Insanidade Mútua

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Presente de aniversário ( muito atrasado) para Ms. Cookie.

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Primeiro vem a fumaça. Depois os olhos rubros. E, só então, a loucura.

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Anna só nota, de fato, que não estão em seu prédio, quando vê Hao entrando na garagem e acenando para o porteiro. Ela não é capaz de dizer o caminho que pegaram ou quanto tempo demoraram a chegar, mas não sente vontade de descobrir. A única coisa que deseja agora é encontrar o conforto de uma cama grande e macia no silêncio eterno do leito daqueles lençóis que ainda desconhece, mas que sabe que têm o perfume dele.

Deixa-se guiar pelas mãos quentes e firmes de Asakura no Hao até a porta do elevador. Ele não diz nenhuma palavra até que pisem dentro do apartamento e ela se sente eternamente grata por isso, apreciando o silêncio que ele lhe dedica. Dentro da cobertura, as paredes são brancas e forradas por obras de arte; infinidades delas, uma mais bela que a outra. Talvez Anna se surpreendesse um pouco mais se estivesse melhor, mas a verdade é que nada daquilo a impressiona naquele instante.

Ela não presta atenção em nada. Nem mesmo no caminho que fazem pelos corredores ou na beleza presente nestes. Quando finalmente avista a cama – bela e macia à sua espera –, Anna descalça os sapatos e deixa o corpo cair de bruços sobre esta. O perfume dele está lá. Está em todo lugar. E ela se deixa envolver por aquele aroma doce e delicado (e venenoso também) quando ele se deita ao seu lado, passando um dos braços por seus ombros. Se espera palavras de consolo – e ela não as espera – estas jamais vieram. Hao não olha em sua direção, mas Anna enxerga o brilho rubro de seus olhos captados através do reflexo do vidro. Em sua respiração, reina apenas o perfume dele. Em sua mente, apenas o olhar.

Finalmente a coragem (ou a falta de sanidade, mas é muito difícil diferenciar os dois na presença dele) faz com que encare o dono daqueles olhos tão serpentinos. Anna ergue o corpo de modo que uma das mãos fique ao lado do corpo dele e faz com que Hao Asakura também a olhe. Ele não compreende a mudança tão repentina para as atitudes dela, mas talvez ele não saiba o efeito daquele perfume e daquele olhar. É um veneno doce e embriagante do qual Anna jamais quererá se desfazer.

"Você me deseja, Hao?" A pergunta o pega desprevenido quando ela entrelaça uma das mãos às dele e usa a outra para acariciar-lhe o tórax cuidadosamente, debruçando-se sobre o rapaz. Há algo diferente nos olhos de meia-noite. Algo mais perigoso que faz um desejo ainda mais intenso – se é que isso é possível – apossar-se dele. É um desejo tão forte que o faz esquecer-se do irmão, de Ren e de todo o resto, pelo menos naquele instante.

Seus lábios permanecem entreabertos e uma resposta muda paira no ar, assim como a brisa do vento que murmura seus lamentos ao lado de fora daquele quarto. Os botões da camisa são soltos, um a um sem que ela desvie o olhar por nenhum instante. Hao não está acostumado a ser a presa, mas se sente a mais frágil das criaturas naquele instante.

"Diga para mim." Ela sussurra ao pé de seu ouvido, despindo-o de toda a sanidade – se é que ainda lhe resta alguma – que possa ter. E os olhos são tão convidativos, tão desejosos...

"E-eu..." As palavras morrem antes de deixarem seus lábios. O veneno de Anna age de maneira mais lenta. E machuca mais. "Eu desejo, Anna..." Os lábios de movem num sussurro quase inexistente que ela capta no ar. Um sorriso de vitória é sua resposta quando ela lhe toma os lábios com volúpia.

Ele talvez queira dizer algo, mas suas mãos estão ocupadas em torná-la ainda mais próxima. Quando os lábios, relutantes, se afastam buscando por ar, ele a encara com aquela surpresa que não é de seu feitio. E Anna acha isso ótimo, porque agora é só loucura, desejo e obsessão. "Talvez nós não devêssemos, você não está.."

"Shh..." Ela repousa o indicador sobre seus lábios, tendo agora as pernas coladas às laterais de seu corpo. "Eu também, Hao," Começa, inclinando-se sobre ele, até alcançar seu ouvido. "também te desejo."

E ele não resiste mais.

X

Anna acorda sentindo um calor diferente do calor do corpo de Hao. Há algo macio ao seu lado e quando ela acaricia, sente pêlos. Seus olhos se abrem subitamente e só então ela nota que não está em sua própria casa. Segura os lençóis de seda (com o perfume dele) sobre o peito nu e olha em volta. Aquele, com certeza, não é o seu quarto. E ela não tem um gato.

...

"Um gato?" Anna questiona e isso parece um pouco ridículo. Ela encara o filhote adormecido, tendo uma das sobrancelhas arqueadas. O primeiro pensamento que passa por sua mente é que, de forma alguma, Hao Asakura combina com um gato. E o segundo é por que diabos ele está deitado ao seu lado, mas ela desiste de descobrir ao escutar uma melodia vinda do corredor.

Em algum canto obscuro de sua mente, Anna sente como se já tivesse escutado aquilo antes e se obriga a ficar de pé, deixando o lençol escorrer pelo corpo agora desprotegido contra a brisa fria que vem da porta. Ela se encaminha até o guarda-roupa e o abre, vendo uma infinidade de camisas e opta por uma branca qualquer, vestindo-a antes de seguir a trilha deixada por aquela música tão inebriante.

Só então, enquanto segue a passos tétricos pelos corredores do apartamento, é que ela nota as obras de arte que decoram todo o lugar. Estão nas paredes em forma de quadros, no chão em forma de tapetes e até mesmo sobre as mesas como pequenas estatuetas ou vasos caríssimos, ela pensa. Mas sua atenção logo é desviada para o fim do corredor e ela nota que já não está mais no mesmo lugar, mas sim no segundo andar da casa.

E lá, ela o avista, sentado sobre o banco do piano, acariciando as teclas como se fossem o corpo de uma mulher (o seu corpo), mas excessivamente frágil. Algo que se quebraria a qualquer instante se a violência ou o ódio tomassem conta de seu ser. Ele está de costas, mas Anna sente que está de olhos fechados, coisa que ela não consegue fazer. Dedica esse momento a escutá-lo e a admirá-lo também, porque jamais em toda sua vida, imaginou que presenciaria tal cena. Não com ele.

E é tão bonito, pensa Anna, acompanhando os movimentos dos dedos que destoam à melodia por toda aquela sala, talvez por toda a casa, mas ela não sabe dizer. Sente como se ela ricocheteasse nas paredes e penetrasse em sua mente através dos ouvidos na sua forma mais tênue e pueril. Entrega-se àquela canção de corpo e alma, como se entrega aos braços dele sempre que se encontram.

