Capítulo VII

Ser prefeito sempre foi um dos meus objectivos. Por isso, fiquei satisfeito, quando, no meu quinto ano, me promoveram a esse cargo. Não me mostrei, contudo, surpreso ou alegre; eu sabia que o iriam fazer. Quem melhor do que eu para representar a minha equipa? Se não fosse eu, teria de ser o Zabini, mas ninguém no seu juízo perfeito o nomearia para o cargo.

O único inconveniente é o facto de, por vezes, termos de patrulhar os corredores, à noite, na companhia de outros prefeitos. Normalmente, acabo por arranjar uma desculpa para nos separarmos. Afinal, é preferível estar só a ter de ouvir alguma Ravenclaw idiota.

Hoje, era a minha vez de patrulhar um dos corredores. Um pouco contrariado, arrastei-me até ao meu destino, perdido em pensamentos. O facto de o Potter me ter apanhado em flagrante, além da suspeita de que ele reconhecera a poção, consumia-me lentamente. Receava que ele me denunciasse à Weasley ou a um dos professores.

Talvez por estar indirectamente a pensar nela, não me surpreendi quando a encontrei, a caminho do corredor que deveria vigiar. Ela não me viu; caminhava de cabeça baixa, em silêncio, também absorta nas suas reflexões. Apressei o passo, sem conseguir suprimir uma certa sensação de ansiedade.

– Weasley.

Ela estacou e fitou-me sobre o ombro, primeiro com curiosidade, depois com satisfação.

– Malfoy, por aqui?

Contornei-a rapidamente, de modo a poder colocar-me à sua frente. Ela encarou-me, com uma sobrancelha arqueada, exigindo uma justificação.

– Tenho de patrulhar o quarto andar.

– Que coincidência: eu também.

Sorriu para mim, daquela forma que mais ninguém consegue fazer. Dei por mim a retribuir o sorriso, verdadeiramente feliz por ela ser a minha companheira de vigia.

Recomeçámos a caminhar, agora sem pressa. As palavras também não surgiram em torrente, apressadas e sem sentido. Tínhamos uma longa noite pela frente, sozinhos nos corredores desertos da escola. Haveria muito tempo para falar. Agora, era a altura de sentir. E eu sentia, como nunca julgara poder sentir.

Conseguia captar todos os sons que a minha companheira produzia. Prestei especial atenção à sua respiração: ritmada, levemente acelerada. Algo se contorceu nas minhas entranhas, produzindo uma estranha sensação de leveza. Perdi momentaneamente o fôlego, contudo, ela não se apercebeu.

Cruzámo-nos com outro par de prefeitos, no terceiro andar. Eles ignoravam-se mutuamente, tal como eu faria se estivesse no seu lugar. Afinal, o que é que o Potter e aquela Slytherin teriam em comum, o que poderiam partilhar? Eu próprio nunca nutrira uma grande simpatia pela rapariga. Considerava-a demasiado fútil e atiradiça. Admira-me que ainda não tenha tentado engatar o Gryffindor. Ou talvez tenha tentado; ele é que não correspondeu aos seus avanços.

Os nossos olhares cruzaram-se, por segundos. Ele transmitiu-me uma só mensagem, bem clara: afasta-te dela. Era um aviso, uma ameaça que eu não deveria, mas iria, ignorar.

De seguida, a sua atenção saltou para a minha acompanhante. Imediatamente, a sua expressão alterou-se: uma sombra de angústia, quase arrependimento, trespassou-lhe o olhar. Sofria com a separação, embora não estivesse disposto a dar o braço a torcer. Na sua visão de Gryffindor, só se perdoa uma traição mediante um pedido de desculpas. Como se a Weasley se fosse rebaixar a esse ponto, tendo em conta que toda a razão se encontra do seu lado.

Pelo canto do olho, observei-a. Mantinha-se calma, não obstante, emanava ondas frias de desprezo. Arrepiei-me, involuntariamente. Desejei nunca ser o alvo do seu desdém, nem de outra coisa que não fosse agradável.

