Primeiras Impressões

O Anel de Möbius

Apenas uma palavra. Foi só isso que Near disse.

Na verdade—sejamos justos. Duas. Mas o obrigado veio muito baixo para ser notado, e só o adeus foi ouvido.

Já Mello, disse menos ainda. Mello não disse nada. Mello retorceu os lábios num sorriso esgarçado, comprido, como se todo o sentimento não coubesse na elasticidade da boca. Mello puxou uma barra de chocolate do bolso e começou a comê-la. Mello acompanhou com os olhos o carro de L sumir no fim da rua, mas não acenou nenhuma vez.

Então Roger saiu murmurando alguma coisa sobre café da manhã, e que eles fizessem o que bem entendessem. Near acenou vagamente com a cabeça. Mello olhou pra ele. E só então falou.

"Eu vou ganhar essa, Near. Espere pra ver."

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"L deixou."

"O quê?"

"Deixou. Pôs eu e Near pra perseguir o assassino."

"Sem querer ser estraga prazeres, mas... Isso não é meio perigoso?"

"Não, Matt, seu idiota, L já descobriu quem é. Só quer testar nossas capacidades."

"Sei. Puxa, isso é tão... uau. É a chance que você sempre quis. E quando a gente começa?"

"Hoje, acho, se bem que Roger não vai nos deixar faltar na aula para—espera aí. Como assim a gente?"

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Talvez o passo de Near estivesse um pouco mais rápido que o de costume. Talvez seu corpo estivesse um pouco menos mole. Talvez seu olhar estivesse um pouco menos ausente. Pela primeira vez em muito tempo, ele estava animado.

Aquilo era um jogo. Near gostava de jogos.

Bateu na porta do vice-diretor suavemente como sempre, apenas de modo audível o bastante para não passar em branco, e ouviu um "Entre".

Roger estava sentado em sua cadeira, massageando as têmporas, e baixou os olhos depois de constatar quem era. "Ah, olá, Near," Cumprimentou-o com desânimo e, Near não deixou de notar, uma bem-disfarçada ponta de irritação. "o que foi?"

"A autópsia," Ele esclareceu de modo bem breve. "presumo que L tenha deixado-a com o senhor."

"Ah, sim. Claro." Roger remexeu em alguns papéis sobre a mesa, separando-os como Moisés fez com o mar vermelho. Pegou um em especial e estendeu-o. "Aqui. Pegue. Ah, estou tão cansado."

Near pegou o documento e esperou que Roger continuasse a falar, com educação.

"Como é que uma coisa dessas foi acontecer?" Ele enterrou a cabeça nas mãos. "Tem um assassino à solta nesse orfanato..."

"L disse que não temos com o que nos preocupar. Ele não vai cometer mais nenhum crime." Near enrolou uma das mechas do cabelo com os dedos, e seu tom saiu menos reconfortante do que ele pretendia. Bem menos.

"Como ele pode saber de uma coisa dessas?"

"Não sei ainda, mas L nunca nos deu qualquer motivo para não confiarmos nele."

Havia algo no olhar de Near. Não como fogo, nunca como fogo, mas como água. Água se infiltrando em cada canto, contornando cada obstáculo. Água que fará quantas curvas forem necessárias, quantos desvios aparecerem, mas que há de chegar ao mar.

Roger achou que fosse se afogar.

Então, ele entendeu uma coisa. Embora não demonstrasse jamais, a lealdade de Near para com L era tão canina e ferrenha quanto a de Mello. E ele também pretendia ganhar aquele jogo custasse o que custasse.

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Near analisou cuidadosamente qualquer coisa sobre aquela folha de papel branca por mais de uma hora. Leu e releu cuidadosamente, gravando cada pequeno detalhe em sua mente. Um HD duas vezes maior que o de qualquer computador.

Em seguida, ele pegou sua pilha de baralhos, acumulada ao longo dos anos, e começou a fazer castelos de cartas.

(bala pertencente a uma arma de pequeno porte)

Havia uma certa beleza em castelos de cartas. Se você olhasse os de Near de perto, perceberia que eles eram mais do que um hobby ou um mecanismo para ajudá-lo a pensar. Eram arte.

Ele juntava cartas que combinavam, assim como, na vida, pessoas que combinam se juntam.

(tiro dado a menos de um metro de distância)

Valete de paus e ás de ouros.

(não há outras lesões)

Dama de copas e rei de espadas.

(horário provável da morte: entre as 5 am e 7 am do dia 20 de fevereiro de 2004)

Três de espadas.

(assassino à direita da vítima)

Dois de ouros e cinco de espadas.

(não é uma autópsia muito surpreendente)

Seis de paus e nove de ouros.

(os motivos mais prováveis do crime:)

Ás de ouros.

(dinheiro,)

Ás de espadas.

(vingança,)

Ás de copas.

(ciúmes.)

