento e Aro riu astuto.

- Talvez eu possa transformá-la para que sirva a funções menos monótonas que arrumar os cabelos de minha esposa. – ele falou com sutileza – Talvez eu lhe dê a garota como um presente. Sinto-me culpado vendo você tão só e entediado, enquanto eu e Marcus estamos tão satisfeitos com nossas companheiras.

- Tentando se tornar um casamenteiro, irmão? – eu o provoquei e ele soltou uma risada musical e grave.

- E quem falou em casamento? – ele disse enquanto me lançava um olhar malicioso – Estou só sugerindo que você poderia ter alguma diversão. A final, já faz muito tempo que não tem o prazer de uma mulher em sua cama.

- Agradeço sua atenção, irmão. Sua esposa pode ficar com a garota se assim desejar, eu apenas pensei que ela traria algum encanto para sua coleção. – respondi enquanto dava as costas.

- Ela será sua, Caius. – Aro respondeu monótono enquanto voltava a acariciar sua esposa – Seus pensamentos a respeito dela eram quase sedentos.

- Não estou lhe pedindo nada. – respondi antes de abrir a porta. Aro riu.

- Você nunca pede. Este será meu presente a você por todos esses séculos de lealdade e apoio. Não concorda, Marcus? – ouvi um riso de Didyme.

- Muito apropriado. – Marcus respondeu monótono – Ela lhe fará muito mais feliz com a imortalidade. Quem sabe assim vejamos mais sorrisos em seu rosto.

Eu não permaneci na sala para presenciar as risadas, mas pude ouvi-las enquanto me dirigia a minha própria câmara. Eu não sai de lá, resisti até mesmo à tentação de questionar a alguém sobre a ida do feitor ao mercado de escravos. Pelo que eu vi da aparência dela, podia afirmar que era grega, ou macedônia. Mulheres como ela eram cobiçadas pelos bordéis de Roma, ou para servirem de amantes aos nobres. Inevitável não pensar que ela poderia se tornar minha amante quando Aro a transformasse, inevitável não encarar a possibilidade com desejo.

Ouvi os rumores de novas servas que haviam chegado naquele dia. Seriam usadas no serviço doméstico até provarem que valiam seu preço exorbitante. O mercador havia cobrado quase duas vezes o preço habitual por uma delas, alegando que se tratava de mercadoria rara e de grande procura. Uma virgem grega, destinada a aquecer camas nobres. Eu sorri satisfeito com a idéia, mesmo que não fizesse real diferença no fim das contas.

Eu não fui ao alojamento durante toda a manhã. Esperei até que a noite já estivesse adiantada e que os humanos estivessem adormecidos. Vaguei pela casa até que estivesse diante da parte destinada as escravas. Se havia entre elas ao menos uma virgem, assim ela devia permanecer até que um dos mestres a desejasse. Entrei sem fazer barulho algum.

O cheiro era desagradável. Sujeira, restos de comida, ratos e outros bichos asquerosos entravam e saiam pelas frestas do alojamento. Caminhei entre as mulheres adormecidas em esteiras de palha trançada e camas improvisadas até encontrar o objeto da minha busca.

Adormecida no chão úmido, com os cabelos desalinhados e lábios entreabertos. A visão era tão agradável quanto na noite anterior. Rosada, quente, pulsante, com seu coração marcando o compasso suave, quase melodioso de sua vida. O peito me mexendo ao sabor da respiração tranqüila. Ela dormia, sem nem desconfiar de que os demônios a espreitavam, sedentos por ela.

Permaneci ali até os primeiros raios de sol se anunciarem no horizonte. Voltei aos meus aposentos desejando que Aro e Marcus estivessem ocupados de mais para repararem na minha excursão clandestina até a ala dos escravos. Mas esperar que Aro não se interessasse pela vida dos outros era uma perda de tempo. Ele estava sentado em minha cama, olhando sem grande entusiasmo alguns manuscritos.

