Milo não conseguia dormir, não na mesma cama que Camus. Ficou boa parte da noite observando seu peito subir e descer com o ar que respirava, seus cabelos grudados no rosto com suor, com lágrimas. Ele se agitava muito durante o sono.

Tocou sua face como fazia antes, quando moravam juntos. Aproximou-se ainda mais dele e o abraçou, tentando consolá-lo do pesadelo que tinha.

"Dor'minha pequena, não vale a pena despertar..."

Por que ainda amava Camus?

"Eu vou sair por aí afora, atrás da Aurora mais serena"

Ele suspirou e se mexeu em seus braços, se acomodando. Milo ainda lembrava-se de tudo.

Ainda lembrava como Camus surgiu uma bela tarde como aluno particular da sua mãe; como ele e Aiolia ficaram fascinados pelo garoto um ano mais velho e aprontaram todas com ele...

Como Camus namorou Athina e de como a irmã chegou em casa um dia chorando, gritando que Camus terminara com ela e a culpa era dele, Milo.

Mas, como naquela casa tudo era culpa de Milo, ele não levara as palavras da irmã a sério. Até seus dezesseis anos, quando Camus o agarrou no banheiro da escola.

"...Não vale a pena despertar."

O ruído de um automóvel esmagando o cascalho da calçada de Afrodite interrompeu a música e o fio das lembranças do grego. Semi-ergueu seu corpo sobre os cotovelos, precisava ver o que estava havendo. Afinal, aquilo não era Nova Iorque, era uma cidade pequena em Ohio. Não era tão comum assim um carro no meio da madrugada.

"Milo, deixa para lá." Só então percebeu que Camus estava acordado, provavelmente, há algum tempo. "Não deve ser nada demais."

Sentou de vez, irritado consigo mesmo.

"Claro que não." Rosnou. "Você ficou maluco? Temos Hyoga aqui e um lunático nos perseguindo. Quer que eu faça o quê?"

Camus riu baixinho, esfregando os olhos com as duas mãos.

"Se eu te respondesse sinceramente a essa pergunta, você me daria um soco. Então vou dizer simplesmente que quero que você volte a dormir, para estar disposto amanhã e poder revezar na direção comigo."

Soltou um suspiro irritado e levantou-se, agarrando um roupão que Afrodite separara para ele em cima de uma cadeira. Vestiu-se e pôs a mão na maçaneta, ia sair quando ouviu vozes.

"Não precisa se preocupar, amore. Eu botei um sonífero bem forte na sopa do menino, vai ser fácil de levá-lo embora. Já estou vestida e as malas estão prontas. Quando os dois acordarem, não vai ter mais ninguém aqui. Com o tempo, o garoto se acostuma, podemos até fazer uma família." Era a voz de Afrodite, Milo gelou. Sua intuição tinha razão, Hyoga corria mesmo perigo.

Ouviu uma risada e sentiu um cheiro forte de tabaco agredir suas narinas, vindo do outro lado da porta.

"Família? Do que está falando, Albert?" Passos leves, Afrodite corria.

"Por que está me chamando de Albert? Você nunca me chamou de Albert, Gianni. Ei, olhe para mim quando eu estiver falando com você. Para mim, carcamano. Lembra? Seu angelo. Olha para mim, Gianni." Um barulho brusco, seco. Um corpo caiu no chão.

"Não ouse me tocar de novo, sua bicha imunda. Sabe, eu sabia que você ainda ia me ser útil... Bem útil, Albert. Mas você não pode achar que eu vou te levar comigo. Ou melhor, não devia nem ter acreditado que eu não ia machucar o menino ou você. Ou aqueles dois idiotas que estão dormindo no seu quarto."

Milo sentiu lágrimas escorrendo por seu rosto. Sentiu ódio de si mesmo. Por que não conseguia se mover?

"Camus, Camus... Camus acorde, por favor. Camus..." Sua voz saiu trêmula, acuada. O ruivo abriu os olhos em alerta ao ouvir aquele tom.

