Disclaimer: Saint Seiya e seus personagens não me pertencem e não viso fins lucrativos com esta fanfic. Contudo, o personagem Kisai foi por mim criado há pelo menos 2 anos atrás.

Esta fanfic é escrita em primeira pessoa, como se Ikki de Fênix a estivesse narrando.


1 – Fantasma do Passado

Não sei dizer o motivo que me levara de volta àquele lugar. Nunca imaginei que, 18 anos após ter saído dali para me tornar o que hoje sou, viesse novamente a pisar naquele pátio. Quantas lembranças vieram à minha mente? Porque não conseguia sentir o mesmo ódio de outrora?

Vazio. Assim estava o meu peito!

O tempo passara, eu havia crescido, mas não conseguia deixar de ser um lobo solitário. Acostumara-me com a independência, com a ausência de companhia. Isso não era ruim, era? Não, apenas uma opinião distinta das demais.

Louco. É isso que sou!

Desde quando me proponho a filosofar, a discutir a respeito da opinião alheia? Isso nunca me afetou! Sou forte, sou corajoso e capaz de executar um verdadeiro milagre. Não tenho medo do meu destino, não temo a morte e a solidão... é apenas uma seqüela do meu gênio forte, da sinceridade em minhas palavras. Não sou covarde, por isso falo o que penso pela frente.

Inconseqüente? Arrogante? Nenhuma das alternativas.

Sou o mais velho, tenho responsabilidades e prefiro a sinceridade. Não falo pelas costas. Dou o exemplo, encaro qualquer reação que meu interlocutor possa vir a ter com o fel de minhas palavras ou, se assim for necessário, com o peso do meu soco. Sempre preferi que falassem na minha frente, visto que toda e qualquer informação acaba sendo deturpada pelas más línguas. Sinto-me feliz sendo assim e isso basta!

Imbecil. Incompetente... Você nunca será capaz de amar!

Esta frase agora ecoa em minha mente e não sei dizer sua fonte. Seria aquele maldito russo? Não! Só havia um idiota capaz de ser tão sincero quanto eu. Um garoto em corpo de adulto, um retardado que adorava interferir em assuntos que não lhe diziam respeito: Seiya de Pégaso. Se eu tinha raiva dele... É claro que não! Sou muito superior.

Metido? Acho que sincero seja mais ideal.

Já disse e repito: não tenho medo da verdade! Já tive a oportunidade de provar minha superioridade aos demais cavaleiros de bronze, embora não a tenha aproveitado de forma condizente. Sou Ikki de Fênix, a ave mitológica que renasce das cinzas e hoje sei que, na verdade, não tive coragem de lutar com todas as minhas forças contra Seiya e os outros mesmo quando estava dominado pelo ódio. No fundo, nunca quis matar meus amigos, machucar o meu irmão. Falando no Shun...

Passado. Lembranças. Saudade?

Estou agora olhando para um pequeno tumulto no pátio. Um pequeno garoto é o alvo das atenções e tenta reagir em vão. Seus movimentos parecem um tanto desorientados, sua coragem e força de vontade são surpreendentes, mas ele não tem chance. Está sendo vítima do ataque de outros garotos mais velhos, mas não chora. Aproximo-me calmamente da confusão e não sei se devo apartar... Essa briga não é minha!

– Burro!

Ouço alguém gritar. O menino não se defendia dessa acusação. Ao contrário, parecia acatar. Meu coração acelera e volto ao tempo, lembrando-me novamente das vezes em que fui obrigado a defender o Shun. Será que os responsáveis por esse maldito orfanato não iriam tomar nenhuma providência contra essas agressões? Eram crianças, mas se continuassem a agir dessa forma, tornar-se-iam marginais. Nessas horas, concordava com Hitler e todos os inimigos de Athena com relação à purificação da espécie humana. Muitos estavam mais para animais irracionais. Minto, bestas selvagens é mais adequado!

