Aonde você está indo?

Eu sabia que ia ter um colapso.

Parece melodramático dizer, mas eu sabia.

O aperto constante no peito, as crises de suor noturnas, o bolo permanente que trago entalado na minha garganta desde a catástrofe.

Alguém pode dizer lá vai a rainha do drama, a Maria do Bairro encarnada. Mas isso sobre o colapso eu digo da forma mais fria e contida possível, sem nenhum exagero ou tentativa de causar compaixão, é sério. Alinhando os fatos é mais do que visível a construção gradual do ocorrido.

Meu pai morreu no começo do ano passado. Foi pescar com meu irmão, passou mal e caiu do píer dentro do rio. Mathew pulou na água, tirou papai de lá, fez os primeiros socorros rudimentares que aprendemos na escola, mas foi em vão. Infarto fulminante.

Logo após o ocorrido cada um de nós tentou lidar com a perda da melhor forma que pôde, mamãe começou a participar de concursos de jardinagens, ficava rodeada de orquídeas premiadas e plantas tropicais que exigiam muito de sua atenção, Mathew começou a frequentar a igreja católica do nosso bairro, Marie, minha irmã mais nova, vivia em festas regadas a álcool e drogas e eu... eu fiquei em casa ouvindo os discos favoritos de papai e deprimida demais para tomar alguma atitude. Isolados em nosso sofrimento, cada um de nós fazia o possível para entorpecer a dor da perda.

Então Marie ficou grávida, o que eu, particularmente, acho que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Minha irmã estava sem rumo, vivia chapada e no momento em que soube que estava grávida tudo mudou, sua gravidez foi um choque, mas fez mamãe acordar de sua negação e eu da minha apatia. Mathew voltou seus olhos para nós novamente e entendeu que ele não tinha culpa, havia sido uma fatalidade.

As gêmeas nasceram prematuras, mas são as duas coisinhas mais lindas em que já coloquei os olhos. Devo dizer que graças aos bons genes da nossa família, pois Norton, o pai e agora marido de Marie, não é dos caras mais bem apanhados.

No final do fatídico ano, na ceia de natal, quando tudo parecia mais calmo, Mathew anunciou, ao badalar da meia noite, que havia encontrado sua vocação: servir a Deus. Lembro distintamente de ter engasgado com o vinho e cuspido tudo sobre a mesa manchando a toalha branca irreparavelmente, enquanto ele dizia com os olhos cheio de um fulgor extasiado que ia entrar prum seminário e pretendia se tornar padre.

Tudo bem, isso é lindo, isso é um chamado divino e quem sou eu, além de sua irmã, sangue do seu sangue, para contestar essa decisão, mas o fato dele ter sido ateu durante quase toda sua adolescência me parece relevante.

Marie ter casado e ido morar em outro lugar já havia sido bastante doloroso, sem Mathew agora a casa parecia menor e extremamente silenciosa. Sem saber o que fazer comigo mesma arrumei um emprego, durante o verão trabalhei num acampamento infantil, falava com mamãe todos os dias e ela, em nenhum momento, deixou transparecer o que estava acontecendo.
Quando voltei para casa o golpe de misericórdia, minha mãe estava noiva. Não faziam nem dois anos da morte de papai e minha mãe estava noiva!
Em um de seus concursos conheceu Henri, dono de uma vinícola no sul da França e apreciador de orquídeas e bonsais. Cheio de tatuagens, membro de uma seita mística e frequentador de praias de nudismo.

Uma pedrada atrás da outra.

Claro, amo as minhas sobrinhas e aceitei o fato do meu irmão ser um homem de Deus e da minha mãe ter se apaixonado de novo, mas, com tudo isso, mês passado tive uma síncope. Acontece que desde a morte do meu pai eu não consigo deixar de ter medo. Medo de morrer, medo de viver, medo de estar fazendo tudo errado. Medo de estar me perdendo e perdendo minha família, parece que todo mundo conseguiu superar, menos eu. Todos seguiram com suas vidas, até meu pai, no além, deve estar se ocupando com atividades celestiais e eu estou aqui, sem rumo. Sem ter com quem conversar ou pra onde ir acabei tendo um ataque de pânico, seguido de desmaio durante o exame que prestava para entrar para a faculdade.

Acordei no hospital onde fui diagnosticada com desidratação, estafa e síndrome do pânico.

Não tenho síndrome do pânico. Tenho apenas a perspectiva real de que... não tenho perspectivas, não sei para onde ir e a única certeza é a morte.

Okay, falando assim pareço realmente estar em pânico, mas não estou. Quer dizer, não me sinto em pânico, sinto-me desanimada, acuada e tremendamente infeliz, é só.

Há duas semanas, minha mãe se sentou comigo e me disse que ela e seu namorado, Henri, pretendem se casar. Me perguntou, sutil e amorosamente, se eu não gostaria de ir viajar por uns tempos, arejar a cabeça, ver coisas novas e me descobrir como pessoa. Mas sei que a verdade é que não me quer aqui como um urubu pousado em sua sorte, agourando sua nova e brilhante felicidade.

-Lene- meu irmão disse quando liguei para ele com a voz embargada e trêmula- mamãe não aguenta mais te ver assim. Eu sei que você se sente sem rumo, mas tenha um pouco de fé.

Fé? Em quê?

Mas acontece que viajar é caro, sem emprego e dependendo de minha mãe, que está no momento completamente focada em seu novo casamento, não me restam muitas possibilidades. Au revoir estudar história da arte na França, arriverderci me entupir de macarrão e sorvete na Itália...

Ela mencionou uma prima irlandesa que mora em Cork, perto de Dublin. Essa prima tem um hostel e está precisando de ajuda, eu poderia trabalhar e adquirir alguma experiência, disse minha mãe.

Bem, juntar dinheiro e conseguir alguma perspectiva parecem duas coisas maravilhosas.

Mamãe comprou as passagens. Passagens, fico feliz em dizer. O que significa que espera que eu volte e que na verdade não está tentando me manter longe.

Estou no aeroporto esperando o avião, enquanto tenho essas reminiscências dos últimos acontecimentos. Minha mãe chora contidamente e me lança olhares sub-reptícios, enquanto Henri aperta sua mão distraidamente. Meu irmão ligou e me mandou ir com Deus e ter juízo. Mas não muito, recomendou Marie, me abraçando enquanto as gêmeas, uma em cada braço babam em toda minha blusa, e vovó me manda flertar com rapazes bonitos, vovó é uma sirigaita.

Embalada em abraços, recomendações e 1/3 de rivotril entrei no avião, com um pouco de ânsia e o coração na mão.

Sim, talvez seja essa a resposta, deixar meu coração livre, sem amarras ou proteções. Viver, sem medo, esse pequeno tempo que me foi concedido. Me descobrir como pessoa.

-Viva- meu irmão falou- sem medo. Não deixe as coisas que aconteceram e nem aquelas que ainda estão por acontecer te acorrentarem. Amo você.

Sem correntes, sem amarras, à deriva. Aonde você está indo? Pode ser que me perguntem. Minha resposta será: Não sei.

Olho pela janela e Londres parece uma miniatura lá embaixo, quando passamos o véu cinzento que cobre quase permanentemente essa parte do mundo eu não consigo evitar sorrir, pois, apesar das nuvens, o céu continua sendo incrivelmente azul.