É como se, naquele momento, Hao se fundisse à melodia e (O Demônio, ou a cobra, ou o dragão, porque você nunca decorará o que é aquela tatuagem, Anna. Nunca) formasse uma única coisa. Um único ser perfeito capaz de possuí-la com um sopro enevoado de sua canção. E somente quando a nota final atinge seus ouvidos, é que ela nota que Hao agora também a olha por cima do ombro. Os dedos ainda repousados sobre as teclas e a respiração lenta, como se ainda acompanhasse o ritmo das notas musicais que morreram com a ressoar da última tecla.

Aqueles olhos estão repletos de loucura, de insanidade e de ódio também. Anna sente-se tomada por uma estranha sensação de vertigem, frio e vazio e olha em volta, avistando um porta-retratos antes que a vista escureça e tudo se torne negro.

(E ela embarca para o mundo dos sonhos outra vez)

X

Desta vez, tudo é muito branco. Excessivamente branco. Doloridamente branco. Ela (ou eu, ou você, ou qualquer um que se atreva a penetrar neste mundo ou espaço. Tanto faz também) sente o corpo mais leve do que nunca e caminha sob aquele lençol de águas límpidas que se tornou sua visão.

Ali, escuta a canção tocada de maneira tão angelical por um demônio oculto atrás das cortinas e das máscaras de um teatro previamente planejado. É difícil para as pessoas compreenderem, mas ela sabe que se trata de um demônio, porque conhece aquele olhar. E também o sorriso.

E mesmo que queira – e que deseje – se livrar, percebe que está eternamente presa aos grilhões d'alma daquele que agora toca aquela suave canção. Aos poucos, sente uma dormência tomar conta de seu corpo, enquanto ele (que não tem rosto, nome ou significado algum) se aproxima lentamente. Mas a canção não a abandona. Continua tocando no fundo de sua mente como se quisesse que

(Você se lembre de algo. Será que não é capaz de se lembrar?)

enlouquecesse aos poucos, com o perfume da névoa que o rodeava. Cada passo dele significava uma nota ressoada no ar. Cada respiração ou cada brisa que arrastava os cabelos (longos? Curtos? Claros? Escuros?) para trás tinham um timbre diferente. E em seus olhos a eterna loucura de um ser que desconhece

(Sou eu, Anna. Você não lembra da minha voz?)

o amor. Mas de uma maneira que ela não sabe (e talvez não queira, mas isso não faz diferença alguma ali) explicar, deixa-se tomar pelo calor daqueles braços que se encaixam perfeitamente ao seu corpo. E bebe do veneno daqueles lábios como se disso dependesse a sua vida. E é doce. E ela gosta.

(Me escute, por favor...por favor..p..or..fa..)

Ele sussurra quatro palavras quentes ao pé de seu ouvido e toma-lhe os lábios novamente com a chama intensa de um insano querer que jamais vai se apagar. É a chama eterna de um não-amor que sempre reinará entre o céu e a terra. O demônio e o anjo. Ele e ela.

"Eu te desejo, Anna."

As quatro palavras que ela jamais se esquecerá.

X

E novamente se vê desperta, coberta pelo calor daqueles lençóis finos e cercada pela penumbra que reina nas paredes daquele quarto frio e vazio. Sente uma estranha sensação de embrulho no estômago quando se lembra dos sonhos e, de alguma forma, também sente o sabor dos lábios daquele demônio sobre os seus. Tudo está muito confuso, até que o cheiro adocicado de menta e nicotina paira no ar. Lentamente, ela se ergue olhando em volta e o encontra sentado sob a única poltrona do quarto. Os olhos negros se encontram com o olhar vermelho protegido por uma fina camada de fumaça.

Anna entreabre os lábios, buscando algum ar, mas encontra apenas o sabor adocicado de um veneno que não a abandonará tão cedo (e talvez nunca mais). Seus olhos se estreitam felinamente, procurando alguma resposta naquele olhar tão duro dele. "Apague isso, Hao." Diz, por fim. E ele apaga no cinzeiro, aproximando-se lentamente e expirando a fumaça em seu rosto. Anna abre a boca para praguejar algo, mas vê-se incapaz de dizer qualquer coisa quando sente os braços dele envolverem seu corpo no abraço mais caloroso (e familiar) que já sentiu. Quer dizer algo, mas sente que toda a voz e os sentidos são tomados por aquele perfume que paira no ar.

"Não faça mais isso comigo." Ouve-o sussurrar e fecha os olhos, apertando as mãos firmemente contra suas costas.

E se lembra do dono daquela voz.

X

Agora, pensa Anna, faz sentido. Os sonhos, as semelhanças e a música também. As coisas fazem muito sentido quando as peças do quebra-cabeças se colocam no lugar. E as daquele estão começando a se encaixar lentamente, como as engrenagens de um velho relógio que há muito já não funcionam.

X

"Aquele do porta-retratos ao seu lado..na sala de música..." Ela tenta ser sutil, usar as palavras certas, porque tem algo errado. Uma peça que falta, uma engrenagem falha.

"Meu irmão." Diz rapidamente, olhando-a por cima da farta mesa do café. Há um retrato de ambos pendurado sobre a parede onde estão abraçados também, mas Anna só nota quando Hao o aponta. E é evidente demais. "Por quê?"

"Está na cara." Anna toma um gole do suco, encarando a foto. Ambos sorriem, mas é muito fácil identificar quem é quem.

"É, somos gêmeos." O sorriso dele, diferente dos outros, é muito dócil e passivo e não desaparece nem mesmo quando ele morde a torrada.

Anna gira os orbes, voltando a encarar o retrato. "Se você não me dissesse, eu jamais saberia." Tudo podia ter ficado bem se a conversa tivesse sido encerrada ali, dando lugar a outro assunto. "E onde ele está?"

Uma brecha. Só uma. Os olhos castanho-rubros tomam um tom levemente acinzentado e o sorriso some vagamente. Hao segura a faca com geléia e a encara (como sangue, porque a culpa é sua, Hao-nii). Desliza-a pela torrada. "Ele está morto."

O silêncio pairando no ar e aquela fumaça invisível que o cerca, espalhando insanidade onde quer que Asakura no Hao passe. Ele ergue o olhar para ela e aquele sorriso demoníaco está lá e os dedos apertam com força a lâmina da faca, como se desejasse se ferir. Como se isso fosse amenizar (a culpa, Hao?) o fato de ele estar morto.

Anna quer dizer algo, mas as palavras somem diante da visão daqueles olhos.