– Me deixe em paz!

Gritou o jovem acuado. Aquela voz... Não era desconhecida. Mas, como eu poderia conhecer alguém ali se era a primeira vez que voltava depois de muitos anos? Abro espaço entre as crianças e finalmente consigo ver a vítima da confusão.

Delírio? Ilusão? Coincidência certamente!

Não havia nenhum inimigo por perto, estávamos em tempo de paz e eu não estava à beira da loucura. Sentia como se realmente houvesse voltado ao meu tempo de infância. Shun apanhava e eu o defendia. Não estava na hora de deixar ele se virar sozinho e o fazer crescer? Não dessa vez... O garoto já estava muito machucado.

– Posso saber o que está acontecendo aqui?

Bradei. Minha voz é grave, é forte e não tenho pena de ninguém. Não são apenas crianças e sim projetos de delinqüentes. Sei que não devo feri-los, mas posso educá-los. Já consegui criar um irmão, porque não conseguiria controlar um grupo de pirralhos? Será que se eu usasse uma fraca parcela do meu cosmo conseguiria criar uma ilusão a ponto de deixá-los amedrontados sem trazer nenhuma grande seqüela? Era melhor não arriscar.

O poder nos torna mais fracos.

Eu sei que essa frase pode trazer muitas discussões à tona, entretanto... é verdadeira sim e posso provar! O poder faz com que tenhamos a ilusão de criar o controle sobre todos aqueles que julgamos inferiores a nós, mas sempre haverá alguém mais ambicioso que se aproveitará de nossas fraquezas. É por isso que um bom líder não é aquele que impõe sua vontade, mas dispõe-se a ouvir sua equipe, contestar e dosar todas as opiniões.

Mas isso é o que menos importa agora! As crianças estão agitadas. Os mais velhos tentam me peitar, alguns acreditam mesmo serem capazes de me ferir e eu estou hipnotizado pela figura e o olhar do menino. Ele está acuado e mesmo assim tem um olhar agressivo. Senti-me tão... estranho. Aquele olhar não pertencia ao Shun, não condizia com sua personalidade. Mas... o que eu estou dizendo? Esse menino não é meu irmão!

– Escutem aqui... Sei que sou apenas um estranho para vocês, mas tenho experiência suficiente para afirmar que são um bando de covardes. Ou será que o menino é tão poderoso que ninguém consegue enfrentá-lo de igual para igual? Precisam de armas, de companhia... – desdenhei. Queria provocá-los, mostrar que estavam se fazendo inferiores ao adversário.

– E eu não preciso de proteção! – gritou o menino de olhos e cabelos verdes. O rosto andrógeno e a pele alva faziam com que ele lembrasse ainda mais meu doce irmão.

Suas atitudes, entretanto... Ele levantou-se sem ajuda e me encarou. Não olhava diretamente em meus olhos, mas mesmo assim me desafiava. Aproveitou o silêncio, deu meia-volta e rumou firmemente em direção ao interior do edifício. Tropeçou em um brinquedo no meio do caminho, não se importou com a risada dos colegas e continuou de cabeça erguida.

– O Kisai é um desastrado! – suspirou alguém.

– Que nada! Ele é um verdadeiro retardado que não consegue nem aprender a ler e escrever. – sentenciava uma outra voz infantil.

Iniciou-se um novo burburinho de vozes e opiniões ofensivas contra o garoto que já não estava ali. Senti-me ainda mais incomodado, caminhei sem rumo e me afastei das crianças. Quem seria aquele garoto? Porque eu me sentia na obrigação de ir atrás dele? Talvez fosse por causa do Shun. Fisicamente era tão parecido com o meu irmão caçula...


– Finalmente resolveu aparecer... – comentou uma suave voz feminina.

– Minu? – perguntei surpreso. Apesar de tudo, não esperava vê-la ali e o pior de tudo é que não havia visto sua aproximação. Cometera um erro grave ao distrair-me daquela forma. Se fosse um inimigo, estaria morto.