Foi ela quem tomou a iniciativa de retomar a marcha. Desviou-se do outro par, tendo o cuidado de passar ao lado da outra jovem. Cumprimentou-a, secamente, e continuou, com passos curtos e rápidos. Eu segui-a, sem esconder um sorriso de triunfo.

O seu ritmo foi apenas quebrado no andar superior, onde ela parou, encostada a uma tapeçaria. Parecia estar tão disposta a patrulhar os corredores como eu, por isso, não fiz qualquer referência aos nossos deveres de prefeitos. Era preferível ficar ali, a contemplá-la, enquanto ela permitia que a sua raiva se fosse desvanecendo.

Os seus olhos brilhavam, mesmo no escuro. Quis compará-los às estrelas, presas ao firmamento, no entanto, achei que nem isso faria jus à beleza com que me deparava. Nem isso, nem qualquer outro retrato da Natureza. Porque Rose era a luz, o vermelho, o perfume, a vida.

– Não sabia que gostavas da companhia daquela rapariga. – declarou ela, inesperadamente, num tom deveras acusatório.

Instintivamente, ergui uma sobrancelha, confuso.

– Donde tiraste essa ideia?

Foi a sua vez de se mostrar desorientada. O meu interior fervilhou de contentamento por ter conseguido fazê-la esquecer-se do Potter.

– Poupa-me, Malfoy. Vais me dizer que não reparaste no modo como ela olhava para ti, nem como te chamou? – a sua voz era desdenhosa.

Aproximei-me dela, sentindo a minha alegria evaporar-se, dando lugar a uma certa urgência. Eu tinha, pura e simplesmente, de esclarecer aquele assunto.

– Não. Se queres que te diga, mal olhei para ela. Estava mais preocupado contigo.

Os seus lábios entreabriram-se, numa demonstração do espanto que a invadira, embora continuasse céptica. Cruzou os braços à frente do peito e, recompondo-se do choque que a minha declaração lhe trouxera, adoptou um ar sério, quase autoritário. Exigia explicações convincentes, não obstante continuar silenciosa. Queria que eu a dissuadisse das suas convicções, queria que eu a persuadisse a acreditar nas minhas palavras. E eu queria fazê-lo, contudo, precisava de perceber o porquê das suas atitudes. Afinal, o que queria ela de mim?

– Ouve, não há, nem nunca vai haver, nada entre mim e ela. – reforcei, começando a ficar impaciente. – Eu desprezo-a.

O seu semblante suavizou-se, no entanto, eu ainda não fora suficientemente claro na minha recusa. Se queria devolver-lhe aquele sorriso encantador, tinha de me esforçar mais. Dei dois passos na sua direcção e estaquei, a poucos centímetros do seu corpo. Ignorei os sibilados enfurecidos e a aridez que se infiltrara na minha garganta. Fixei o olhar no vermelho dos seus lábios, pensando furiosamente. Sentia estar perto da verdade, mas faltava-me algo…

Inspirei, suavemente. Não contava captar, também, o seu perfume. No entanto, ele invadiu as minhas narinas, penetrou e magoou os meus pulmões, difundiu-se na minha corrente sanguínea, atingiu o meu cérebro.

Então, fez-se luz.

– Rose… estás com ciúmes?

Mesmo sob a luz trémula e fraca que vinha do exterior, consegui ver a sua reacção. Os seus lábios entreabriram-se, uma vez mais, permitindo-lhe inspirar profundamente. O ritmo a que o seu peito subia e descia alterou-se: tornou-se mais rápido, violento, urgente. No entanto, não foram estas reacções biológicas que me deram a certeza de que estava correcto. Foi a cor rosada que a sua face adquiriu, a partir das bochechas.

– Eu não…

Encostei um dedo aos seus lábios, impedindo-a de continuar. Eu não queria que ela desmentisse aquele facto, não queria que ela apresentasse quaisquer explicações. Naquele instante, tudo o que eu desejava era sentir a leve tremura da sua boca, sob o meu dedo.

