Entardecer

capítulo 1

"O sol se punha lentamente no horizonte, deixando o lugar num tom alaranjado

"O sol se punha lentamente no horizonte, deixando o lugar num tom alaranjado. O fim de tarde majestoso, o vento frio de outono, as folhas secas caídas no chão... Cenário perfeito para um momento ocioso. Cenário perfeito para um momento especial..."
- Momento especial? O que eu estou pensando? Na minha vida há apenas momentos de esforço, estudo, competição, solidão...-falou sem emoção.
O rapaz loiro deitado na grama virou a cabeça num ângulo de cento e oitenta graus e viu a mansão do orfanato imponente atrás de si.
Sorriu docemente. O orfanato que o tinha acolhido. O orfanato que tinha dado um lar à ele. O orfanato que dava suporte pra seguir a sua vida. Era grato por ter sido acolhido num lugar tão especial como aquele. Ali era a sua casa, aquelas pessoas velhas, que ele às vezes destratava, eram seus protetores...Ele estava grato...
- Nossa...como estou nostálgico hoje...- murmurou pra si mesmo.
Com as mãos apoiando o peso de sua cabeça respirou fundo e continuou fitando o céu colorido. O vento atrevido jogou um punhado de folhas marrons pra cima dele, fazendo-o praguejar e levantar-se. Maior não podia ser sua surpresa ao ver que num lugar, não muito longe, uma outra pessoa fazia o mesmo que ele...
-Near...
O que aquele esquisito está fazendo fora da casa? Ele nunca saia... Por mais que lhe insistissem, ele não largava os seus brinquedos inúteis... Ele nunca saia da proteção das paredes do casarão.
Mello ficou chocado ao ver que Near mostrava emoção: ele contemplava o céu. Uma linha tênue e convexa curvava os lábios do garoto, dando-lhe uma expressão de satisfação.
O céu? Então o céu conseguia-lhe arrancar alguma emoção? Depois de tudo que Mello fez pra chamar sua atenção, fazê-lo reagir, fazê-lo corar, irritar, xingar... Tudo em vão.. Tudo inútil... E agora ali estava ele, novamente, sozinho, independente, sentindo prazer e contentamento no céu vermelho de fim de tarde... Near era tão independente, tão seguro, tão auto-suficiente...
Mello naquele momento viu nele algo que jamais pensou em ver: intensidade.
Como sempre fora incapaz de controlar suas emoções, levantou-se e caminhou a passos lentos em direção aquela figura alva, destacando-se graciosamente na grama outonal. Os olhos de Mello só podiam estar lhe pregando uma peça... Ali estava o candidato a suceder L entregue as coisas fáceis e simples da vida... Não havia nada entre Near e a imensidão do céu... Não havia enigmas complexos ou desafios, não havia segredos a serem desvendados nem estudos exaustivos. Era apenas a vida. A vida correndo pelas veias do garoto, a vida pulsando ao redor deles...
-A vida pulsando ao nosso redor... – sussurrou como uma prece.
Parou a um passo de distância do garoto que durante todos esses anos tentou esboçar uma emoção.
-Oi Mello.