– Boa tarde, Ikki. Tudo bem?

– Ahn... Sim. – respondi num tom vago. Não conseguia parar de pensar no misterioso menino. Quem era ele? Por que estava aqui e por que o destino cruzou nossos caminhos? Se normalmente eu não costumava conversar, agora estava mais motivado a montar o quebra-cabeça que havia se montado na minha mente. Coincidências têm limite! Tinha que ter alguma explicação... – Desculpe, mas hoje eu não sou uma boa companhia.

– Quem deve decidir isso sou eu e não você, concorda?

– Sim, mas...

– Então está decidido. Quero ficar ao seu lado e ponto final!

Ela também conseguia ser dura na queda quando queria. Não sairia dali tão cedo e, se eu fosse embora, talvez viesse atrás ou talvez não. Além disso, talvez ela pudesse me dar alguma informação, alguma pista.

– Minu...

– Sim?

– Quem é aquele menino de cabelos e olhos verdes que as crianças ridicularizavam?

– Deve estar falando do Kisai. Foi abandonado pelos pais há algum tempo. – explicou, dando uma pausa para encher os pulmões de ar. Seu semblante denunciava seus sentimentos. Estava com pena! – Eles não aceitavam ter um filho retardado.

– Ele não parece ter nenhum tipo de deficiência mental...

– É verdade, mas ele não consegue aprender a ler e escrever mesmo depois de tantas tentativas. Não é só isso... ele é um desastre nos esportes, não consegue imitar corretamente nem os movimentos mais simples e é muito fechado. Pesquisei a respeito de algumas doenças e tenho quase certeza que seja autismo.

– Eu ainda não consigo acreditar que ele tenha qualquer tipo de retardamento mental. Os olhos dele são de um grande guerreiro. Quando tentei ajudá-lo, ele me encarou e me desafiou explicitamente.

– Só você o vê dessa forma...

– Eu quero me aproximar dele. Quero conhecê-lo melhor. – declarei, decidido. Não poderia deixá-lo perder a esperança...

– Mas Ikki... o Kisai tem uma personalidade terrível.

– Não deve ser tão pior que a minha. – respondi com um meio sorriso. Há muito andava em busca de um desafio e sentia que, no momento, este era o maior de todos. Se conseguisse domar o menino, provaria a todos que eu sou muito melhor do que pensam. – E então, vai me dizer onde ele costuma ficar ou terei que descobrir por conta própria?

Minu balançou a cabeça negativamente. Não sabia se ria ou se permanecia surpresa com a minha decisão. Preferiu não contestar e começou a fornecer todos os dados que eu lhe solicitava. Entretanto, antes que pudéssemos nos despedir, deu a entender que eu teria que escolher entre ser amigo do garoto ou deixá-lo em paz. Ela tinha razão. Kisai não precisava de mais sofrimento em sua vida.


– Ouvi falar que você gosta de ouvir histórias e é muito curioso quanto a experiências científicas. Sei um pouco de anatomia e tenho um amplo conhecimento a respeito de mitologia antiga, principalmente a grega.

– Eu não mandei você me esquecer?

– Mandou, é? Eu não lembro. Acho que já recebi tanto golpe na cabeça que ando com amnésia temporária. – fingi-me de desentendido enquanto sentava numa cama ao lado da do Kisai. Não só havia decidido tentar a aproximação como também sentia que estava me comportando como o Seiya. Droga! Não podia perder o meu foco.

– Eu sou retardado. Não entendo o que você fala! – resmungou o garoto, virando para o outro lado e abraçando-se ao travesseiro.

– Que pena! Pensei que você poderia me ajudar com uma dúvida... um desafio que preciso responder, mas não consigo. – agora estava agindo por conta própria. Sentia-se novamente como o velho Ikki de sempre. Desafiador, perspicaz!