- Esperava mais do autor. – ele disse enquanto jogava o manuscrito longe – É de pouca expressão. Me faria dormir se eu ainda estivesse vivo. – ele soltou uma risada infame e me encarou atentamente.

- Deseja algo, irmão? – questionei ignorando seu comentário anterior.

- Saber se trouxeram a escrava certa. – ele respondeu sem grande alarde, até monótono eu diria, mas tinha certeza de que Aro estava se contorcendo de curiosidade por dentro – Pagamos uma fortuna por uma virgem grega. Acredita nisso?

- Não faz diferença, irmão. – respondi enquanto desviava o meu olhar para qualquer coisa dentro do quarto – É a garota certa.

- Como é educado. – Aro disse em tom de deboche – Não faz diferença, mas aposto que o deixou curioso, não é?

- Como qualquer outra deixaria, já disse que não me importo. – respondi sem dar muito crédito ao interrogatório de meu irmão.

- Poderá deixá-la bem ao teu gosto. Dócil e obediente como um bicho de estimação. – Aro sussurrava como uma serpente venenosa aos meus ouvidos – Como um gato doméstico ela vai se contorcer quando a tocar, ronronando. Ou quem sabe ela seja um desafio, um pouco arredia talvez? Seria interessante perseguir uma presa tão desejável, não é mesmo?

- Já chega, Aro! – eu pedi com um pouco mais de rispidez do que o necessário. Meu irmão arregalou os olhos.

- Agora estou realmente curioso. – ele disse – O que andou pensando, Caius? – então agarrou minha mão antes que eu pudesse me afastar. – Pensamentos nada puros, não é mesmo? Eu estou espantado com este seu interesse numa escrava.

- Não é da sua conta. – eu murmurei. Aro arqueou uma sobrancelha e depois se fez de ofendido.

- Tudo é da minha conta irmão. Se pretendo manter este clã unido, absolutamente tudo o que pensa me interessa. – ele respondeu teatral – Mas eu sou obrigado a concordar. Ela é uma beleza que enriquecerá minha coleção e com alguma sorte te fará mais agradável.

- Isso é tudo? – trinquei os dentes. Aro riu.

- Sim, é tudo. Vou deixá-lo a sós com seus pensamentos devassos. Faça bom proveito deles, irmão. - Aro cumpriu sua palavra e deixou minha câmara. Eu e meus pensamentos indecorosos girávamos em torno da lembrança daquele rosto. Imaginava se ela tinha um nome e qual seria. Imaginava como era sua voz ou a textura de seus cabelos contra meus dedos de mármore.

Então eu me esgueirava pelos cantos escuros da casa, escutando atrás das portas e espiando através das frestas tudo quanto possível. Poderia lhe dizer quantas gotas de suor escorreram de sua fronte, ou o número de batimentos do coração dela quando carregava um balde pesado de água, até mesmo o ângulo de seu tronco quando ela suspendia a barra da túnica para não se molhar.

O nome parecia flutuar em meus lábios enquanto eu me deleitava com o som harmônico de sua voz. Athenodora era beleza e graça sem par e indomável como uma fera arisca. Eu a ouvia murmurar desaforos contra o feitor, queixava-se de sua condição e dizia a quem quisesse ouvir que nascera livre e assim morreria.

Nem uma coisa, nem outra. Aquela criatura não fora destinada a morte, só de imaginá-la sucumbindo ao fim de todo mortal eu me sentia confuso e atordoado. Tão pouco ela seria livre outra vez. Eu era seu mestre e o seria pela eternidade, nem que para isso eu tivesse de vender minha alma ao Hades. Eu já não tinha uma alma, mas eu teria a dela.

Eu a ouvi sussurrando uma vez. Era madrugada e eu acabara de voltar de um "jantar". Ela conversava com uma garota mais jovem, baixo o suficiente para que humanos não pudessem entender o que falavam. Eu não era humano, mas ela não sabia que as paredes daquela casa tinham ouvidos, os meus ouvidos atentos.