"O que é, Milo?" Sussurrou, abrindo a gaveta e pegando alguma coisa que Milo não identificou. "O que foi? Por que está assustado?"

"Ele achou a gente, Camus. Afrodite nos entregou. Nós vamos morrer. Eu não quero morrer, Camus. O Hyoga tá tão pequeno, tá dormindo no quarto dele... O Hyoga, Camus. Ele nos achou, Camus. Eu não quero morrer..." O choro foi ficando mais descontrolado, sentia-se como uma criancinha apavorada.

Surpreendeu-se quando o corpo esguio do outro homem o abraçou por trás e uma de suas mãos fez carinho em seus cabelos. Os lábios macios beijaram o topo de sua cabeça.

"Milo, eu nunca vou deixar ninguém machucar você. Nunca. Eu prometi, lembra?" O loiro assentiu baixinho, ainda agarrando a maçaneta com a mão direita.

"Presta bem atenção no que eu vou te dizer agora, ma pomme. Eu vou sair, fazer um estardalhaço e distrair o cara. Você vai para o quarto do Hyoga, pega o moleque e salta pela janela. O carro está na garagem, que fica ao lado da janela do quarto dele. As portas estão abertas e a chave está na ignição. Quando eu disser 'já', você abre a porta e corre, entendeu? Não olhe para trás."

"Mas, Camus, e você? O que vai acontecer com você? E se você morrer, se você morrer, Camus? O que vai ser de mim? O que vai ser de mim sem você, Camus?" Ele tremia ainda mais do que sua voz.

Sentiu a mão forte subir pelas suas costas e puxá-lo pela nuca, beijando-o. Milo abraçou-o com força, chorando compulsivamente.

"Por que você tinha que ser tão teimoso e demorar sete anos para admitir isso, meu amor? Por que, Milo? A gente podia ter sido tão mais feliz..." As testas coladas, os soluços baixinhos de Milo e a voz de Camus criavam uma bolha, isolando os gritos vindos da sala. "Eu vou sempre estar com você. E o Hyoga precisa mais de você do que de mim. Nunca esqueça que eu te amei minha vida inteira e vou te amar ainda depois, seja no Céu, seja no Inferno. Vou estar te esperando do outro lado, quando você morrer velhinho, Milo. Não chore, nós dois sabíamos que eu não tinha como durar." Deu um selinho rápido nele. "JÁ!"

Automaticamente, Milo abriu a porta e saiu correndo, sem parar para ver Afrodite sangrando com um tiro no braço ou o italiano enfurecido que se virou para ele gritando. Sem parar para ver Camus pulando em cima dele com um canivete nas mãos ou a arma disparando.

Só parou quando viu Hyoga na sua frente, sonolento, agarrado a um ursinho, com os olhos arregalados de pavor. Parou e virou na direção apontada pelo dedinho em riste, pelos olhos que transbordavam.

"Não... NÃO!" Virou e, no mesmo impulso, voltou-se para o menino, esquecendo aquela visão do inferno. Seu sacrifício não seria em vão. Aiolia confiava nele.

Camus caiu, a mão agarrando o peito e o sangue escorrendo entre os dedos, pela blusa. Mas caiu sorrindo, pois Máscara ganiu ao perceber o canivete espetado em sua coxa esquerda.

Afrodite gritou a plenos pulmões e a maquiagem borrou ainda mais, cobrindo os hematomas dos socos de rímel. Cobrindo todas as marcas com aquele sentimento louco que os humanos decidiram chamar de amor.

Máscara ia correr atrás de Milo quando ouviu as sirenes, algum dos vizinhos chamara a polícia ao ouvir os primeiros gritos. Praguejou em italiano baixinho e virou-se para a mulher ferida, caída no chão.

"Você vem comigo, seu depravado incompetente." Puxou-a pelos cabelos para que ficasse de pé e foi arrastando-a pela cintura. Ainda na porta, virou-se e sorriu para Milo, que já se ajoelhara ao lado de Camus e chorava. De certa forma, podia-se dizer que conseguira sua vingança.