Oi Mello? Como assim? o.ô Near o estava cumprimentando? Near nunca falava nada, mesmo quando era insultado, mesmo quando era instigado a reagir, mesmo quando era confrontado das piores maneiras possíveis por Mello. Ele sempre se mantinha imóvel e impassível.
-Near...o que você está fazendo aqui fora? – falou no seu tom ríspido de sempre, ocultando a surpresa de ter recebido um 'oi'.
Silêncio.
Near permaneceu num silêncio melodioso. Seus olhos de um azul-acinzentado continuavam fixos.
Bufando por ter sido ignorando completamente, o loiro tira uma barra de chocolate do bolso e começa a desembrulhar.
- Near!, eu ti fiz uma pergunta...- cuspiu as palavras com ainda mais agressividade.
-Mello, por favor, grite comigo mais tarde. Agora eu estou ocupado. Será se você é capaz de fazer isso? Ao menos uma vez, é capaz de controlar suas emoções?
Uma onda elétrica cruzou com violência o corpo de Mello fazendo-o congelar. Mas que diabos estava acontecendo? Ele sinceramente não espera uma resposta de Near, ainda mais uma resposta dessas... Já tinha formulado mentalmente os insultos que despejaria em cima do garoto de cabelos brancos... E agora, mais uma vez, Near o surpreendeu.
Recuperando-se do choque da resposta-desafio de Near, Mello olha pra baixo e repara que Near lentamente fecha os olhos, apreciando a brisa que acariciava sua face.
-Não tem jeito então...-disse sentando-se ao lado do garoto- Vou ter que aceitar esse seu desafio infantil...-mordeu a barra de chocolates- você sabe que eu ajo pela impulsividade... Não sei, e nem quero saber, controlar minhas emoções... Ainda mais perto de você, que faz meu sangue ferver de tanta raiva e ódio que sinto... Mas aceito o desafio.
Near ainda de olhos fechados deixa uma risada fraca rasgar seus lábios.
- Que? De que esta rindo? Near! Seu idiota! Esta me fazendo de bobo é? – gritou irritado levantando-se com um salto. – Você é um infantil mesmo... Sempre tão arrogante... E do que estava rindo? Hein Near!? Near!
Lentamente os olhos de garoto se abrem. Um suspiro cansado saiu dos lábios rosados. Mais uma vez os dois foram atingidos pelo vento que esfriava a cada momento.
- É, o sol já se pôs...- Murmura se levantando também
- Que? Near, desgraçado, não me ignore! Estou falando com você! Do que estava rindo? Só pode ter sido da minha cara...
-Sim.
-Maldito! E ainda assume assim? Sem o menor constrangimento?! Você não pode ser normal Near... Eu não sei por que perco o meu tempo com você, seu...
-Mello... – A voz cansada de Near novamente pronunciando seu nome fez com que Mello se calasse instantaneamente. Os dois se olharam fixamente e a estrutura de Mello tremeu com aquele olhar. Near deu um passo pra frente e tocou a mão de Mello, segurando-a- Vê Mello? Eu sou real. Eu sou humano. Eu tenho carne. Eu tenho ossos. Eu tenho todo um sistema que trabalha para que me manter vivo – Soltou a mão de Mello, olhando agora sem nenhuma expressão... – E eu não vou facilitar as coisas pra você e dizer porque eu ri no momento que você disse "Ainda mais perto de você, que faz meu sangue ferver de tanta raiva e ódio que sinto".
Com isso, Near olhou pra mansão e caminhou-se pra lá com passos lentos e seguros, deixando pra trás um boquiaberto Mello. Near tinha-o deixado pra trás? Sempre era Mello quem rompia os contatos... Sempre era Mello que virava as costas e saia depois de ter chutado seus legos e brinquedos. Era sempre Mello que tinha o domínio da situação...
'Maldito! Quem ele pensa que é? Primeiro pede pra eu ficar quieto. Depois ri da minha cara... Desgraçado! Eu vou mostrar pra ele quem manda aqui!'
Com passos firmes, o jovem se dirige para a mansão e busca pelo garoto que o tirara do sério. Iria quebrar a cara de Near. Fazê-lo se arrepender de tê-lo insultado. Queria ver o sangue manchando a cara pálida e sem vida daquele pirralho maldito...
Buscou-o por todos os aposentos inclusive no quarto do garoto. Não o encontrando, rumou para o seu próprio quarto. Abriu a porta abruptamente fazendo Matt quase cair, numa tentativa frustrada de apagar o cigarro.
- Cara, que susto – falou Matt se levantando e arrumando os óculos- Pensei que fosse o Roger ou algum professor... Se me pegam fumando eu to frito...- Com isso apagou o cigarro. Olhou pra cara de Mello.
-shiiii...quê que houve? Cê tá com uma cara péssima...- comentou com um sorriso debochado.
Aquele maldito do Near sumiu!
-Ótimo! Agora você é o número um! Celebre!
Mello foi pra cima dele e agarrou-o pelo colarinho.
-Matt, seu maldito!
O sorriso de Matt permaneceu escancarado. Arqueando a sobrancelha esquerda Matt diz- calma aí cara! Não precisa ficar assim, ele vai voltar logo...
Mello joga Matt na cama e ele rola pro chão de tanto ri.
-Seu idiota- vociferou.
-Ué? Pensei que era o que você queria ouvir, já que você também se enfureceu de eu ter dito pra você fazer festa...- falou fingindo inocência.
Mello bufando passou a mão nos cabelos e foi buscar uma barra de chocolates na gaveta. Dando uma mordida generosa ele olha pra Matt com olhar fuzilador.
- Eu quero arrebentar a cara daquele pirralho esnobe- falou irritado
-De novo? –
-Matt!!...- repreendeu com voz autoritária. Respirou fundo. Era impossível se irritar de verdade com o amigo e companheiro de quarto.
-Mello, pense... Isso aqui é um orfanato! Ele deve estar em algum lugar... Você que não procurou direito.
-É...pode ser...
-Então cara! Amanhã tu o surra- falou abrindo os braços e sorrindo sinceramente- Deixa eu ti mostrar umas coisas que eu consegui de forma ilícita- disse levantando-se.
As horas passaram depressa enquanto Matt mostrava à ele suas conquistas e as histórias mais hilárias de como as havia conseguido. Quando se deram conta, já se passava da uma hora da madrugada e eles nem haviam jantado. Matt recusara o convite de Mello de ir a cozinha e assaltar a geladeira. Então Mello, percorria sozinho os corredores desertos da construção antiga e silenciosa. O tapete, debaixo de seus pés, abafava o som do seu caminhar e protegia-o da baixa temperatura. Desceu os três lances de escadas que levavam a cozinha sem pressa. Ele estava sem sono, como sempre. Dificuldade pra dormir Mello tinha desde sempre. Às vezes chegava a invejar Matt: era só cair na cama e o ruivo já estava roncando.
Sem acender a luz da cozinha, caminhou até a geladeira pegando leite e chocolate em pó. Depois de preparar meio litro de chocolate quente, ele sentou na bancada fria de mármore.
Near veio-lhe a mente.
O sangue ferveu na mesma hora... Desgraçado! Como pôde ousar me desafiar daquele jeito? Como pôde ri-se de mim? Fechou os punhos e sentiu seu corpo tremer. Sempre o Near. Sempre ele lhe tirava do sério. Mas ele nunca tirava o Near do sério... Ele sempre se mantinha frio e distante, não importasse o que lhe fosse falado.
-Near...- Mello cerrou os olhos e viu que estava errado. Desta vez Near tinha agido de forma completamente diferente. Ele fizera questão de mostrar à Mello que estava vivo, que havia vida dentro dele, que havia sentimentos...
-Será...? Sentimentos...? Será se eu me enganei tanto assim em relação aquele pirralho estranho?
Lembrou-se do jovem rival deitado sob os seus pés, um sorriso no rosto, um brilho nos olhos, apreciando aquele momento especial de fim de tarde...
-Momento especial... O momento especial dele, e eu estraguei tudo... Como sempre... Só atrapalho a vida do garoto.
Bebeu um gole do chocolate quente.
Enquanto a minha vida é isenta de momentos especiais, o Near o tem assim? Em lugares comuns? Sozinho?
Desgraçado!
Apoiou-se na parede e fechou os olhos. Queria lembrar de cada detalhe daquele momento sem precedentes entre ele e o rival. Near deitado na grama na mesma posição que ele...'Oi Mello'... Como era suave a voz de Near... O.O o que eu estou pensando?...