- Os serviçais desaparecem aqui. – a mais nova murmurava com olhos arregalados – Ninguém nunca vê os patrões, só se sabe que são três irmãos e que dois são casados. Compram roupas finas aos montes, sempre há muita comida na dispensa, mas nada é levado as câmaras internas. – uma suspeita. Aquela garota havia acabado de ser sentenciada – Quando um ou outro não cumpre suas tarefas como deve, o feitor o chama e leva para a parte interna. Não sabemos o que acontece, mas eles nunca voltam.

- Acha que são fanáticos? Sacrificam os escravos aos deuses? – Athenodora perguntou afoita. Então agora ela sabia o quão próxima do mal ela vivia. Seu descuido e curiosidade lhe roubariam tempo e a trariam mais rápido para mim. A outra garota balançou a cabeça negativamente.

- Há também os que são muito belos, ou muito forte, ou espertos. – a menina disse – Sempre que um se destaca de qualquer forma também é levado. Esses voltam, mas sempre diferentes. – a ultima palavra foi dita com assombro.

- Diferentes como? – Athenodora lançou a ela um olhar desconfiado. A menina estremeceu.

- Quando voltam estão tão belos e frios quanto estátuas de um templo. A voz não parece real, linda de mais para pertencer a um mortal. O grande problema são os olhos. – a garota parou e espiou sobre os ombros.

- O que tem os olhos? – Athenodora a questionou urgente. Desejei quebrar o pescoço daquela garota intrometida e cortar-lhe a língua fora por ter falado de mais. Eu teria de ser rápido. Assim que o sol nascesse teríamos uma boa refeição e minha pequena grega receberia meu presente mais valioso.

- Voltam rubros, como vinho ou sangue. – senti a tensão pairar no ar entre elas e esperei ansioso pelo posicionamento de Athenodora. – Este lugar é amaldiçoado.

- Precisamos sair daqui. Fugir o quanto antes! – se eu tivesse sangue, teria sentido-o congelar dentro das veias. Então ela queria fugir, mas de nada adiantaria a fuga quando fosse uma de nós. Estaria sujeita a lei e a mim. – Venha comigo, Cassandra! Fugiremos a noite, enquanto os outros dormem e quando já tiver amanhecido estaremos longe! Talvez o bastante para que não nos encontrem.

- Temos que ter calma. Se falharmos o castigo será terrível! – a garota disse. Ao menos ela possuía algum juízo, ainda que questionável. – Gostaria de encontrar meu irmão novamente, mas creio que não há esperança para ele.

- O que aconteceu? – o sol estava quase nascendo e elas ainda conversavam.

- Foi levado para a parte interna depois de ter deixado uma égua escapar dos estábulos. Nunca mais o vi dês de então. – Athenodora abraçou a garota e acariciou seu cabelo.

- Vamos encontrá-lo. Até lá eu serei sua irmã mais velha. – não ouvi mais nada. Deixei meu esconderijo e voltei ao meu quarto.

Nos minutos que tive a sós com minha mente tudo o que eu conseguia processar era a raiva pela garota intrometida. Cassandra não viveria para ver a manhã seguinte, ou talvez eu a guardasse para servir a Athenodora como sua primeira refeição. E a minha pequena grega agora estava muito mais próxima de seu destino. Logo eu não mais sonharia acordado com a textura de sua pele ou o toque de suas mãos. Eu a teria. Minha Athenodora, só minha.

Eu não comuniquei a Aro de imediato. Antes que ele soubesse das suspeitas da garota eu mandei que o feitor trouxesse Cassandra às câmaras internas. Meu irmão logo foi atraído pelo cheiro humano no ar, então veio até mim questionar o que ela estava fazendo ali dentro.