X

"Tem certeza que não quer que eu te deixe em casa?" Ele pergunta, encarando-a.

"Está tudo bem, Hao. Mesmo." A loira de inclina, beijando-lhe os lábios de maneira sutil. "Eu preciso resolver algumas coisas do meu trabalho, então volto de táxi depois."

"Eu passaria para te pegar, mas preciso visitar meu amigo que está no hospital." Ele suspira, ajeitando-se sobre o banco do carro.

"Não se preocupe, está bem?" Lhe deposita outro beijo nos lábios, este mais longo por insistência dele, e depois sai. Hao vê apenas a sombra dela, enquanto se lembra de seu irmão.

X

Ele dirige de maneira tétrica na direção do escritório.

(Nee, nee, Hao-nii, nós podemos ir comprar as coisas pro Matamune esta tarde?)

Mentalmente, o percurso já está traçado em sua mente.

(Mas já deu um nome a ele, Yoh? Tudo bem, nós podemos ir depois que eu voltar do trabalho)

Junto dele, Hao relembra de todos os dados que adquiriu até agora, mas sabe que são muito poucos para os seus recursos.

(Claro que sim, ba-ka-nii! – Ele ri. – Eu não podia deixar ele sem nome, né? – Sorri daquela maneira tão infantil. – Vou ficar te esperando, promete não demorar?)

O assassino trabalhou muito bem e deixou poucas pistas. Nenhuma pegada. Nenhuma digital. Apenas a bala.

(Prometo)

Hao entra com o carro no subterrâneo e passa reto por todos, sem nem sequer cumprimentá-los. Isso não é normal de sua índole e também não é normal que ignore as perguntas quando questionam se ele se machucou.

(Mas agora a culpa é sua, porque você não me ajudou)

Ele entra no escritório e agradece à Luchist mentalmente por todos os papéis em sua mesa estarem organizados. Acende um cigarro, ignorando a ardência na mão esquerda e abre o notebook, esperando encontrar lá, novas informações. Luchist aparece poucos minutos, lhe trazendo um copo de whisky (sem gelo, por favor) e uma prancheta.

"Eles refizeram, por três vezes, o exame de balística." Luchist começa, evitando olhar diretamente para ele ou para a fumaça do cigarro. Hao bebe um gole do whisky e sente-o descer rasgando pela garganta. Ele gosta disso. "Pela bala em si e a pólvora deixada em ambos os locais, concluíram que as balas pertencem à mesma arma, mas não ao mesmo cartucho. É difícil lidar com a situação, mas os detetives também concluíram que quem atirou em Yoh, atirou de perto e ele não ofereceu resistência alguma. Não podemos saber o mesmo de Ren, já que ele foi encontrado em um local diferente ao da cena do crime."

Hao expira a fumaça no ar e termina o whisky em um único gole. Qualquer um ficaria bêbado com aquela dose, mas Hao Asakura não. Ele apenas ergue os olhos assustadoramente rubros para Luchist e o encara. "E como ele está?"

"Bem melhor, mas ainda parece fraco demais para falar. Pelo menos não falou com nenhum dos homens que eu..." A voz vai morrendo à medida que sente aquele olhar tomá-lo. A fumaça do cigarro também está mais próxima. Perigosamente mais próxima. "...mandei..."

"Ele está acordado?" Hao não se move, mas Luchist acompanha o trajeto da fumaça que chega até ele o envolve como se o outro a manipulasse ao seu bel-prazer (e isso é loucura, porque ninguém pode manipular o percurso de uma fumaça, não seja tolo).

"S-sim, mas o senhor andou tão ocupado e.."

"Há quanto tempo?" Ele pergunta, sem alterar o tom de voz. Traga o cigarro profundamente e expira a fumaça. "Quanto tempo, Luchist?"

"Uma semana..." Ele desvia o olhar. É a primeira vez em tanto tempo que vê seu patrão alterado dessa maneira. "Mas aconteceram tantas coisas, senhor Hao...e eu achei que seria melhor.."

"Uma semana!" Hao espalma as mãos contra a mesa, erguendo-se. "Eu te disse para que me mantivesse informado sobre cada respiração diferente de Tao Ren e você espera uma semana para me dizer!" Lentamente, ele se move na direção de onde Luchist está e encara o homem. Luchist se sente preso àquele olhar, preso ao medo que ele inspira com sua presença. "Eu vou sair daqui, pegar o meu carro e ir ver como Ren está. Quando eu voltar, é bom que saiba de mais algo ou eu arranco a sua língua fora para que nunca mais possa me dar recados novamente, estamos entendidos?" Hao apaga o cigarro na mão do homem, mas em nenhum instante ele ousa a alterar a expressão ou gemer de dor. Não tem esse direito.

"Sim, senhor Hao." Diz ele de maneira polida e sem ousar a erguer o olhar por um segundo sequer.

"Ótimo. Porque eu não quero ter que perder um homem de confiança tão eficiente quanto você." A conversa se encerra e Hao dirigisse à porta, deixando-a aberta quando sai. Luchist inspira o ar profundamente e apóia uma das mãos sobre a mesa. Aquela queimadura servirá de lembrança para que nunca mais desacate as ordens de seu senhor.

X

Ela massageia as têmporas, inclinando o rosto para trás. Tantas lembranças vindas num único dia não lhe trouxeram nada além de uma forte dor de cabeça. Um suspiro lhe abandona os lábios quando a empregada entra, deixando a aspirina e o copo d'água sobre a mesa. Anna não agradece, porque não é de seu feitio. Mas antes que a moça de cabelos róseos deixe a sala, ela a chama.

"Você fez os relatórios que eu pedi?" Os olhos a fulminam, mas não é proposital. É apenas típico de Anna agir assim com pessoas fracas como Tamamura Tamao.

"E-eu fiz." Ela abaixa o rosto, evita o olhar dela e aperta a bandeja com força contra o peito. "E-estão embaixo dos papéis.."

Anna passa os olhos rapidamente pela mesa e os encontra espalhados junto com outros papéis. "Claro, como eu não pude ver embaixo de todos esses papéis?" Ironia que fere. Anna não nota ou finge não notar as lágrimas nos olhos de Tamao, porque ela é fraca. E Anna não gosta de pessoas fracas. A empregada sai, encostando a porta da sala e Anna passa e repassa os olhos pelo relatório, tentando permanecer racional.

A verdade é bastante clara e lhe atinge com a força de um soco.

Provavelmente se não estivesse sentada naquele momento, teria caído de joelhos no chão.