Sabia que crianças rebeldes sempre gostavam de desafios, principalmente os de lógica. Eu mesmo sempre fui assim. Não demorei a perceber que o garoto remexera-se sobre o colchão macio. Como estava de costas para mim, dei um meio sorriso e decidi prosseguir mesmo sem ter recebido nenhuma resposta.

– Um homem está preso em uma torre onde há duas portas, mas somente uma delas é a saída. Em cada porta há um guarda. Um deles só fala a verdade e o outro só fala mentiras. Para sair de sua prisão, o homem só poderá fazer uma pergunta e somente para um dos guardas. Pela resposta dada, ele saberá qual é a saída. O que você perguntaria se fosse este homem?

Simulando desinteresse com a resposta, cruzei as pernas sobre a cama em que estava sentado, recostei-me à cabeceira e cerrei os olhos. Não sabia o que esperar. Certamente haveria um longo e tedioso silêncio. Talvez ele nem respondesse à charada...

– Que porta o outro guarda vai dizer que é a saída?

Arregalei os olhos e senti um frio percorrer a minha espinha. Não esperava por resposta e muito menos por aquela! Como era possível? Consegui conter um sorriso que teimava em querer estampar-se em meus lábios e usei a máscara da indiferença que Guilty havia me ensinado a vestir. Pelo menos para isso aquele maldito serviu.

– Por quê?

– Hum...

– Por que você perguntaria isso?

– Oras... é simples. – respondeu, virando-se em minha direção. – A resposta seria sempre a mesma. Se eu perguntasse pro mentiroso, ele apontaria o caminho errado porque estava tentando me enganar. Se fosse o guarda que só fala a verdade, então ele me mostraria o caminho errado porque tinha certeza que o mentiroso tentaria me enganar.

– Você é muito inteligente! – Exclamei com um largo sorriso.

– Não, eu não sou. Sou um retardado. Não consigo aprender a ler, escrever e nem copiar o movimento dos outros. – respondeu, chateado.

– Kisai, não precisa reagir desta forma. Eu sei o que é sentir-se diferente, mas...

– Isso é tudo que tem pra me falar? To cansado de ouvir lição de moral.

– Se é assim, vou embora. – declarei. Sabia que Kisai estava na defensiva e que não cederia às minhas palavras. Não hoje! Se quisesse conversar com ele, teria que ser aos poucos. Levantei-me da cama. Estava decidido a voltar no dia seguinte.

– Pode ir. – respondeu e sua voz pareceu bem menos agressiva, embora continuasse relutante. Será que eu estava mesmo conseguindo conquistá-lo? Pelo que soube, ele também sempre vivera muito bem sozinho e, assim como eu, achava que não precisava da companhia de ninguém. – Espero que não volte mais! – gritou fingindo fúria. Como se eu não fosse capaz de interpretar seus verdadeiros sentimentos...

Enfiei as mãos no bolso da calça e sorri. Aquela revolta, o jeito como ele me atacava... Agora tinha certeza de estar no caminho certo! Conquistaria a confiança deste menino e tentaria ajudá-lo com seu problema. Não pensava mais na necessidade de provar nada a ninguém. Sempre fui seguro, responsável e determinado. Não precisava de companhia e muito menos da aprovação de ninguém!


– Bom dia! – cumprimentei, adentrando o quarto. – Me disseram que você estava aqui... Por que não saiu?

– Porque não quis.

– Ah sei! Está se isolando para não enfrentar a vida e as pessoas. Já passei por isso e hoje sei que é a atitude mais covarde que alguém pode ter.

– Você não sabe de nada! – ele gritava, apertando os ouvidos com as mãos, demonstrando que não queria ouvir.

Não insisti, pois sabia que ele não estava preparado. Kisai ainda não havia me expulsado, o que já era uma vitória. Depois eu teria muito tempo para voltar a esse assunto. Então, por que teimar justo agora? Se o fizesse, isso só faria com que todo o meu esforço anterior tivesse sido em vão.