Não precisei de mais do que um toque para provar a Aro que a menina era perigosa. Ela desconfiava e estava muito próxima de deduzir a verdade. E contra minha vontade, meus pensamentos colocaram Athenodora em risco. Aro trouxe a menina para nossa sala, onde ele analisou e ponderou cada aspecto de sua humanidade. Cassandra era franzina e desajeitada, provavelmente era usada em tarefas menos pesadas e não possuía nada que pudesse engrandecer nossa coleção de imortais.

Ela estava deslumbrada diante de Aro e Sulpicia. Eu a ouvi murmurar orações aos deuses e se ajoelhar diante de meus irmãos. Aro usou seu encanto, sua voz macia para acalentar o coração da menina. Ele acreditava que a comida tinha sabor melhor quando morria feliz.

Sulpicia acariciou o rosto da garota, como uma mãe indulgente e afetiva que ela jamais seria. Aro pousou seus lábios no pescoço fino daquela criança e a mordeu sem titubear, enquanto sua esposa mordia o pulso débil da escrava. Foi rápido, muito mais do que o que eu desejava.

Como é frágil a condição humana. Eu os via como insetos e a muito me considerava como um de seus deuses. A despeito de minha idéia de superioridade, eu me via contaminado por sentimentos humanos, movido pelo desejo e pelo ódio, consumido em minha obsessão por Athenodora.

Aro ordenou que a trouxessem também, mas me incumbiu de determinar o fim dela. Se eu a desejasse naquele momento, meu irmão a tornaria imortal. Mas eu tinha outros planos naquele instante. Eu não mostraria a ela o monstro, mostraria o deus misericordioso e disposto a perdoar seus pecados. Então ela viveria em disciplina, debaixo dos meus olhos e sob minha guarda. No momento certo, eu a seduziria o bastante para que ela não mais me temesse.

Sentia o cheiro dela do outro lado da porta. Ouvia sua respiração irregular denunciando o medo. A porta se abriu e ela foi empurrada para dentro da sala. Seus cabelos caíram sobre seu rosto como um véu e ela não me encarou, preferiu fitar o chão.

- Como se chama? – eu perguntei tentando manter meu timbre de voz suave. Ela respirou fundo e o coração acelerou.

- Athenodora. – ela respondeu baixo.

- Sabe quem eu sou? – perguntei, ela então ergueu a cabeça e me encarou por um momento. Podia ver nitidamente o pânico e o deslumbramento no momento em que ela encarou meus olhos vermelhos. Ela levou as mãos aos lábios tentando abafar o grito de horror. Tremia toda, apavorada pela minha presença. Ela não respondeu a minha pergunta. – Sou Caius Volturi, um de teus mestres nesta casa.

- Demônio! – ela soltou uma exclamação baixa – Onde está Cassandra?

- Cassandra não cumpria bem suas funções e a despeito de nossa tolerância ela andou falando mais do que o recomendável. – respondi indiferente.

- Mataram-na! – ela concluiu num tom de assombro – Oh boa virgem caçadora, Artemis! Proteja-me! – ela proferiu sua oração e eu tive pena dela por um momento.

- Se deseja proteção não é aos deuses que deve pedir. – eu disse calmo – Tem medo da morte, Athenodora?

- Não me mate, por favor! – ela caiu de joelhos, com os olhos cheios de lágrimas.

- Não farei isso, mas deve prometer que me será obediente. – eu me agachei ao lado dela. Com cuidado ergui seu queixo para que ela me olhasse. Ela tremeu diante do toque gélido da minha pele – Você é mais habilidosa do que ela era, mais agradável aos olhos e muito mais valiosa. Me obedecerá, Athenodora?

- Si...Sim. – ela murmurou apavorada. Eu me mantive sério.