Então, de repente, uma porta se abriu e o aquário de cartas de Near estava destruído, e ele teve meio segundo para pensar em quantas vidas já haviam sido destruídas só com uma porta abrindo, como seu castelo de cartas fora.

Isso antes de levantar os olhos e encontrar Matt parado a porta.

"Opa. Ah. Quer dizer—desculpa." Foi o que ele disse, coçando a nuca com culpa descontraída. "Eu não sabia que você estava aqui dentro."

"Certo." Near assentiu. "O que está fazendo aqui?"

"Não sei bem. Mello está há tanto tempo olhando a cena do crime que eu fiquei entediado, e as pilhas do meu game boy acabaram. Aí eu decidi andar por aí, sei lá, passar por lugares onde nunca vou, meio aleatoriamente—tenho certeza que tem um verbo pra isso..."

"Vagar."

"É. Pode ser."

"Certo."

A oportunidade perfeita para Matt ir embora sem ser deseducado surgiu. Mas, ao invés disso, ele tossiu baixinho e ficou por ali, na porta. Quando transcorreram cinco segundos de silêncio, disse: "Quer ajuda pra remontar o castelo?"

"Não, obrigado."

"Você estava pensando no caso, não é?"

Near começou a enrolar uma mecha de cabelo. "Estava."

"É, eu imaginei." Matt alisou a frente de sua camiseta listrada de preto e branco, e Near pensou em quantas camisetas naquele mesmo formato ele tinha. Matt gostava de listras. Alguns faziam piada e diziam que ele usava sempre a mesma camiseta, e Matt respondia me poupa o trabalho de escolher roupas, mas Near conseguia ver diferenças. A costura na barra. O cumprimento das mangas. A largura das listras.

"O que você quer?"

"Nada, acho." Deu de ombros. "Na verdade, quero saber o que você pensa do caso. Eu ainda acho tudo isso tão surreal."

"L diz que o assassino não oferece perigo a ninguém mais. Este fato sozinho já nos fornece algumas pistas." Near recomeçou a remontar o castelo enquanto falava. Dama de copas e rei de espadas. "Foi um assassinato cometido por um motivo muito específico, não num ímpeto. Preciso conferir se Morgue tinha um testamento."

"Você acha que era herança?"

"Aproximadamente trinta por cento de chance, assim como ciúmes e vingança."

"Ainda sobram dez por cento."

"É a margem de erro."

"Claro," Matt jogou a cabeça para trás e riu. Ele tinha o tipo de risada larga que ocupava todo o ambiente. "faz sentido. Vocês dois são tão engraçados. Você pensa tanto antes de agir, e Mello faz a primeira coisa que lhe ocorre."

"Branco e preto." Near repetiu a analogia a cores que já tinha ouvido tantas pessoas fazerem sobre eles dois.

"Pois é. Mas a maioria de nós prefere enxergar a coisas em tons de cinza." Fez um desleixado sinal de continência. "Bom, parece que você ainda quer pensar mais um pouco. Falou, Near. Boa sorte."

"Certo."

Matt saiu, e Near sabia que ele não contaria nada do que tinham conversado a Mello, assim como não lhe contara nada do que Mello estava fazendo. No final, ele só se importava com a diversão, sem assumir complexos lados ideológicos.

Near era branco, Mello era preto. Mas Matt se enganava se pensava que era um tom de cinza.

Matt era listrado.

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A porta na frente da qual os três param diz 17 Wolpher Morgue.

O primeiro perguntou "O que você está fazendo aqui?"

O segundo não disse nada.

O terceiro revirou os olhos como quem prevê a confusão.

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"Francamente, quantos anos vocês têm, mesmo?" Matt assumiu sua posição favorita na cadeira rotatória: as costas apoiadas na mesa, os pés sobre o espaldar da cadeira.

Ele previra que isso iria acontecer, é claro. Enquanto Near se concentrava na autópsia, Mello recolhera todas os provas da cena do crime para análise. E agora não queriam trocar informações.

"Eu não tenho nada a declarar." Disse Mello, subindo na cama e vendo a altura da janela. "Será que atiraram nele lá de baixo? Talvez o impacto fosse o bastante para que ele caísse para o outro lado..."

Ele começou a imitar a torção do corpo para ver a verossimilhança, quando percebeu que Near estava sorrindo. De fato, aquele garoto albino tinha muita sorte da arma dele estar no andar debaixo, sob o travesseiro.

"Você sabe, não sabe?"

"Havia algumas coisas interessantes da autópsia."

Normalmente Near não fazia isso. Não provocava diretamente. Na verdade, ele não teria problema algum em compartilhar com Mello todos os detalhes da autópsia, mas não o faria até ter certeza de que também teria acesso às pistas.

"O que você veio fazer aqui, afinal?" Perguntou Mello, testando o trinco da porta.