X

As paredes do hospital são brancas e levemente tingidas por um tom amarelado que Hao associa ao cansaço e à doença que aquele local respira. Ele não notou isso das outras vezes, mas nota agora, enquanto, distraidamente, acompanha a enfermeira até o quarto onde Ren está. Ela diz que ele está muito melhor do que antes, mas que não falou absolutamente nada desde que acordou. Diz também que isso pode ser devido ao trauma do tiro, mas são coisas que Hao já soube por intermédio de Luchist e que não lhe interessam. Enquanto caminha, vê pessoas definhando lentamente em seus leitos, como as paredes que descascam, principalmente nas áreas do teto.

Cheiro de doença e morte.

Por algum motivo, isso faz com que se lembre de Yoh, apesar de nada disso combinar com ele. Yoh era uma pessoa extremamente alegre e cheia de vida e o simples pensamento de que ele está morto e de que não estará em casa para recebe-lo quando chegar, ainda assombra Hao como uma cruz que provavelmente carregará pelo resto de seus dias. Ele sente isso tão claramente quanto enxerga as olheiras embaixo de seus olhos (mas elas diminuíram um pouco desde que Anna passou a fazer parte de seus dias), formando pequenas bolsas roxas.

"..então eu acho melhor o senhor ter cuidado mesmo que ele já esteja acordado há algum tempo." Ela diz, tendo um sorriso dócil nos lábios. Hao não sabe do que ela está falando, mas reconhece aquele sorriso em qualquer lugar e sabe que ela está flertando.

"Obrigado, vou cuidar bem dele." Um sorriso polidamente falso – mas que ela jamais notará – é sua resposta antes que entre no quarto. Ren está teimosamente sentado na cama e o encara com os olhos ambarinos, como se o esperasse ali há muito tempo. Os longos cabelos azulados deixam uma trilha pela cama. "Mal-humorado como sempre. Sente-se melhor, Ren?"

O chinês o fulmina com os olhos quando Hao se senta ao seu lado. Ainda tem, no peito, a marca da bala e os curativos. Já está bem a ponto de não precisar de aparelhos para respirar, mas Hao desconfia que mal consegue se manter de pé. Obviamente, Ren é orgulhoso demais para admitir.

"Ah, a enfermeira disse mesmo que você não está falando com ninguém. Acreditam que seja um trauma, mas eu não acredito nisso vindo de você." Sorri ao que ele ergue os olhos em sua direção. "Não, não se preocupe. Eu já providenciei tudo para que você saia daqui. Sei o quanto detesta hospitais." Hao ri, erguendo-se. "Vamos?"

Chega a estender uma das mãos para ajudar Ren, mas essa é rapidamente repelida. O orgulho, é claro. O chinês se ergue lentamente do leito e sente uma breve vertigem. Se Hao não tivesse lhe amparado à queda, provavelmente teria de passar mais alguns dias ali. "Depois que você estiver melhor, poderá bancar o durão outra vez." Ele sorri de canto, passando um dos braços de Ren em torno de seu ombro a contra-gosto do outro. E é assim que eles se dirigem até o carro que os aguarda. O silêncio durante todo o caminho é quase perturbador.

X

Trinta minutos de trânsito nunca pareceram tão eternos para Hao Asakura. Ele agradece mentalmente aos deuses nos quais desacredita quando coloca os dois pés dentro de casa, acompanhado por um chinês nada feliz. Caminha com ele na direção do quarto e o deita na cama, indo encher a banheira em seguida. Demora algum tempo para voltar e vasculha no armário em busca de roupas confortáveis. Depois, volta-se para Ren.

"Depois de tantos dias naquele hospital, aposto que você mataria por um bom banho de banheira." Ele sorri, ajudando-o a se levantar e o guia até o banheiro. Sente falta dos resmungos mal-humorados de Ren, mas sabe que eles voltarão com o tempo. "Deixarei que aproveite bem o banho. Eu estarei esperando no quarto quando você quiser falar."

Ren o encara até que Hao feche a porta e suspira, apoiando ambas as mãos sobre a banheira, antes de despir-se e entrar nela para relaxar. Sua mente ainda está um pouco confusa, mas, aos poucos, os pensamentos voltam para o lugar.

X

Hao afrouxa o nó da gravata e, saudosamente, segura Matamune nos braços quando o felino lhe pede algum carinho. Senta-se com ele na poltrona da sala e sorri, acariciando-lhe a barriga. Ele pode ser um gato diferente dos demais, mas ainda assim é um gato. Hao jamais se esquecerá da fidelidade deixada por ele em todo o tempo que seu irmão lhe fez – e ainda faz (provavelmente sempre fará) – falta. Escuta-o ronronar baixinho e deixa que os pensamentos vaguem até o par de olhos negros que lhe causam aquela sensação estranha e ao mesmo tempo boa.

Ele pega o celular nas mãos e o abre, observando a única foto que possuem juntos e por muita insistência deles. Estão abraçados e Hao lhe beija carinhosamente a bochecha, olhando na direção da câmera. Talvez, pensa ele, eu mande ampliá-la depois. Ele disca então o número de Anna e, após três longos segundos, ela o atende.

"Hao? Aconteceu algo?" Ela dispara antes que ele possa dizer qualquer coisa. Ainda parece preocupada com o que aconteceu mais cedo, mas ele não está. Porque Matamune está ali.

"Não, eu só queria saber se você está mesmo bem. É que não poderei ir vê-la essa noite." Ele suspira e Anna poderia jurar que o escutou acendendo um cigarro.

"Ocupado?" A voz dela. Ele a sente um pouco distante, talvez como daquela vez em que sentiu-se da mesma maneira no hospital. Talvez um pouco mais chocada.

"Estou cuidando de um amigo por esta noite, talvez pelo resto da semana também. Ele mora em outro país, então prefiro que ele fique comigo e melhore primeiro antes de ir embora." Ele traga o cigarro, exatamente como ela prevê e sente. A fumaça enlouquecedora o cerca.

"Ah, aquele? Espero que melhore logo." Há uma breve pausa e, por um instante, Hao pensa ter ouvido um murmúrio baixo ou qualquer coisa semelhante à uma súplica.

"Está tudo bem mesmo, Anna? Acho que escutei qualquer coisa estranha. Se quiser, posso dar um jeito de ir até aí, e..."

"Não." Ela o corta. "Não se preocupe com isso, está bem? É que eu estou no trabalho e meu chefe está brigando comigo por não ter terminado os relatórios até agora."

"Entendo." Ele sorri, certo da mentira que ela conta para encobrir algo. Mas não tem problema, porque ele também é assim. "Nos falamos durante a semana?"

"Claro."

Ambos desligam ao mesmo tempo e Hao contempla Ren usar suas roupas um pouco maiores que as dele. Sorri. "Escolhi algo mais confortável pra você, mas vejo que continua muito menor do que eu."