- Então será minha serva pessoal. Faça sempre o que eu mandar, sem questionar e eu lhe darei proteção e serei bom para você. Se desobedecer será castigada e eu não mais poderei garantir sua segurança. – ela acenou com a cabeça para indicar que havia compreendido – Além de mim, deve ser obediente aos meus irmãos. Aro e Marcus não pediram a você o que eu pedirei, mas eventualmente podem precisar de sua ajuda. Sulpicia e Dydime podem requerer a você que cuide dos cabelos delas e você o fará. Esses pedidos serão raros, tua maior obrigação é para comigo. Você foi dada a mim por Aro e eu sou o teu mestre. Me acompanhe, eu lhe mostrarei as câmaras.

Eu me levantei e ela fez o mesmo. Deixamos a sala em silêncio e caminhamos pelos corredores da ala interna. Indiquei cada quarto e alertei para que ela nunca zanzasse sozinha por ali. Então eu a levei aos meus aposentos particulares. Uma pequena biblioteca, uma antecâmara com divãs e almofadas e o quarto de dormir. Ela reparou tudo, mas não disse uma só palavra. Quando ela estava no centro da antecâmara se virou para mim.

- Dormirá nesta sala e só poderá deixar estes cômodos se eu permitir. Fui claro? – ela acenou com a cabeça. Pelo que observei do comportamento dela, Athenodora estava apavorada. Ela não era tão silenciosa como estava agora, nem tão obediente. – Limpará o local todos os dias e o manterá organizado. Alguma pergunta?

- Não senhor. – ela respondeu com um sussurro.

- Muito bem. – eu me deitei confortavelmente em um dos divãs da sala enquanto ela permanecia de pé encarando o chão. Sentia-me nervoso pela proximidade e o cheiro perturbador do sangue dela. Refleti momentaneamente sobre os motivos que me levaram aquele momento. Talvez nada justificasse minha imprudência, mas o som do coração dela me encantava. Queria ouvi-lo um pouco mais, sentir o calor da pele fluindo em ondas ao redor dela e suas bochechas coradas. Acho que os deuses invejam a humanidade, eu a invejava porque até o dia em que eu a vi ela tinha a certeza de que cada segundo poderia ser o último, isso a animava a lutar e fazer valer à pena. Como seria quando não houvesse mais um fim? Como seria quando ela também fosse uma deusa?

- Deseja alguma coisa, dominus*? – a voz dela me trouxe de volta a antecâmara. Seu eu fosse um homem estaria com a boca seca, o coração acelerado e as mãos molhadas. Ela perguntava se eu desejava algo, mas ela fazia idéia da dimensão dos meus desejos?

- Quero que dance para mim. – eu respondi firme, ela me olhou nos olhos atordoada.

- Não sou uma dançarina e não há música, senhor. – foi a resposta dela. A pesar de ser polida, ela estava se negando a cumprir uma ordem.

- Eu estou ordenando que dance para mim, Athenodora. – minha voz foi incisiva. Ela estremeceu e em seguida começou a dar os primeiros passos.

Movimentos suaves como se ela imitasse a brisa, ou as folhas de uma arvore que se curvam ao sabor do vento. Movia os braços, reverencias e chamados que me lembravam labaredas de uma fogueira. O quadril seguia o ritmo marcado pelos pés descalços dela. Um rodopio e outro. Ela curvava o tronco para trás e a túnica se colava aos seios dela. Desejava tocá-la, mas um deslize poderia significar um erro muito grave, então eu teria de me contentar com o pequeno espetáculo que ela me proporcionava naquele instante.

O tecido aderia ao corpo dela, instigando minha imaginação. O aroma de flores e sangue fresco poluía o ar, me deixando tonto. Eu precisava de mais do que uma mera dança, precisava de mais do que a humanidade dela permitiria que ela entregasse. Deuses seduziam mortais e viviam romances que na maioria das vezes acaba em tragédia. Para alguém que possuía a eternidade, a tristeza uma hora era substituída por outra coisa, mas para os humanos restava apenas o sofrimento e a morte.