– Você tem razão. Eu não sei de nada. – concordei, dando de ombros. – Gosta de chocolate?

– Talvez.

– Talvez é muito relativo. Então, como você não disse "não", pode ter respondido "sim". Estou certo? – perguntei num tom de simplicidade que me assustou.

– Você é muito complicado às vezes! – ele respondeu fazendo uma careta de desaprovação ao meu comentário e eu tive que me segurar para não rir.

– Disso eu já sabia. Tome! – joguei um bombom que havia trazido especialmente para ele. Kisai não agarrou e percebi que havia algo errado com o seu reflexo. Ainda não tinha certeza, mas poderia ser algum problema de visão. Se fosse, seria mais fácil resolver!

– Chato! – ele esbravejou enquanto saía de sua posição para correr atrás do doce.

Silêncio. Solidão. Incerteza...

Já não sabia o que fazer e como fazer. Eu o observei como... como... acho que como eu sempre observava o Shun. Sim! Estava agindo como um irmão mais velho depois de muitos anos vivendo sozinho. O tempo passara, a vida se encarregava de nosso destino e eu já não sabia mais o que pensar do futuro. Quais eram as minhas ambições? Por que esse vazio em meu peito? Estava tão confuso...

– Ei, qual é mesmo o seu nome? – ele me perguntou, lambendo as pontas dos dedos.

– Ikki. – respondi e só então me dei conta de que não havia me apresentado no dia anterior.

– Quantos anos você tem?

– Eu... – fiz uma pequena pausa. Estava assustado com aquelas perguntas, pois não imaginava que ele viesse a interessar-se pela minha vida. – Eu tenho 26 anos.

– O que foi? Você ficou estranho...

– Estava lembrando da minha infância, do meu irmão caçula. Há alguns anos atrás nós ficamos algum tempo nesse mesmo orfanato...

– Foram adotados por pais diferentes?

– Não. Saímos para treinar em lugares diferentes. Você já ouviu falar sobre os cavaleiros de Athena?

– A Minu já contou algumas histórias, mas gostaria de saber mais um pouco.

– Posso lhe contar...

– Eu não tenho nada pra fazer. – ele comentou, sentando-se na cama em que dormia e olhando em minha direção. Ficou tão parecido com o Shun de outrora que levei um susto.

Caminhei ainda aturdido e sentei-me de frente para ele. Não seria fácil narrar os fatos com a minha visão, pois eu sabia ter causado muita dor. Entretanto... Sabia que haviam muitas coisas que não precisavam ser ditas nesse primeiro momento. Iniciei com um pouco de mitologia grega e terminei falando a respeito do objetivo dos cavaleiros de Athena.

– E as lutas? A Minu disse...

– Isso fica para outro dia! – respondi rapidamente, cortando-lhe. Ainda não estava preparado para contar todos os meus erros. – Se me dá licença, preciso ir... tenho compromisso.

– Tudo bem. A gente se vê amanhã, na mesma hora?

– Pode ser. – respondi, levantando-me. – Até amanhã, Kisai.

– Até amanhã, senhor Ikki. – ele me cumprimentou com um aceno de mão. Estávamos evoluindo...


Decido caminhar na rua. Sentia-me incomodado em meio a tantas famílias formadas. Mães acompanhadas de um ou dois filhos, homens ao seu lado. A maioria estava séria demais! Fazia parte daquele mundo, aprendera a crescer sem saber o significado da palavra amor, mas... por que estava tão incomodado com aquela cena? Olho para o lado e percebo um grupo de jovens sorrindo discretamente. Logo seriam como os adultos. Sempre sérios, sempre vazios!

Decepção. Dor. Tristeza. Revolta.