Ele abana os ombros como quem não quer dizer nada e se senta na cama. Hao deixa Matamune no chão e pede para que o gato vá brincar, pois os adultos precisam conversar. "Conte-me, Ren." Ele diz, repousando a mão sobre a do chinês e o encara. "Conte-me o que aconteceu."

Um silêncio incômodo e duradouro toma conta dos próximos segundos (ou talvez minutos, mas Hao não faz questão de contar) nos quais trocam fagulhas através dos olhares igualmente intimidadores. Ren é o primeiro a ceder. O chinês desvia os olhos para o chão e suspira, como se buscasse algum resquício da própria voz ou um ponto de partida para a sua narração. Isso leva tempo, mas Hao não se incomoda realmente. Tudo o que ele faz é levar um cigarro aos lábios e está prestes a acendê-lo quando Tao Ren o censura com repugnância.

"Desde quando você fuma?" A voz sai um pouco falha, um pouco trêmula também. Hao nota a diferença, mas não diz nada. Apenas acende o cigarro e dá a primeira tragada, encarando o outro com uma indiferença quase palpável.

"Não sei." Hao encolhe os ombros como se a resposta fosse um argumento válido que obviamente não é o suficiente para Tao Ren. Mas é a verdade. Ele não sabe mesmo. "E não fuja da raiz do assunto." Ele afina os orbes, inclinando o corpo para frente e faz questão de expirar a fumaça sobre o rosto de Ren, de modo que o chinês, enojado, vira o rosto para o lado, tossindo um bocado.

"Você está se tornando cada dia mais insuportável com essa mania de achar que manda em todos." Os olhos ambarinos encontram os castanhos, apreciando a mudança sutil para o rubro. Uma mudança muito perigosa, diga-se de passagem. "Eu estava sendo seguido."

A fumaça paira no ar por um instante, envolvendo Hao lentamente. Ele digere essa informação aos poucos, como se saboreasse isso, mas de uma forma ruim. O som dessas palavras é o suficiente para provocar nele uma ira contida que irá se alastrar de maneira lenta, enquanto Tao Ren escolhe as melhores palavras para prosseguir com sua narrativa. "Por quem?" Finalmente pergunta, enquanto os olhos correm, acompanhando a trajetória da neblina esbranquiçada.

"Eu não sei ao certo. Acredito que eram inimigos nossos, Hao, mas eu não tive muito tempo para pensar nisso, porque eles me emboscaram." Uma das mãos desliza pelos longos cabelos azulados e os olhos correm pelo chão, como se buscasse nele as respostas para as perguntas que Hao certamente fará.

Eles.

O som dessa palavra é muito mais significativo para Hao do que inimigos nossos ou emboscaram. Porque eles significa mais de um, o que, para Hao Asakura, é um ultraje. Vários homens lutando de maneira covarde contra apenas um. Tao Ren é um homem muito capaz, pensa Hao. Porque ele não sabe apenas manusear um revólver, como também é perito em artes marciais. Então eles deveriam ser muito bons para conseguir emboscar, ou melhor, ferir Ren.

"E como conseguiram isso, Ren? Não é qualquer pessoa que consegue essa façanha." Ele ergue os olhos, tragando o cigarro novamente. O chinês encara a fumaça e sente que nela há algo muito pior que o veneno da nicotina. Há loucura. "Você foi treinado para agir como uma sombra e, que eu me lembre, não houve nenhum sobrevivente da sua última missão que pudesse desejar vingança."

"Eu sei para o que eu fui treinado, Hao. Você não precisa me lembrar." Ele estreita os olhos e nesse momento Hao nota a alteração no tom de voz dele, mesmo que seja mínima. "Acontece que eu não estava preparado para uma emboscada daquelas. Eles me pegaram desprevenido, mas eu consegui fugir. O problema foi ela."

Ela.

Não ela, mas ela. Hao sente a entonação mais forte, a ênfase na palavra. O sabor ao pronunciá-la. Novamente essa ela está aparecendo nos seus planos e isso apenas serve para solidificar ainda mais suas suspeitas de que a pessoa que atirou em Tao Ren é a mesma que atirou em seu irmão. Vendo que Hao não diz nada, ele prossegue:

"Eu soube da morte de Yoh." Ao contrário dos outros, ele não é mais cauteloso para lidar com esse assunto. Tao Ren era, antes de conhecer o próprio Hao, um amigo de Yoh. Foi, aliás, através deste que soube da existência de Asakura no Hao. O trabalho foi apenas conseqüência daquilo que ocorreu nos tempos do colégio. "Eu não tive tempo para vir ao enterro porque estava resolvendo alguns negócios na China."

"Fez bem em não vir. A família estava em peso por lá e foi realmente entediante." Hao diz de uma maneira supérflua e por um momento é quase como se estivesse falando sozinho, porque encara apenas um ponto fixo na parede. Um nada.

"E você foi?" Ele pergunta, apesar de já imaginar a resposta. É óbvio demais.

"Não de verdade. Não gosto de enterros, mas vi de longe a cerimônia." Traga o cigarro uma última vez, antes de apagá-lo no cinzeiro colocado ao lado da cama. Desta vez expira a fumaça para cima, voltando os olhos para o chinês. Ren sabe que aquele assunto o incomoda. "Também não faz o meu estilo ir a lugares fúnebres. Quem gosta de lidar com cadáveres é a sua família, não eu."

"Muito engraçado, Hao." Ele diz ao ver o sorrisinho provocante nos lábios do outro. "O fato é que eu estava vindo para cá, mas fui interceptado antes de chegar até o esconderijo. Na verdade, ela me interceptou." Ren suspira como se as palavras seguintes custassem a vir.

"Prossiga, Ren." Os olhos de Hao Asakura brilham naquele tom rubro perigoso, naquele tom de quem quer e precisa saber. O tom que causa medo, lamúria, desespero.

"Essa pessoa de quem estou falando, entra na vida dos outros e as conquista lentamente, Hao. Ela é uma verdadeira cobra com a lábia de um anjo. A frieza que possui é apenas mais uma de suas mascaras para conseguir aquilo que realmente deseja. Você se surpreenderia." Ele faz uma pausa muito breve, porque, apesar dos anos, aquele olhar faminto de Asakura no Hao ainda o incomoda. E, durante essa pausa, Hao pensa que essas características não são tão distantes assim da própria realidade. Ele pensa e repensa em todos aqueles que já foram mortos (todos, que todos? Você não consegue se lembrar dos rostos ou dos motivos. Mas eram motivos importantes. Se eram, por que você se esqueceu, Hao?) por seu impiedoso julgamento. Quando volta à própria realidade, nota que Tao Ren não o encara. "Ela é um demônio de asas ocultas."

