Capítulo 1

Mesmo ainda faltando mais de dez quilômetros para chegar ao meu destino, eu resolvi descer do ônibus lotado de militares entusiasmados por finalmente voltarem para casa. Apesar da alegria reinar nos rostos de todos os homens ali dentro, eu me sentia sufocado. Não que eu fosse contraditório aos sentimentos de contentamento. Não me entendam mal. Eu estava muito feliz em voltar para casa e rever minhas irmãs e meus pais.

O problema é que meus parceiros de missão tinham resolvido relembrar momentos da guerra justo agora e isso não me deixava confortável. Afinal, para eles a guerra consistia em abrir caminhos para os líderes dominarem novas áreas, tirando qualquer opositor do caminho não importando os meios usados. Isso pode até soar cruel, mas não era difícil matar aqueles terroristas. Ou nós atirávamos neles, ou eles atiravam em nós. Basicamente, era uma questão de sobrevivência.

O detalhe complicado disso tudo, detalhe que não afetava nenhum dos meus companheiros, era que eu, diferente deles, podia ver fantasmas. Agora imaginem o que é estar num campo de batalha com fantasmas irados te seguindo por todo lugar por ter acabado com eles. Bem, digamos apenas que não seja algo que eu queira repetir.

Agora finalmente a guerra havia acabado e eu poderia relaxar um pouco quanto a esses fantasmas inconvenientes. Tinha certeza que nenhum deles me seguiria até Monterey. Mas ainda assim eu quis descer, sem agüentar ouvir os falatórios incessantes sobre as estranhezas que aconteceram no campo de batalha. Estranhezas essas que eu sabia que eram causadas por fantasmas.

- Com licença – chamei a atenção do motorista – Pode parar aqui, por favor?

- Está se sentindo bem, Jesse? – o motorista perguntou, olhando rapidamente para mim e voltando a atenção para a estrada.

- Sim. Só quero descer. Vou fazer o resto do percurso a pé.

- Tem certeza? Parece meio deserto por aqui.

- É só Carmel, Steve. Aqui é sempre quieto assim.

Voltei para a parte de trás do ônibus enquanto o motorista encontrava um lugar para estacionar, e me despedi dos meus colegas, combinando de reencontrá-los no jantar que seria oferecido aos "heróis de guerra" no Parque Memorial dos Veteranos dentro de duas semanas. Peguei minha mochila de nylon no compartimento superior e desci do ônibus, dando um último aceno para o motorista.

Esperei o barulho do motor desaparecer para só então respirar fundo aliviado. Joguei a mochila nas costas e comecei a andar até achar o ponto que eu queria.

Apesar de não morar em Carmel, eu conhecia aquela cidade como ninguém. Era ali que estavam as melhores praias da região e era ali que eu tinha passado boa parte da minha infância e toda a minha adolescência. E tudo que eu precisava naquele instante era disso. Da praia.

Tudo bem que era noite, mas a lua estava cheia e eu já podia ver seu brilho refletido naquela imensidão negra.

Desci a encosta por onde havia algumas pedras que formavam uma espécie de escada natural e logo cheguei à areia fofa. Tirei o coturno, amarrando-o na mochila, ficando descalço e sentindo a areia que ainda estava morna em alguns pontos.

O local em que eu estava agora era totalmente deserto, sem residências ou comércios em lugar algum. Era relaxante aquele silêncio que era interrompido apenas pelo som das ondas quebrando e por uma ou outra ave noturna que passava à caça de sua presa.

Andei por mais de uma hora até finalmente chegar à parte que, durante o dia, seria mais movimentada, mas por ser quase meia noite, estava tão deserta quanto todo o resto do caminho que eu tinha feito. Mesmo já tendo andado tanto, eu não estava cansado. Pelo contrário. Me sentia leve como há muito não me sentia.

De repente, interrompendo meus pensamentos, um grito irrompeu pelo silêncio da noite. Um grito desesperado de alguém em perigo. Uma mulher.

Corri na direção do grito, jogando minha mochila de qualquer jeito na areia. Passei por cima de umas pedras negras grandes e logo me deparei com uma cena que me deixou furioso. Uma mulher estava sendo agarrada por dois homens, levando-a para dentro da água enquanto ela se debatia na tentativa de escapar.

- Soltem-na! – gritei com toda a raiva transparecendo na minha voz enquanto continuava correndo na direção do trio.