– Scorpius.

O murmúrio que escapou à minha frugal proibição desconcertou-me ainda mais. Fechei os olhos, recordando o som da sua voz, ao proferir, pela primeira vez, o meu nome próprio.

Eu gostava do tom melodioso, levemente altivo, da voz de Rose Weasley. Contudo, o som que os meus ouvidos captaram foi muito mais rico e significativo. Era uma mistura de temor, ansiedade e paixão, com leves nuances de preocupação. Destacava-se, ainda, um forte desejo de liberdade, liberdade essa que eu já sentira, no dia em que o vermelho venceu o azul.

Desenhei, distraidamente, os contornos dos seus lábios. Senti a sua textura suave. Demorei-me um pouco sobre o local onde se encontravam mais gretados, experimentando cada vez mais intensamente o desejo de a beijar.

Eu arfava, ela também. O meu corpo sofria com a distância que nos separava; a serpente bradava, enfurecida, tentando impedir-me de me aproximar. Eu queria ser livre, ela também. O vermelho abria-nos a porta da liberdade; o azul agarrava-se aos nossos tornozelos, puxando-nos para trás, atrasando-nos. Eu amava-a, ela amava-me. E isso bastava.

Recolhi o meu dedo, sem poder evitar lamentar esse gesto. Afaguei as maçãs do seu rosto, ainda coradas, com uma precisão demorada, antes de descer a mão para o seu queixo.

Aproximei a minha face da sua, tanto que os nossos narizes se tocaram. Senti o seu hálito suave, levemente adocicado, embater no meu rosto, deflagrando a minha paixão, vencendo a minha resistência. Os seus braços envolveram o meu pescoço; o meu braço livre há muito que lhe rodeava a cintura. Ela cerrara os olhos, esperando o inevitável com ansiedade. Eu não conseguia evitá-lo por muito mais tempo. Fechei os olhos e inclinei-me para a frente, com lentidão.

O embate foi suave, quase imperceptível, contudo, pensei que o meu âmago iria explodir. Dor, felicidade, medo e confiança misturaram-se, à medida que os meus lábios se mexiam, captando os seus, saboreando-os. Sabiam a limão doce e laranja amarga, sabiam a desespero e a paixão. Sabiam a vermelho, sabiam a Rose. E eu queria provar cada bocadinho dela, explorá-la por completo.

Ela mordiscou-me o lábio inferior, aproveitando o momento em que fui forçado a tomar fôlego. A mão que anteriormente segurara o seu queixo tinha descido para as suas costas, ocupando-se com os seus cabelos. Eu não tinha a certeza do que era melhor: a sensação de plenitude que ela infundia em mim, ao aprofundar o beijo, ou o toque suave dos seus cabelos, que escorregavam por entre os meus dedos, para sempre rebeldes.

Uma das suas mãos soltou-se do meu pescoço e repousou no meu peito, insinuando-se por entre o meu manto. As suas unhas cravaram-se na minha pele, sobre a minha camisa. Em resposta, cravei os meus dentes nos seus lábios, ao de leve. Ela gemeu, quase imperceptivelmente.

Eu não conseguia pensar em mais nada além dos seus lábios, da mão que se mexia sobre a minha camisa, dos seus cabelos nos meus dedos. Apenas tinha a certeza de que não poderia romper o beijo e o abraço, largar aquele corpo que tanto me atraía.

Como o destino é caprichoso! No momento em que acabei de formular estes pensamentos, ela gelou nos meus braços. A sua mão fechou-se, com os nós dos dedos apoiados no meu peito, já sem gentileza. Com o auxílio da outra mão, que soltou o meu pescoço com desenvoltura, empurrou-me para trás, imprimindo mais força do que seria de esperar.

Desconcertado, abri os olhos. Ela permanecia encostada à parede, com a respiração descontrolada e um brilho estranho nos olhos. A sua mão esquerda repousava sobre o seu peito, como se isso fosse suficiente para a ajudar a recuperar o fôlego. A outra estava ainda firmemente fechada, segurando um pequeno frasco com uma poção dourada: Felix Felicis, a sorte dos outros, o meu azar.