A face relaxada sendo atingida pelos raios pálidos do sol que se despedia... o vento deixando os cabelos brancos em desalinho... O corpo delineado levemente debaixo da roupa branca...o rosto... a expressão... o que será que Near estava pensando naquele momento? O que deixava aquela face tão pura? Tão realizada?
Lembrou-se da sensação inesperada que lhe atingiu o corpo quando Near lhe falou pela segunda vez... uma frase inteira... períodos... depois disso, o cheiro dele, ao seu lado, trazido pelo vento... a risada tranqüila que o tinha tirado a paciência... Depois disso... O toque... aquela mão quente e macia envolvendo a sua própria... o arrepio que aquele contato causou a sua espinha... as mãos em chamas...
-Sim Near... Eu vejo... Você é real... e infinitamente parecido comigo: você é intenso. Como pude estar errado durante todos esses anos? Como não percebi que és assim? Tão parecido comigo... Near...Near... Perdão.

Mello mal acreditava que tais palavras saíssem de sua boca. Palavras inimagináveis. Palavras que denotavam uma seriedade e entendimento... Como tinha amadurecido o chocólatra! Como estava forte! Como estava seguro de seus pensamentos e conclusões!
Mello estava em paz. Sua alma e seu coração, que sempre estavam em mares revoltos, hoje descansavam no mais sereno lago... Aliás, Mello era o lago. Ou será Near? Near seria o seu lago?
Balançou a cabeça para afastar pensamentos ilícitos e abriu os olhos... O relógio da cozinha marcava duas e dezessete. Olhou a xícara em sua mão ainda cheia, mas gelada.
- Nossa... Esqueci até do chocolate.
Tomou tudo num gole e foi pro quarto. Encolheu-se debaixo das cobertas pesadas e, pela primeira vez, dormiu em paz...

Continua...