"Pelo qual você se deixou enganar." Hao afina os orbes de maneira perigosa e, mesmo que a fumaça não esteja mais presente, a insanidade está ali, naquele olhar. E no sorriso que se formará na frase seguinte ou na próxima.

"Você diz isso, porque não sabe de quem estou falando. O nome dela é..."

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E agora ele corre freneticamente contra o tempo, ignorando os sinais fechados e os perigos das ruas movimentadas. Escolheu a moto porque assim acabaria com a angústia daquela revelação o mais rápido possível. Sente-se sufocado por aquele sentimento de incerteza que jamais fez parte de sua vida e, nos próximos doze minutos e trinta e seis segundos, entrega-a nas mãos de um Deus no qual não acredita, até que chega em seu destino.

(O nome dela é Anna. Kyouyama Anna)

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"Eu estou saindo." Avisa, erguendo-se da cadeira. Os acontecimentos de todo aquele dia ainda mexem com seus pensamentos, mas não quer prolongar mais isso. Antes de ir, passa no banheiro e lava as mãos, como se aquilo fosse alguma espécie de ritual de purificação.

X

As mãos se movem habilmente revirando todas as gavetas, todos os cômodos em busca de algo que ele realmente espera não existir. Não foi tão difícil entrar ali e, mesmo que fosse, ele faria questão de derrubar o que quer que se colocasse em seu caminho. Porque, por tanto tempo buscou o culpado pelo assassino de seu irmão e agora essa pessoa podia estar tão perto que chegava a doer. Hao Asakura não pensou que pudesse se sentir assim. Sequer pensou que pudesse sentir algo tão forte por alguém.

(Olhos negros)

Algumas pessoas duvidariam, diriam que era ironia. Porque alguém como ele não é capaz de sentir. Hao não se importa com o julgamento das pessoas, porque está acostumado a passar por isso. É freqüente em sua família e no local de trabalho. Mas é assim que deve ser. Só que ele não consegue pensar em nada disso enquanto as mãos tocam os papéis, espalhando-os pelo chão. Um cômodo, outro, mais um, mais um, mais um.

(E fumaça e loucura e dor e ódio e amor)

E ele encontra o fim da linha.

(Não necessariamente nessa ordem)

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Sua mão se ergue em um aceno tétrico para o porteiro e seus pés se arrastam em direção ao elevador, quando escuta a voz dele saudá-la em um cumprimento caloroso. Ela não está realmente no clima de suportar isso e está disposta a ignorar, mas ele a segue.

"Patroa Anna, olá! Acho que não me ouviu lá da porta." Ele diz, sustentando um sorriso cheio de dentes brancos. Um sorriso distante de ser como o dele. "O patrão chegou aqui há pouco tempo. Disse que esqueceu algo lá em cima. Ele tem vindo muito aqui, não é?" O sorriso é maldoso e cheio de malícia, mas Anna não nota.

"Eu ouvi, mas é que eu realmente não estou no..." Ela para. E ouve. E não compreende. "...quem está aqui?"

X

Está ali. Está em suas mãos. Ele sente. A textura, o peso, as marcas invisíveis idênticas às que ele carrega, a frieza do metal. Nenhum desses detalhes passa despercebido aos olhos tão bem treinados de Asakura no Hao. Mesmo que agora sua vista esteja desfocada e suas mãos tremam levemente, os detalhes não escapam. Ele busca inspirar o ar, mas é realmente difícil. É difícil fazer qualquer coisa, na verdade.

"Hao?" Uma voz o chama de longe. "O que foi que acont..."

E as palavras morrem no ar.

X

A arma.

Está nas mãos dele.

Ela vê isso muito antes dele se virar para encara-la, porque essa segunda parte demora um pouco. Hao Asakura está de cabeça baixa e segura firmemente o revólver nas mãos. O aperta, como se quisesse sentir a textura real. Como se não quisesse crer que aquilo existe de verdade.

Mas existe.

E está nas suas mãos.

"Hao, eu..." Ela tenta buscar as palavras, mas como explicar-se diante daquilo? Como explicar?

"Eu não gosto de pensar que acreditei em você, Anna." As palavras saem secas, mas sua voz é vaga, distante como daquela vez do hospital.

"Você não compreende." Hesitante, dá um passo na direção dele. "Se eu te dissesse a verdade, você não.."

"Suportaria?" O olhar dele é de desprezo. Apenas um olhar de canto, mas o suficiente para fazê-la parar. Anna desvia os olhos (negros) e suspira.

"Não entenderia." Corrige, voltando a encará-lo, mesmo que seja uma tarefa demasiado dolorosa.

"O que, Anna? O que eu não entenderia?" Finalmente, ele se vira na sua direção. Os olhos dele estão cheios daquele brilho rubro. Loucura transbordando de todos os lados, de todas as formas possíveis. Quimeras se formando a partir do nada. "Que você guarda segredos de mim? Que esconde verdades incontestáveis?"

"Todos tem segredos, Hao. O meu está nas suas mãos." Ela suspira.

O rubro se torna mais intenso, mais insano (se é que isso é possível) e por um instante, Anna pensa que ele usará a arma para atirar, mas ele apenas a espalma com força contra a própria mão.

"A verdade está sete palmos abaixo do chão!" Ele estoura, encarando-a agora. A arma em suas mãos é perigosa, mas nada se compara ao olhar demoníaco e insano.

O silêncio que paira no ar pelos próximos segundos tem uma pressão esmagadora. É como ter todo o ar comprimido em um único ponto ínfimo. É loucura penetrando pelos poros do corpo. Então, como se finalmente compreendesse o que Hao quis dizer, seus olhos se arregalam.

E as peças se encaixam quase perfeitamente.

X

"Você não está insinuando que..." Ela fica muda antes que as palavras encerrem o período. Diante daquela visão, seus argumentos se estilhaçam. "Hao, você.."

A distância entre eles é coberta com três passos e ele agarra seus ombros com força. A arma ainda está em suas mãos. "Me diga a verdade, Anna."

Trêmulas, trêmulas e frias. Desespero na voz.

(E fumaça invisível no ar)

"Hao, eu não o matei. Eu devia eliminar um Asakura, mas não era ele." A voz some gradativamente e ela desvia o olhar.

(Fumaça demais)

"Eu não conseguia lembrar, porque na época não pareceu importante. Acho que quis esquecer disso, esquecer de Yoh." Sua voz é demasiado fraca e até um pouco trêmula. Ela não consegue encarar as lágrimas de Asakura no Hao. "Porque eu devia matar alguém da família dele, entende?" Os olhos negros. Dois pontos sem luz perdidos no infinito das ondas do mar.

"Eu deveria matar você."

Negros, escuros, sem vida.