Toda a cor que me tingira o rosto, nos últimos minutos, foi sugada por aquela visão. Como é que me pudera esquecer daqueles últimos vestígios do meu crime? Durante todo o dia, receara que o Potter me denunciasse, mal sonhando que eu próprio seria a minha perdição.

– Eu posso explicar.

Os seus olhos não exigiam justificações. Limitavam-se a fitar-me, acusatoriamente, embora desconhecem todo o alcance do meu crime.

Respirei fundo, pensando rapidamente. Eu queria contar-lhe a verdade, contudo, se o fizesse, ela não voltaria a confiar em mim. Eu, que desejara nunca ser a causa do seu sofrimento, tornar-me-ia a espada que trespassaria o seu coração, repetidamente. Não haveria lugar para nós, apenas para mim e ela, separados.

Tomei a minha decisão. Eu omitiria a verdade, em nome daquilo que ela significava para mim. Eu não suportaria perdê-la, agora que ela me estendeu uma mão, do alto do seu pedestal inatingível! Sim, eu estava a ser egoísta, mas quem se importava? Poupar-nos-ia uma grande dose de mágoa e, simultaneamente, abrir-nos-ia as portas que ainda não conseguíramos abrir.

– Miss Weasley!

No momento em que ouvi a voz da professora de Poções, soube que estava tudo perdido.

A professora aproximou-se de nós, seguida pelo Potter. As suas feições estavam distorcidas pela dúvida, o que lhe dava um ar angustiado. Sem dizer uma só palavra, retirou o frasco da mão dela e examinou-o, com um olhar profissional.

Fitei Rose, com a garganta seca. Ela estava muito pálida, no entanto, não parecia estar tão alarmada como eu. Será que ela não percebia o que se passaria a seguir? Confiaria assim tão cegamente na verdade e na justiça?

– Miss Weasley, foi a menina quem fabricou esta poção? – o tom da professora era cauteloso, apesar de eu ter distinguido uma nota de súplica.

Suspirei fundo, um tanto aliviado. Rose não tinha nada a temer, bastava-lhe negar para a feiticeira acreditar na sua palavra. Afinal, a sua fé na aluna não era assim tão frágil.

– Fui.

O meu mundo desabou. Dos meus lábios entreabertos de horror, escapou um grito de negação, que o Potter ecoou. Não, ela não mentira, ela não se entregara ao carrasco, na sua inocência. Não, simplesmente não podia! Ela não tinha o direito de se colocar entre mim e a justiça, entre mim e a maldição. Ela não poderia sofrer, outra vez, por minha causa.

– Sabe, certamente, que se for provado que a menina usou a poção num exame, poderá ser expulsa da escola?

A pergunta assemelhava-se mais a uma afirmação. Claro que ela sabia! E, mesmo assim, mantinha-se firme aos seus objectivos. Empreendera uma missão suicida, sem se importar com as consequências que poderiam advir da sua audácia.

A professora suspirou, derrotada. A esperança de estar errada já desaparecera do seu olhar. Agora, só lhe restava agir de acordo com o que a situação exigia da sua pessoa.

– Por enquanto, limito-me a destituí-la do seu cargo de prefeita.

Ela ouviu a sua sentença em silêncio, no entanto, as suas emoções já haviam tomado conta do seu ser. Toda a calma se evaporara, dando lugar ao desespero. Uma lágrima cruzou a sua face, assim que ela retirou o distintivo do seu manto. Olhou para ele, por momentos, como se estivesse indecisa. Pergunto-me se, nesse pequeno instante, se arrependera.

Vi-a esticar o braço, na direcção da mão estendida da professora. Soube que, se queria agir, tinha de o fazer agora; depois, seria tarde. Tinha, apenas, de decidir a quem era leal: ao vermelho ou ao azul, a ela ou à cobra.