Eles apenas me olharam rindo e continuaram arrastando a mulher para dentro da água fria. A despreocupação deles me deixou ainda mais furioso do que já estava e eu intensifiquei a corrida até eles.

- Me soltem, imbecis. – ela esbravejava enquanto tentava empurrá-los para longe. – Eu vou acabar com a raça de vocês!

Aquilo seria hilário se não fosse tão terrível. Eles agora rasgavam o vestido marrom que ela usava, deixando quase completamente exposta.

Consegui chegar até eles nesse momento, entrando na água sem me preocupar em molhar o uniforme que ainda usava e desferi um soco no homem mais próximo de mim. E teria sido um momento heróico se não fosse pelo fato da minha mão não ter atingido nada sólido, encontrando apenas com o ar. E no impulso que eu tinha dado para atingi-lo, acabei perdendo o equilíbrio, atravessando também o outro homem e caindo por cima da mulher, levando-a comigo para dentro d'água.

Na minha pressa de salvá-la, eu não tinha reparado que aqueles homens brilhavam levemente na noite iluminada. Fantasmas. Droga! E eu pensando que tinha ficado livre deles.

Levantei apressado, ajudando a mulher a ficar de pé enquanto olhava ao redor a procura deles, mas não havia sinal algum.

- Merda! – a mulher exclamou, tossindo e tentando tirar os cabelos emaranhados do rosto. Eu ainda segurava sua mão para mantê-la firme no lugar e quando ela me encarou com os olhos verdes mais brilhantes que eu já tinha visto, me surpreendi ao constatar que a pessoa a minha frente não passava de uma adolescente. Não deveria ter mais que dezessete anos.

- Você está bem? – perguntei preocupado, vendo que ela não parava de tossir.

- Aham. Acho que engoli um pouco de água.

- Desculpe.

- Hein? – seu cenho franziu levemente e ela apertou um pouco mais minha mão nas suas – Está pedindo desculpas por me salvar?

- Por te derrubar na água.

- Sem problemas.

No instante que ia sugerir que saíssemos de dentro do mar, seus olhos desviaram dos meus para observar algo atrás de mim e sua expressão dizia que não era coisa boa. Mal tive tempo de olhar para trás quando senti algo muito forte me atingindo, fazendo com que eu fosse jogado longe para a parte mais funda do mar.

Consegui voltar à tona rapidamente, meu peito doendo por conta do impacto, a tempo de ver a garota sendo arrastada com menos brutalidade, mas ainda assim de forma perigosa, para o fundo do mar. Nadei até eles, mesmo sem saber o que fazer quando chegasse lá já que não teria como tocá-los, mas simplesmente não poderia deixar que eles a matassem.

Agarrei a garota, a única coisa sólida que havia ali, segurando-a por trás pela cintura tentando deixar sua cabeça para fora da água enquanto ela se debatia e chutava os dois fantasmas a sua frente.

Espera um instante. Chutava? Como não tinha reparado que essa garota não apenas estava sendo agredida pelos fantasmas, mas também os agredia? Pensei estar imaginando coisas já que era fisicamente impossível tocar em um fantasma, quando a vi agarrando os cabelos de um deles e empurrando-o para debaixo d'água. Quem era aquela garota que poderia tocar os mortos?

Aproveitando que um deles estava se afastando para preparar novo ataque, ela empurrou o outro pela barriga usando os pés, fazendo-o contorcer-se de dor e nos levando para longe com o impulso feito.

A parte onde estávamos ainda não dava pé e eu continuava segurando-a firmemente pela cintura para mantê-la a salvo.

Os dois sumiram de repente, e eu já pensava em comemorar a vitória quando senti mãos agarrando meu tornozelo e me puxando para baixo. Soltei a garota rapidamente para que ela não viesse junto comigo, mas o outro fantasma estava fazendo o mesmo com ela, puxando-a para o fundo.

Pude ver, mesmo que de forma embaçada, enquanto ela tentava se livrar do seu algoz, chutando-o onde quer que seu pé alcançasse. Por sorte, em uma das tentativas, seu pé descalço bateu no rosto do outro, quebrando o nariz dele.

Isso fez com que ela se libertasse e logo nadou até mim para fazer o mesmo com o fantasma que ainda me segurava. Mas acho que ele deve ter ficado com medo de ter o mesmo destino do amigo, porque me soltou antes mesmo que ela chegasse até nós e desapareceu ao mesmo tempo em que o outro fazia o mesmo.