(A culpa é sua, nii-san)

Hao Asakura nunca se sentiu tão fraco quanto agora.

X

Matar você.

Os sons dessas palavras pesam. Tanto que ele larga a arma. Tanto que as mãos (frias, mas não deveriam estar frias, porque não são frias, Hao. E isso é ir contra a natureza) deslizam pelos braços dela até penderem ao lado do próprio corpo.

"Por que nunca me disse...?" A voz dele é apenas um murmúrio no ar.

"Porque eu não me lembrava, entende?" Agora é ela quem se aproxima, quem tenta lhe tocar, mas...hesita. "Eu não queria recordar dele, porque isso significaria ter que ir atrás de você. Então eu quis apagar tudo da minha mente, quis esquecer. Mas quando eu te vi tocando piano, foi como se tudo tivesse voltado. E a foto de vocês dois juntos..Yoh costumava tocar para mim." Finalmente, ela toca seu rosto, limpando o caminho de lágrimas formado ali. "Eu não sabia de nada até hoje, Hao. Nem mesmo sabia quem você era. Mas agora eu sei. Eu lembro."

Então quem eu sou?, ele quer perguntar. No entanto, todas as forças morrem diante da cena redesenhada de seu sonho. Tudo aquilo fora feito apenas com o intuito de atingi-lo. De acabar consigo. A morte de Yoh era um fardo que deveria ser seu. Ele ainda deveria estar vivo e sorrindo. Mas está morto.

(Por sua culpa)

"..Minha culpa." Ele diz, baixando o rosto. A franja lhe cobre os olhos, mas ele não consegue pensar em nada. Sua mente está tomada por uma névoa branca. Tudo o leva a crer que é ela. Tudo. A arma, as balas idênticas, o fato de ela trabalhar com isso e conhecer seu irmão. Mas há uma falha. Algo que não se encaixa. "Mas se não foi você, então quem...?"

E uma bala disparada.

Mais uma.

X

É rápido. Rápido demais para ele poder raciocinar. Rápido demais para poder fazer qualquer coisa. Apenas um estalo surdo, líquido vermelho e mãos trêmulas.

(Negro desfocado)

Os olhos dela se arregalaram e Hao aparta sua queda, segurando-lhe o corpo firmemente.

"Anna...Anna!" Hao se agacha lentamente, segurando o corpo dela, impedindo que caia no chão. "Você...por que...por que fez isso, Ren?!"

O cano da arma ainda está quente e a fumaça sai dele lentamente.

(Mais, mais loucura)

"Ela ia acabar te matando, Hao." Ele diz, ainda empunhando o revolver.

"Anna.." Ele torna a abaixar o olhar e sente os olhos arderem. Mais lágrimas. "Vai ficar tudo bem, eu.." Um dedo mudo o silencia.

"Está tudo bem, Hao.." A voz não é mais do que um mero sussurro. "Escute.."

Ele se inclina brevemente para frente, encarando-a. Castanhos. Os olhos dele estão castanhos. "Você não pode fazer isso comigo.."

"Ren..." Ela murmura o nome do chinês e tosse um bocado de sangue, manchando a roupa impecavelmente branca. "..não acha estranho que ele esteja aqui agora?"

"Não a escute, Hao. Ela é uma víbora traiçoeira. Temos que sair daqui." Diz o chinês.

"Cale a boca." Aquele olhar. Vermelho escorrendo como o sangue dos lábios dela. Vermelho que causa medo, terror. Mas tudo se dissipa quando os olhos se voltam para Anna.

"Ele...ele tr..trab..alhou comigo.." Mais tosse, mais sangue espalhando-se pelas vestes dela. Desespero pelos olhos dele.

"Eu já entendi, você não precisa se esfor.." Outra vez, aquele dedo mudo lhe cala os lábios. Mas tudo passa a fazer sentido agora que ela fala.

"Você vai mesmo dar ouvidos a ela?" Os olhos ambarinos o encaram com a intensidade de um olhar ferino. "Ela está te envenenando, Hao!"

"Eu já te disse para ficar calado." O tom de voz dele é sério. E não importa que Tao Ren esteja com a arma. É Hao quem detém o poder da palavra final.

Anna inspira o ar lentamente, como se as palavras estivessem presas em sua garganta e não quisessem sair. "Ele..ele t..om..ou...a mi..nh..a...mis..são.." Os olhos dela. Os pontos negros.

(Desfocados, sem brilho, opacos)

Fecham-se lentamente. Mas ela ainda tem forças para um murmúrio mudo. Apenas um que Hao compreende muito bem e responde igualmente. E vê um sorriso apagado nos lábios dela. Os beija cuidadosamente, limpando-os do sangue, antes de erguer-se com o corpo dela nos braços. Deita-a na cama e, só então, vira-se na direção de Tao Ren.

Rubros.

Assustadoramente rubros. Porque agora tudo faz sentido. A arma nas mãos dele, os projéteis muito semelhantes e forma peculiar de matar. É claro que Hao não enxergou nada disso, porque não esperava uma traição como essa. Eles trabalhavam juntos e ninguém soube que Anna desistiu. Então agora faz muito sentido. Sentido demais.

O silêncio paira sobre eles dois de forma incômoda e assustadora. Tao Ren ainda segura o revólver, mas este está baixo. A batalha está novamente nos olhares, mas Hao Asakura é muito mais forte do que ele nesse aspecto. Muito mais.

"Por que, Ren?" Mas Hao é o primeiro a ceder. O chinês ainda enxerga o caminho de lágrimas em seu rosto e acha que aquilo não combina. Hao Asakura não é propício a choros. E nem a perguntas desse tipo. Ele simplesmente arranca as respostas, mesmo que tenha que usar os dentes para isso. Entretanto, naquele momento, ele parece frágil aos olhos de Ren apesar do ódio que emana. O tom de sua pergunta é quase de súplica, como se ocultasse sua verdadeira natureza por trás de uma máscara ainda mais pesada que a da falsidade com a qual está mais habituado.

O chinês suspira. Se aquilo é mais um dos jogos de Asakura no Hao, ele cai perfeitamente na armadilha. "Ela acabaria te matando uma hora ou outra, Hao. Eu apenas impedi que isso acontecesse. Era a missão dela, afinal."

"Era a sua missão agora, Ren." Ele rebate, encarando-o. E de repente, toda aquela fragilidade que Ren enxergava parece se dissipar bem diante dos seus olhos. "Ela não tinha que morrer..." Um passo em sua direção. Apenas um. "..e nem o meu irmão."

E silêncio.