/

Hyoga abraçou Milo por trás quando a porta bateu.

"Milo, ele vai acordar, não vai? Ele vai ficar bem, não vai? Não é minha culpa, é? Porque eu prometi que ia ser bonzinho... Eu prometi que ia onde você quisesse, Milo. Não precisava fazer isso, não precisava machucar o Camus, não foi culpa dele a gente ter vindo para cá. Não foi culpa dele, Milo."

Milo limpou o rosto com as duas mãos, rezando para encontrar as forças para sustentar Hyoga que não tinha sequer para suportar a si mesmo. Virou-se e abraçou o menino de volta.

"Não, Hyoga. Não ouse pensar isso. Não foi sua culpa, meu querido. Claro que não... Foi culpa daquele maluco, daquele Máscara da Morte, Hyoga."

"Mas então foi minha culpa sim! Ele tava atrás de vocês por minha causa! É tudo minha culpa, eu sabia!" O molequinho mordia o ursinho com força.

"Não, Hyoga. Claro que não. O Camus sempre foi um homem muito nobre, muito bravo. Ele sabe que todos nós amamos ele, mas não quer que soframos com a sua morte. Ele fez isso por nós, Hyoga, e o amor dele tem que nos dar forças. Ainda tenho que te deixar na Califórnia, depois de cuidar do enterro dele."

"Eu não posso ficar com você? Não podemos esquecer essa história?"

"Não, Hyoga. Não pode. Seu pai vai te buscar lá e é para lá que você tem que ir, seu lugar não é comigo. Não é seguro." E eu não sei se vou aguentar continuar vivendo, Hyoga. Não depois disso.

Inconscientemente, a mão trêmula do homem loiro buscou os cabelos da mesma cor do sangue, espalhados pelo seu colo.

Ouviu um grunhido e esse não partiu nem de Hyoga nem dele.

Olhou para baixo.

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Camus sentiu o ombro arder com o tiro, sentiu seu sangue escorrendo e desmaiou por um breve segundo, precisava dormir, descansar, não havia comido, mal havia dormido.

Milo gritava; mas que merda, ele não tinha lhe dito para ir embora?

Abrir os olhos era difícil e exaustivo. Ele só queria que Milo parasse de gritar.

Quanta gritaria, já estava lhe dando dor de cabeça. Ele havia acabado de levar um tiro, não precisava de uma dor de cabeça também.

E Hyoga chorando. Como aqueles gregos eram contraditórios, primeiro ele o chamava de maricas por dizer que o amava e depois chorava por sua suposta morte. Queria gritar para todos calarem a boca e chamarem uma ambulância de uma vez, mas só o ato de respirar já lhe dava muito trabalho.

"...Ainda tenho que te deixar na Califórnia, depois de cuidar do enterro dele." A voz do seu grego amado veio abafada como se estivesse ele embaixo d'água.

Dessa vez tinha que falar, aquilo já era demais.

"Cala a boca, Milo, para de falar merda. Eu ainda tô aqui, ainda tô vivo, porra" era o que ele queria dizer, mas tudo o que saiu foi um resmungo ininteligível, que apenas serviu para indicar a Milo que estava vivo.

"Camus?" Chamou, tocando em seu rosto com carinho.

Ok, pelo menos ele entendeu o recado. Fez um esforço supremo e abriu um pouco os olhos. Era muito estranho ver o rosto banhado de lágrimas de Milo de cabeça para baixo. Tudo era muito estranho naquele estado em que se encontrava.

Mas não seria daquela vez que o tirariam de perto do seu pedaço de mau-caminho. Da sua maçã.

Subitamente Milo começou a rir. E foi assim que foi encontrado quando o policial entrou na casa, rindo loucamente com aquele francês ensanguentado no colo.

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O policial era Pedro Stevens, um filho de uma empregada brasileira que se casou com um gringo e foi morar nos Estados Unidos. Não exatamente um conto de fadas, pelo menos seu pai o aceitou.