Subimos juntos à superfície tomando ar, mas vi seu corpo afundar de novo. Pensei que ela ia desmaiar ou algo do tipo e me apressei a puxá-la pela cintura, mantendo-a firmemente colada ao meu corpo.

- Que foi? – ela perguntou com os olhos piscando desnorteada.

- Está tudo bem?

- Acho que sim – ela continuava a me encarar com aqueles olhos verdes brilhantes que transpareciam um misto de curiosidade e diversão, embora não soubesse o que ela poderia estar achando de engraçado naquela situação.

- Você pode tocar nos fantasmas. – não era uma pergunta e ela pareceu não se alterar com isso.

- Não sabia que tinha mediadores em Carmel. – ela comentou enquanto tirava uma mecha que tinha colado em seu rosto.

- Moro em Monterey. Estou apenas de passagem.

- Ah. Que pena. Seria legal ter alguém para poder falar abertamente sobre isso.

- Como você consegue tocar eles? – perguntei ainda curioso demais a respeito disso.

- Sou uma deslocadora. – ela explicou – Quase igual a você, com umas poucas diferenças.

- Hum... – eu já tinha ouvido falar de deslocadores, mas nunca tinha encontrado nenhum, tampouco sabia o que eles faziam. Só o que eu sabia é que deslocadores nascem com o dom, diferente dos mediadores, que adquirem com o tempo ou depois de algum acidente.

Uma onda mais forte passou por nós nesse instante, nos cobrindo completamente e ela agarrou-se ao meu pescoço. Segurei-a mais firme junto a mim e nadei até algum ponto que poderia ficar em pé.

- Consegue ficar em pé aqui? – perguntei e esperei ela deslizar pelo meu corpo para testar a profundidade.

O problema foi que a forma como ela fez isso me deixou um tanto quanto alterado. Seu corpo pequeno e quase completamente exposto pelo vestido rasgado era mais macio do que eu poderia esperar. Não que estivesse esperando algo. Tampouco tinha pensado sobre isso em algum momento. O que estou querendo dizer é que fiquei surpreso ao constatar que aquela garota poderia até ser jovem, mas seu corpo era bem desenvolvido.

"Certo Jesse. Melhor parar. Até para você mesmo isso está soando como perversão".

Mas o que eu podia fazer se a sua mão pequena agora deslizava pelo meu peito até o abdômen, por cima da roupa molhada, enquanto ela descia mais e mais. Fechei os olhos e torci para ela achar logo o fundo do mar antes que sua mão chegasse onde não deveria.

De repente ela agarrou meu casaco com força, impulsionando seu corpo de volta para cima e, num reflexo, eu voltei a segurá-la pela cintura, colando seu corpo ao meu mais uma vez.

- Está fundo. – ela murmurou com o rosto perto demais do meu, seus braços delicados envolvendo meu pescoço, ao mesmo tempo em que suas pernas faziam o mesmo na minha cintura.

"Se controla, Jesse. Ela está apenas assustada. Não confunda as coisas"

Não que eu fosse um tarado ou algo do tipo. Sempre soube me controlar muito bem perto das mulheres. Mas esse controle tinha sido um pouco abalado depois de passar dois anos no Iraque sem companhia alguma do sexo oposto.

Ainda assim consegui ser firme e andei com ela para a parte mais rasa, só parando quando a água chegou à minha cintura, sabendo que ali daria para ela ficar em pé sozinha.

- Pronto – falei quando ela não fez nenhum movimento para descer.

- Como é seu nome, soldado? – ela perguntou parecendo divertida com a situação – Ou o uniforme foi de alguma festa à fantasia?

- Jesse. E sim, o uniforme é real.

- Hum... Fiquei sabendo que os soldados que estiveram na guerra estavam voltando esse final de semana. Você é um deles, não é?

- Sim. – ela falava aquilo de um jeito que eu me senti orgulhoso de ser o que era, mas tentei não demonstrar isso. – E você, como se chama?

- Suzannah, mas todo mundo me chama de Suze.

- Acho que prefiro Suzannah.

- Como quiser, soldado. – era impressão minha ou ela estava flertando comigo? Por que ela estava me olhando daquele jeito? E por que ela estava se ajustando a mim, friccionando seu corpo no meu? – Sabia que eu sempre gostei de um homem fardado?