Fora tudo em vão? As guerras que lutamos, os ferimentos que recebemos e tudo pelo que passamos não poderia ter sido algo tão irrelevante assim! Lutamos por amor, prezando a vida, protegendo os humanos contra os desígnios dos deuses para que eles pudessem ser felizes, mas será que fizemos o certo? Só vejo violência pelos quatro cantos do mundo, sinto que as pessoas tornam-se cada vez mais tensas e solitárias. Por que não conseguimos a tão almejada paz? Por que as pessoas não valorizam nossos esforços e porque sinto que, a cada dia, o brilho da esperança de um futuro melhor torna-se mais opaco em seus olhos?

Humanidade. Estresse. Decepção.

Não adianta. As pessoas preferem o sofrimento. Estou cansado de tudo, de todos! Da hipocrisia... Devo relaxar, encontrar um meio de contar tudo o que aconteceu nas batalhas ao Kisai. Eu não fui o único a errar, lutei pela justiça, pelo que acreditava e é isso o que importa! Sou Ikki de Fênix, o mais poderoso cavaleiro de bronze, tenho que agir como homem e não como um garoto assustado. Nunca fui assim e jamais o serei!

Ouço meu celular tocar. Quem seria? Há tanto tempo não recebia ligações...

– Alô. – atendo de forma educada por não reconhecer o número.

– ...

– Tem certeza? M-mas... acabei de...

– ...

Não podia acreditar no que estava ouvindo. Por que o destino tinha que ser tão cruel comigo? Por que insistia em tirar de mim as pessoas que eu amava? Talvez essa minha solidão fosse realmente benéfica. Era a única forma de não ferir ninguém. Tudo sempre tinha um motivo...

– Estou indo praí. – declaro, desligo o telefone e corro na velocidade da luz.


Tenho medo do que vou encontrar, tenho medo de perceber que falhei. Eu havia prometido cuidar dele... como era possível tal situação? Merda de destino! Eu definitivamente nascera sob uma estrela de azar e havia sido condenado a morrer seco e solitário.

– Ikki... ainda bem que você chegou. – declarou uma chorosa Minu.

– O que aconteceu? Por favor... não me poupe dos detalhes. – pedi com o coração apertado.

– O Kisai sofreu um acidente... Ele tropeçou em um brinquedo e caiu da escada. Está desacordado.

– Onde ele está? O que fizeram com o garoto? – pergunto num tom levemente agressivo.

– Chamei a ambulância e... pra evitar novos acidentes, o coloquei no sofá.

– Como teve coragem? Por que mexeu no corpo do garoto sem ajuda especializada? Quer deixá-lo aleijado de verdade? – bradei, chacoalhando-a pelos ombros.

– Me desculpe. Eu... eu não tinha pensado nisso...

– Agora é tarde! Me leve para onde você o deixou. – exigi.

Minu simplesmente respondeu com um balançar positivo de cabeça e, em passos rápidos, me conduziu pelo ambiente até onde estava o garoto. Estava tão pálido, tão frágil... Era o mesmo Shun de anos atrás. Minha pernas tremeram um instante e, quando dei por mim, estava ajoelhado ao seu lado. Respirava com alguma dificuldade, mas felizmente não havia lesionado a cabeça.

– Não há sinais de traumatismo craniano... – inicio o diagnóstico e, cuidadosamente, desço meus dedos pelo corpo infantil.

Levanto a camiseta. Era tão magro quanto eu imaginava. Seria mais fácil... Respiro fundo e, usando meus sentidos de cavaleiro, tenho certeza de ter constatado uma fratura na costela. Todavia, não sei quantas foram fraturadas e nem da gravidade da situação.

– Ele está com pelo menos uma costela fraturada e pode ter uma hemorragia interna. Não temos tempo de esperar a ambulância. O levarei ao hospital. – declaro, tomando o garoto em meus braços. – Ele tem algum documento?

– Apenas a certidão de nascimento...

– Onde está?

– Acho que junto das demais, no escritório...