Agarrei o seu braço e obriguei-a, gentilmente, a recolhê-lo. Tinha-me colocado entre as duas mulheres, funcionando como uma espécie de barreira, tal como ela fizera por mim. Evitei o seu olhar, por uma questão de auto-preservação. Eu estava certo de que se tivesse um vislumbre, por mais ínfimo que fosse, da sua dor, perderia todas as forças. Concentrei-me, pois, no vermelho, no seu perfume. No meu amor por ela.

– Mr. Malfoy, exijo que não se intrometa nos assuntos que não lhe dizem respeito! – guinchou a professora, autoritária.

– Não posso deixar que uma injustiça seja cometida. – rosnei, friamente.

– O que quer dizer com isso?

Rose agarrara-me o braço e puxava-me para trás, numa tentativa inútil para me deter. Era demasiado tarde, eu já tomara a minha decisão.

– A poção é minha.

Como seria de esperar, a feiticeira que me olhava sem esconder a sua confusão não se mostrou convencida. Se eu queria esclarecer o assunto e repor a verdade, tinha de ser mais explícito. Contei, então, toda a verdade, apoiando-me na certeza de que livrara Rose de uma pena imerecida. Não omiti nem suavizei nenhum pormenor, restringindo-me à verdade, fria, despida, cruel. No fim do meu discurso, entreguei o distintivo de prefeito que me pertencia e esperei a minha condenação.

A professora estava sem palavras. Observava-me como se me visse pela primeira vez ou como se eu fosse um pássaro vistoso que se tivesse revelado, na verdade, uma lesma viscosa. Ignorei-a; nada do que dissesse me faria pior do que o que já fizera.

Ao seu lado, o Potter mirava-me com asco, mesmo ódio. Eu quebrara a última barreira que o impedia de me odiar: a confiança que a prima depositava em mim. No entanto, também não dei importância a esse facto. Ele não significava nada para mim.

A única pessoa cuja opinião me interessava estava atrás de mim, nas sombras. Continuava a agarrar-me, no entanto, fazia-o sem se aperceber, talvez exclusivamente para se apoiar. Eu acabara de recusar a mão que ela me estendera, recusara-me a subir ao seu altar. O vermelho não conseguira expulsar o azul, para sempre; o azul não venceu, não conseguira alcançar os seus objectivos. Se isto fosse Quidditch, seria um empate técnico.

Indistintamente, escutei o que a professora me disse. Notei uma clara decepção na sua voz, sob todo o rigor que pretendia transmitir. Acenei, tentando compor uma expressão adequada, contudo, percebi que não sentia nada. Nada. Apenas um vazio.

A professora de Poções acabou o seu discurso e abandonou o corredor, com uma última ameaça que eu não entendi. O Potter não fez menção de a seguir; pelo contrário, quedou-se silencioso, acusando-me com o olhar. Depois, contornou-me e começou a sussurrar algo a Rose. Não ouvi as suas palavras, porém, sabia a que se destinavam. Uma pequena parte de mim desejou que ela ouvisse o primo e o seguisse, deixando-me só. O resto do meu ser ansiava por lhe gritar que não o fizesse.

– Não, Albus.

Foi tudo o que ela disse, num tom inexplicavelmente límpido e seguro, sem rastos do embargo que antes a assaltara. Duas palavras que, ditas daquele modo, não deixavam margem de resposta. Bastaram essas duas palavras para obrigar o Potter a deixar-nos, cabisbaixo, odiando-me profundamente.

Girei nos calcanhares, decidido a encará-la. Contudo, assim que me deparei com a sua face, amargurada pela desilusão, perdi toda a vontade de a enfrentar, apenas porque eu sou um cobarde. Um cobarde que pode passar por corajoso, sem nunca o ser.

Com o olhar no chão, esperei que ela atingisse o seu limite e começasse a insultar-me, atirando-me à cara todos os meus esquemas e defeitos. Ela gritaria, choraria, culpar-me-ia, com toda a razão. Era uma questão de segundos, talvez minutos.