Athenodora nascera amaldiçoada. Nascera para ser vista e amada por um deus impiedoso, frio e insano. E o que eu sentia por ela queimava meu corpo e mente numa chama invisível. Se não fosse eu o deus, teria pena dela e de como sua inocência e pureza seriam corrompidas e roubadas até que não houvesse nada para ela se não a rendição. O calor deixaria aquele corpo, a bondade fugiria de seus olhos, a cor rosada substituída pela palidez mórbida e sublime, então ela me pertenceria para sempre.

- Pare! – eu ordenei e ela parou prontamente com respiração ofegante. Então ela se virou para me encarar nos olhos. Havia alguma insolência em sua postura agora, como se ela estivesse me desafiando ou afirmando seu orgulho. Ela permanecia em pé, ereta, como se fosse igual a mim, como se sua nobreza de espírito lhe valesse como escudo. – Retire sua roupa. – bastou uma frase e toda pose dela se desfez em uma reação de revolta e impotência – E não ouse desobedecer.

- Sem querer ser impertinente, por que me ordena isso, dominus? – ela perguntou ao se recuperar do susto. Eu lancei a ela um meio sorriso.

- Desejo vê-la melhor. – eu disse – Dizem que é uma virgem grega, como tal eu desejo ser o primeiro a por os olhos sobre teu corpo. – minha voz saiu macia – Este é o tipo de ordem que só eu posso dar a você. Entende que é minha escrava pessoal e deve me agradar?

- Sim. – a voz dela saiu tremida.

- Então faça! – uma ordem seca. Athenodora fechou os olhos com força e duas lágrimas de ódio escaparam deles rolando por sua face. Ela soltou a tira que amarrava a túnica na cintura e então desamarrou as amarras nos ombros. O tecido escorregou pelo corpo dela até que estivesse a seus pés. Ela se recusava a olhar para mim, se rosto estava corado de vergonha e as lágrimas ainda caiam. Nada mais cobria seu corpo, apenas a vergonha.

Eu a contemplei deslumbrado, sem palavras para descrever a visão diante de mim. No rosto dela toda revolta e todo orgulho ferido, ela era incapaz de se proteger do constrangimento e das ordens que eu daria a ela. Aquela era apenas a primeira e eu seria exigente.

Levantei do divã e caminhei até ela pra ver mais de perto cada contorno do corpo claro e delgado. Ela se encolheu um pouco quando eu toquei seus ombros e desci meus dedos por sua coluna exposta. O cheiro dela turvava cada canto da minha consciência, me deixando sedento e impaciente.

- Lhe agrado, dominus? – ela perguntou com voz embargada. Eu me coloquei de frente a ela e limpei as lágrimas de seus olhos.

- Muitíssimo. – respondi num sussurro – Vale cada moeda que meu irmão pagou. – ela trincou os dentes. Permiti que meus dedos deslizassem sobre a face rosada dela – Não se preocupe por hora, Athenodora. Eu não tocarei em você por enquanto, mas isso vai acontecer em breve. – ela estremeceu. – Pode se vestir e dormir, vou me retirar para o meu quarto. Tenha uma boa noite de sono. – fui para minha câmara sem olhá-la novamente. Quando fechei a porta ouvi o som do corpo dela caindo no chão e se entregando a um choro convulsivo que perdurou até que ela adormecesse.

Dominus = (do latim) senhor, mestre.

Nota da Autora: É uma fic que eu já vinha pensando há algum tempo, mas ela exige de mim um tipo de cuidado com a escrita que eu não costumo ter. Acho que deu pra perceber que minhas versões do Caius são sempre meio doentias. É assim que eu o imagino alguém que tem duas grandes paixões obsessivas, Athenodora e a lei. Ele está bem mais contido, bem mais cuidadoso do que em The White Queen, mas isso não significa que ele não será cruel. Caius é solitário, atormentado e meio descontrolado quando se vê encantado pela escrava. Aro é sínico e ardiloso como uma cobra e sua esposa não é muito melhor. Marcus e Dydime são almas boas, talvez as únicas da história.

Espero que gostem e COMENTEM!

Bjux

Bee