– E o que está esperando para pegar? Já deveria tê-la em mãos para quando os paramédicos chegassem. Será que ainda não entendeu a gravidade da situação? – estou desesperado. Não quero vê-lo morrer em meus braços, não agora. Nós tínhamos tanto para descobrir um com o outro... Eu precisava tanto dele! Kisai não poderia morrer assim.

– Eu... eu...

– Ah, basta! Já percebi que, assim como nunca fizeram nada por Shun, também abandonam este garoto. Eu mesmo pego. Ainda lembro onde é... – declaro, correndo ao escritório com Kisai em meus braços. Não conseguia confiar em mais ninguém ali, não depois de presenciar a esta lastimável cena.


– Foi você quem trouxe o garoto... é parente?

– Não, apenas um conhecido. Ele é um dos órfãos da Fundação Graad. E então, doutor, como está o Kisai?

– Não corre risco de vida. Trincou uma costela, teve ruptura dos ligamentos no pé esquerdo e quebrou a clavícula do mesmo lado. Se tivesse uma família, talvez o liberasse ainda hoje, mas ele precisa de cuidados especiais e, sinceramente, não sei como devo proceder.

– Entendo. – respondi aliviado. Não havia sido nada tão grave quanto eu esperava. – Doutor, tem certeza que não tem nenhuma costela quebrada?

– Rapaz, eu até posso compreender a sua preocupação, mas está me ofendendo com essa pergunta. Como médico não posso mentir e, por ser uma criança, nem esconder nada sobre seu estado físico. – respondeu de forma ponderada.

– Eu estou um pouco confuso, mas fico mais aliviado com a notícia. – declaro e então me lembro do mais importante. – Doutor, antes que vá cuidar de outro paciente, gostaria de perguntar mais uma coisa... Quanto à visão dele, creio que haja algum problema.

– Não foi observado nenhum problema neuropatológico, mas, se assim o desejar, temos oftalmologistas no andar superior a este. Posso pedir para alguma enfermeira levá-lo.

– Obrigado, mas gostaria de estar ao lado do Kisai durante este exame.

– Vou ver o que posso fazer quanto a isso. Se quiser ir ao quarto, é a terceira porta à esquerda pelo mesmo corredor que acabei de vir, mas devo alertar-lhe que ele continua inconsciente.

– Ah sim! Até logo então.

– Tchau e boa sorte!


Entro no quarto silenciosamente e o vejo descansado sob os lençóis. A perna esquerda levemente erguida – pousada sobre o que parecia ser um travesseiro –, o ombro esquerdo enfaixado e a expressão serena em seu rosto tocam meu coração de uma forma inimaginável. Por que eu sentia tanta necessidade de protegê-lo? Por que eu estava agindo da mesma forma que agia com Shun? Era só a semelhante aparência física entre meu irmão e esse garoto que tocava meu coração?

Passado. Presente. Futuro.

O tempo misturava-se em minha mente e eu não conseguia parar de pensar na possibilidade de estar preso em uma armadilha. Talvez fosse uma ilusão provocada por alguém muito superior a qualquer inimigo que já enfrentei. Queriam me pegar a todo custo, mas quem seria o responsável? Quem poderia ser tão cruel assim e por que Athena não nos avisou?

Dúvida. Medo. Irracionalidade.

Um sentimento levava ao outro e eu não sabia mais o que era. Estava me sentindo tão... carente, tão sensível. Mas que diabos de sentimentos são esses? Eles não fazem parte de mim, não devem fazer! Sou Ikki de Fênix, sou o mais imponente, o mais destemido e cruel cavaleiro de bronze. Sou forte. Sou... humano.

Dor. Angústia. Carência.

Eu penso que vou enlouquecer. Como posso estar sentindo-me assim? Por que meu coração bate tão aceleradamente e por que desejo loucamente que Shun apareça ao meu lado como tantas vezes eu apareci ao lado dele? Droga! Eu não preciso de proteção, preciso? Eu só quero salvar este garoto, só preciso garantir que ele tenha um bom futuro, uma esperança e depois posso voltar à minha rotina.