– Porque decidiste desistir do teu plano?

Fui apanhado de espanto, de tal modo que ergui a cabeça, fazendo com que os nossos olhares se encontrassem. Não encontrei acusação, nem ódio; em vez disso, tristeza, sofrimento e uma ponta de esperança.

– Não é óbvio? – não pude evitar sorrir, trocista. – Eu não podia deixar que eu próprio te magoasse! Eu amo-te, Rose.

Ela permaneceu serena, durante um instante fugaz. Pensei que ela, na sua imensa bondade e inocência, me perdoaria. No entanto, ela não o iria fazer, não poderia. Há feridas que não saram assim, de um momento para o outro. E esta era uma delas, sem dúvida.

Rose deixou que as lágrimas, antes suprimidas, lhe corressem livremente pela face. Não fez qualquer esforço para se controlar. Parecia estranhamente destituída da sua força, como a flor que fora arrancada da terra no auge da sua beleza.

– Tu intrigas-me, Malfoy. – afirmou, num tom fraco. – Tu dizes que me amas, mas também me invejas, odeias.

– Isso não é verdade! – apressei-me a desmentir, irritado com a sua acusação.

Ela soltou uma gargalhada vazia, desprovida de alegria. Em tempos, também eu me rira daquele modo, cinicamente.

– És capaz de jurar que me amas mais do que invejas?

Eu abri a boca, pronto a responder-lhe que sim, que o meu amor era muito mais forte do que a inveja que ela despertava em mim. Contudo, não fui capaz de o dizer em voz alta. A cobra, aparentemente adormecida pela proximidade da jovem, despertara com todo o seu vigor. Comprimia-me as cordas vocais, impedindo-me de falar.

Nos segundos em que me debati pelo controlo da minha voz, compreendi algo muito importante, algo que eu sempre soubera, mas que quisera fingir que não era real. Algo que me impossibilitava de dizer sim, juntamente com a serpente azul.

Eu amava Rose Weasley, é certo. No entanto, também a invejava, cobiçava as suas conquistas. Eu não conseguia, simplesmente, lidar com a sua perfeição, face a todos os meus defeitos. A sua divindade não era compatível com a minha humanidade, a sua pureza afastava a minha imundície. Nós nunca poderíamos ser um só, pelo simples facto de que somos demasiado diferentes. A cobra azul, aquela pequena porção de mim que se debatia tão intensamente, era, apenas, a minha parte de Slytherin, a minha herança Malfoy: orgulho, preconceito, inveja, egoísmo, cobiça, raiva, ódio, … Tudo aquilo que me separa dela.

Suspirei, triste mas decididamente. Não havia volta a dar. Eu nunca seria capaz de expulsar o azul que me corre nas veias, tal como nunca conseguirei arrancar a minha pele por completo. Haverá sempre algo que resta e a partir do qual tudo se reconstrói. Dizer que eu poderia expulsar o azul de mim é tão ridículo como afirmar que Rose poderia deixar de ser o vermelho.

Rodei nos calcanhares, mantendo a cabeça erguida. Enquanto atravessava o corredor, deserto, deixando-a para trás, pude constatar que tomara a única decisão que poderia adoptar.

Azul e vermelho. Slytherin e Gryffindor. Cobardia e coragem. Inveja e justiça. Conceitos opostos, que não podem coabitar. Tal como um Malfoy e uma Weasley nunca poderão ser um só.

FIM


N.A: Bem, eis o final de Contradições. Opiniões? Pedidos de continuação? Reclamações?

Possivelmente, continuarei a história em Incoerências.

Respondendo:

Lyra: Tenho umas luzes (muito ténues) para a continuação, mas vou fazer o que faço sempre: não planeio nada, ligo a minha playlist mais angst e escrevo.

Sim, a Rose é humana e, como tal, tem falhas. Não é uma Mary Sue. -.-'

E o Scorpius é… ok, não comento.

Juh: Curiosidade satisfeita?

Não encontrei o link. Como é que se chama mesmo?

Beijos. E review!