Um silêncio quase-quase assassino. Os lábios de Tao Ren estão entreabertos, mas apenas um sopro mudo de insanidade paira no ar. E ele sorri. Não como quem debocha, mas sim como uma criança que comete uma travessura em dia de festa. "Eu tive que escolher entre ele ou você, Hao. Se eu o matasse, poderia ganhar algum tempo. Vocês são gêmeos afinal. E, apesar de toda a repercussão da sua família na mídia, a morte dele foi abafada, não é?".

Ódio, ódio e mais ódio. Cada uma das palavras de Ren parece penetrar e consumir sua alma, mergulhando-a em um mar negro (como os olhos dela) infinito. "E por que vocês teimam em esconder as coisas de mim? Por que é que não me contou isso, Ren? Acha que eu não poderia lidar com isso? Acha que já não fui ameaçado de morte antes?" Mais um passo em sua direção e agora a distância entre os dois é pouco maior que meio metro. "Acha que me tornei chefe da Yakuza à toa, Ren? Você acha?"

Tao Ren sente o ímpeto de levantar a arma contra ele. Contra seu 'chefe'. No entanto, a pressão que o olhar de Hao Asakura faz sobre ele, é o suficiente para que não consiga se mover ou respirar. Mas é assim com todos que o desafiam. E o fim é previsível quando ele vê Hao crescer em sua direção. Mas ele ainda arruma forças para lutar contra aquilo. E levanta a arma. Hao para de caminhar, encarando-o.

"Você não compreende." Ele diz. As mãos estão trêmulas e um pouco suadas, mas ele não recua nem mesmo diante do vislumbre dos olhos rubros de Hao. "Eu não podia dizer nada a você. Eu tinha que resolver isso sozinho e em pouco tempo. Você pode pensar que não, mas matar Yoh foi a escolha mais difícil que eu já fiz na minha vida."

"E agora vai completar o seu serviço?" A voz dele está repleta de sarcasmo. E ele sorri, o desafiando. "Foi uma boa jogada, Ren. Você realmente conseguiu me enganar com esse jogo. Faz sentido também. A culpa caiu como uma luva sobre Anna e..no fim, você vai acabar se safando, não é? Basta que consiga sair daqui ileso para alcançar a fama de ter a cabeça do chefe da Yakuza nas suas mãos."

Os olhos de Ren se afinam numa linha tênue de âmbar. Agora a arma está firme em suas mãos, mas ele sorri. "Você não é mesmo capaz de entender, não é? Falou que eu fui enganado, mas quem se apaixonou por Anna foi você. Posso compreender seu ódio por Yoh, mas por ela? Achei que você fosse mais racional do que isso." Ele destrava o cão da arma, sem fugir ao olhar de Hao desta vez.

"E eu era." Ele diz, sem se mover. "Mas eu não me apaixonei por Anna, Ren. Eu a amei."

Eu a amei, Ren escuta em sua mente. Uma vez, duas, quinhentas e setenta e oito milhões de vezes antes que o peso delas caia sobre suas costas. Os olhos permanecem ligeiramente arregalados por um instante, mas ele logo relaxa, crispando os lábios em um sorriso satisfatório. Talvez ele queira dizer algo a respeito disso. Talvez queira rir ou conversar mais com Hao. Mas não tem sentido. Porque ele sabe que, se deixá-lo vivo agora, as conseqüências serão catastróficas. Porque Hao Asakura jamais deixa de se vingar seja de quem for. E faltou pouco, muito pouco para que seu plano desse certo. Muito pouco para que Anna fosse a culpada.

Os segundos se arrastam como uma eternidade enquanto ele repassa mentalmente todas as fases de seu plano, buscando uma única falha sem jamais encontrá-la. Mas ela está ali, bem diante de seus olhos. Camuflada na neutralidade daquele olhar implacável. A loucura de Asakura no Hao.

"Quais são as suas últimas palavras?"

O revolver lentamente é erguido, enquanto Hao leva uma das mãos ao bolso. Ele sorri daquele jeito tão sarcástico de quem tem a vitória nas mãos apesar de tudo. O sorriso de quem sabe que já venceu.

"Vai pro inferno."

E a arma dispara.

(Rios de sangue para todo o lado e insanidade em forma de sorriso)

X

As ondas quebram de maneira violenta contra as rochas. Ele está sentado sobre o terno e tem o queixo apoiado sobre os joelhos enquanto observa, concentrado, o movimento de vai e vem que elas fazem, como se o chamassem para fazer parte daquela dança. Ele sorri e acaricia lentamente a nuca de seu eterno companheiro, jogando ao mar três flores: uma rosa vermelha (que representa o amor), um lírio branco (que pode significar pureza ou morte) e uma singela Sakura (que floresce apenas na primavera).

Ele se levanta, batendo a poeira da roupa e estende uma das mãos de modo que o felino sobe rapidamente por seu braço, acomodando-se em seu colo. Uma vez mais, ele olha na direção do mar, antes de partir. Porque está sozinho agora. Lentamente, tira um cigarro do bolso e o acende, dando de ombros. Talvez esse seja seu fardo, afinal. Mas ele não se importa, porque já está acostumado. Traga o cigarro lentamente e expira uma névoa branca que lhe arde um pouco os olhos.

"Vamos pra casa, Mata-chan."

O gato mia baixinho e se acomoda nos braços do dono. Eles não olham para trás, mas o demônio em suas costas fita o oceano uma última vez.

(Negro como os olhos dela)

O mar nunca mais foi o mesmo.

E ele nunca mais voltou.

X

(Loucura, loucura, fumaça. Insanidade Mútua.)

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N/A:

52 páginas, 22.267 palavras, 624 parágrafos e 2.414 linhas. Olhando desse ponto de vista, a fic parece monstruosa e eu acho que é mesmo. Em todos os aspectos, desde o começo até o fim. Pura loucura e insanidade acompanhadas por uma pitada de sarcasmo e um ponto de fumaça. A verdade é que eu me empenhei profundamente para fazer essa fic, mas eu jamais teria conseguido sozinha.

Agradeço, primeiramente, à pp. Ela não sabe, mas ela que deu o título dessa fic pra mim. Também agradeço por ela e a Nana terem acompanhado a fanfic. Agradeço a todos que leram e mandaram reviews e amaldiçoo todos os que leram e não mandaram. Porra, o que custa deixar a sua opinião a despeito de cada capítulo. O fandom já é morto, colaborem comigo D:

Tia Cookie, eu dei o meu sangue nessa fanfic e realmente espero que te agrade do começo ao fim. Acho que deu para se surpreender um pouco, não é? No fim, a fic não é tão parecida assim com Nove Sorrisos. Só um pouco. Você merece muito mais do que isso, mas, por hora, considero esse o meu melhor trabalho. Feliz aniversário.

Sua sobrinha que te ama,

Anne.

Que tal reviews para me dizer o que acharam do final?