"Vim ver as possíveis rotas de fuga." Near se levantou e debruçou-se sobre o peitoril da janela. "A única parece ser a janela. Como é muito alta, o assassino deve ser alguém jovem..."

Houve um silêncio. Estava começando a entardecer e as coisas ficavam naquela espécie de meia luz que tornava tudo mais difícil de ver. Matt decidiu que era hora de intervir.

"Ok, escutem, parem com isso." Ele disse, como quem fala com duas crianças. Quanto à idade, Matt era o do meio, mas em questão de maturidade parecia ser décadas mais velho. Ele nunca se metia nessas pequenas disputas. Mas, é claro, aqueles videogames pareciam tudo, menos adultos. "Vocês não vão conseguir resolver o caso assim. Ou os dois trabalham juntos, ou o segredo de quem matou Wolpher Morgue se vai com o L!"

"Trabalhar juntos!" Mello enfiou as mãos nos bolsos, exasperado. "L nos deu o caso para testar nossas capacidades. Se trabalharmos juntos, qual o sentido?"

"Calma lá, trabalhar juntos só quer dizer que não vão ficar mantendo segredinhos um do outro." Revirou os olhos por trás das lentes amarelas dos goggles. "Quem descobrir o assassino primeiro, ganha. Voilà."

"Isso nunca vai dar certo!"

Near enrolava uma mecha de cabelo continuamente, assistindo o calvário de Mello, que provavelmente preferia se vestir de mulher e dançar a hula do que admitir que precisava de ajuda.

"Não sei se você já reparou, Matt, mas eu e o Near não somos exatamente amiguinhos." Continuou Mello, quase cuspindo.

"E daí?" Matt deu de ombros. Em seguida, sorriu. "Não é maravilhoso? Você vai usar Near friamente para atingir seus objetivos! Ah, esse é o meu bad boy."

"... Da próxima vez que falar qualquer coisa desse tipo, serão os seus dentes por aquela janela."

"Certo, certo, falemos sério então." Matt girou um pouco a cadeira e cruzou os braços atrás da cabeça. "Vocês devem ter mais ou menos uma semana pra resolver isso antes que a polícia comece a se envolver. Talvez menos. Temos que trabalhar mais ou menos rápido. Eu não estou pedindo para se abraçarem e cantarem Amigo Estou Aqui, mas pelo menos não ficarem tentando passar a perna um no outro."

Mello suspirou e passou a mão pela sua franja irregular. Chocolate. Precisava de chocolate. Não podia passar por esse momento terrível sem chocolate. Planejava guardá-lo para mais tarde, mas enfiou as mãos num dos vários bolsos da calça e puxou uma barra pela metade.

Mordeu. Ah, bem melhor.

"Ok, Near," Ele virou devagar, fazendo um esforço enorme para falar cada palavra. "eu recolhi todas as provas, e te mostro se você me der a autópsia."

Houve um momento de silêncio.

"Não me diga que está hesitando, Near." Havia uma nota, muito bem escondida, de desespero na voz de Mello. Dava a Near essa sensação boa, de uma espécie de poder, pois todo o orgulho de Mello desmoronaria se ele recusasse. "Near!"

A pausa foi, talvez, longa demais. Mas, por fim, os cantos dos lábios de Near se curvaram naquele quase sorriso característico e ele inclinou a cabeça. Olhando-o assim, você poderia pensar que ele parecia fraco demais, meigo demais para estar no meio de tudo aquilo. Uma borboleta em meio ao caos.

"Quando começamos?"

A borboleta que, ao bater as asas, causava furacões do outro lado do mundo.

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A/N: Olá, queridos.

Bom, eu só pretendia postar este quando o terceiro estivesse pronto. E o terceiro está no meio. Provavelmente só vai ter quatro capítulos.

Ah, todos os títulos dos capítulos são uma referência nerd 8D acerte todas e você ganhará um prêmio. Hm... eu só não sei qual é, ainda. Acho que nosso belo ganhador poderá escolher. (Na verdade, o título da fic também é uma referência nerd: Primeiras Impressões = PI = 3,14. Isso mesmo, aquela coisa que você usa pra calcular a área e o perímero do círculo.)

(Tá, não foi por isso que eu escolhi o título, mas a Anne percebeu e é uma sacada nerd legal. Ou não.)

Enfim, eu gostaria muito de saber opiniões. Os suspeitos só serão introduzidos no próximo capítulo, mas acho que as coisas estão começando a tomar forma. Ah, e eu agradeço à Anne, decoy-b, Debby-Chan, Nanase Kei, e Raayy. You rock!

Ah... e a Raayy perguntou: O Mello vai ganhar por que você odeia o Near, ou você vai destruir um pouco mais do ego do Mello? O que me faz perceber que sou uma pessoa horrível, porque eu seria capaz de fazer ambos. /shot/ Opiniões a respeito?