Pedro gostava de baseball e era amigo de todo mundo, inclusive de Afrodite e dos hippies da casa em frente. Aliás, foi por causa de Shaka que ficou conhecido na região como Aldebaran, estrela que regia seu signo.

Entrou na casa à frente de seus subordinados, ocupando quase que o portal inteiro com seu corpo extremamente alto e largo. Logo atrás do grupo, seguia-os um velhinho enrugado e baixinho segurando-se em uma bengala.

"Eu sabia que aquele depravado só ia trazer problemas!" Gritava, com seu forte sotaque oriental.

Um policial virou-se para ele, suspirando de irritação:

"Certo, senhor Dohko. O senhor já expressou sua opinião. Agora, poderia deixar a polícia fazer o seu trabalho, por favor?" O velho saiu, irritado com toda a perturbação.

Nesse meio tempo, Pedro abaixou-se ao lado de Camus e sentiu seu pulso.

"Ele ainda está vivo, alguém chame o dr. Panasa e uma ambulância, por favor!"

Milo estava quieto, olhando tudo. Só queria saber como aquela história ia acabar.

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"Então, eu realmente não posso ficar com vocês, Milo?" O menino ainda insistia naquela história, mesmo em frente à porta do orfanato e com Aiolos atrás dele, abraçado ao seu padre espanhol.

O ruivo no banco do carona riu, apertando seu curativo contra o ombro doído.

"Ande moleque, seja homem. Pare de choramingar e entre logo aí. Não pense nesse lugar como um orfanato, pense como... uma colônia de férias e deixe os adultos em paz." Concluiu a frase batendo a porta do carro na cara de Hyoga. "Vamos, Milo. Faz essa banheira voar."

"Camus!" Exclamou o grego, escandalizado. Ainda não acreditava como o francês era insensível. Mesmo depois de todos aqueles anos.

"Vam'bora, Milo. Acabei de quase morrer, tem muita coisa que quero fazer e nenhuma delas é perder tempo com choramingas de criança."

"Pare de ser ridículo, o dr. Panasa disse que o seu tiro foi de raspão e você só sangrou tanto porque pegou uma área irrigada. Você nunca esteve perto de morrer, francês."

"É isso mesmo, Milo. Dê mais crédito ao velhinho Shion lá que dorme no formol do que em mim. Pronuncie minha nacionalidade como se fosse um xingamento. É assim que as pessoas fazem os relacionamentos durarem."

"Pare de ser escandaloso, essa é a minha função, e deixe eu me despedir direito do meu afilha..." Olhou pela janela, cortando Camus, mas Hyoga não estava mais perto.

Conversava pouco mais adiante com uma menina de longos cabelos loiros e muito pálida. Freya, conforme Shura lhes informou.

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Enquanto casas e montanhas passavam voando, Milo ajeitou seus óculos escuros melhor e virou-se para encarar seu eterno amante.

"Acha que ele vai ficar bem?"

Camus riu, penteando com a mão boa os cabelos que se bagunçaram com o vento.

"Ele eu não sei. Nós, com certeza."

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Nota da Autora:

Bem, chegou ao fim, meus amores.

Espero que tenham gostado e aguardo seus comentários. Quero saber o que acharam de cada coisa, amo ouvir suas opiniões.

Sim, eu consegui inserir TODOS os douradinhos na história! (se vangloriando) Yey!

Por favor, não julguem mal Afrodite. Nesse capítulo, espero que tenha ficado claro, mas el era só uma pessoa apaixonada loucamente pelo Máscara, que foi completamente manipulad por esse. :D

Agradecimentos à Lune Kuruta, por acompanhar e criticar sem medo (de mim); à Athena de Áries, minha eterna beta-reader (como sempre, eu sou muito apressada e acabo publicando antes que você me reenvie o texto, AA _) e a todos os que leram e gostaram, comentando ou não.

Beijos,

Nii