– Ikki?

Ouço meu nome sendo pronunciado pela voz tão conhecida. Shun, o que era agora? Por que me chamava? Estava ouvindo meus apelos?

– Ei, estou falando contigo. Você se chama Ikki, não chama?

Pisco algumas vezes. Desde quando Shun agia assim? Ele era doce, educado, sensível. Além disso, ele sabia quem eu era, sabia que eu era seu irmão mais velho. Sinto um toque em minha barriga, seguro o pulso fino e baixo os olhos.

– Kisai? – pergunto com certa surpresa.

– O que foi? Tá querendo quebrar o meu outro braço, tá? – respondeu com a mesma agressividade que tinha na primeira vez que conhecemos.

– Oh! Desculpe, mas pensei que fosse outra pessoa.

– Um inimigo?

– Como você sabe?

– Oras! Até um retardado como eu sabe que todo herói tem inimigos...

– Quer parar com isso?

– Por quê? Não gosta de ser um herói? Prefere ser o vilão?

– Eu não estou falando de mim, falo de você.

– Como assim?

– Pare de se retratar como um retardado. Você não é!

– Como você tem certeza?

– Por que os médicos falaram que você não tem nenhum problema na cabeça.

– E por que eu não consigo ler ou escrever?

– Já ouviu falar em problema de visão?

– Já, mas...

– Eu ainda não posso garantir nada, mas assim que o médico permitir, eu o levarei para fazer um exame e descobriremos o que você tem.

– E se ele falar que não tenho nada?

– Então eu pesquiso o que poderia ser e te levo a outro especialista, mas acho que não será necessário.

– Como tem tanta certeza?

– Sou um cavaleiro de Athena e, por isso, aprendi a detectar os pontos fracos dos meus inimigos e dos amigos também. Era a única forma de ajudar, é o único meio de se trabalhar em equipe.

– Mas a Minu disse que você nunca se misturava...

– Eu não gostava de ficar bancando a babá de um bando de pirralhos. Além disso, achava que, sem mim, eles conseguiriam se desenvolver melhor. Eu era o mais velho e era considerado o mais forte. Além disso, eu não lutava por prazer e sim por necessidade.

– Acho que entendi. Você tinha medo que seus amigos deixassem tudo pra você.

– Mais ou menos por aí. – ri – Viu como você não é retardado? Conseguiu entender o meu raciocínio mesmo tendo apenas 6 anos de idade.

Kisai deu um meio sorriso e suas bochechas coraram. Passou os olhos no quarto, fitou o teto e depois voltou a me encarar. Como eu previa, ele não conseguia focalizar meus olhos. Era miopia! Não sabia em que grau, mas tinha cada vez certeza do meu diagnóstico.

– Você não é tão chato como eu pensei.

– E você é o garoto mais inteligente que já conheci. Agora descanse. Ficarei ao seu lado, mas se você acha que eu não percebi que ainda respira com certa dificuldade, está muito enganado. Portanto, exijo que não se esforce.

– Você não pode exigir... Não é meu pai!

– Se eu fosse você me obedeceria?

– Não porque meu pai me abandonou. Ele não gostava de mim...

– E também não ouviria um amigo, pois não é amigo de ninguém, estou certo?

– Como sabe?

– Também sempre pensei assim, mas devo avisar que, se não me obedecer por bem, o fará por mal. Duvida? – ameaço com um sorriso sinistro.

– Não sei, mas... to cansado. – ele bocejou largamente, sem nenhum pudor – Depois a gente conversa mais. – falou com a voz torpe e começou a fechar os olhos.

Coloquei meus dedos em sua testa, deslizei-os pelo rosto infantil e senti vontade de dar-lhe um beijo na testa, mas contive. A verdade é que eu havia usado meus poderes para fazê-lo adormecer novamente. Kisai se fazia de forte, mas era apenas um garoto e precisava de descanso, uma boa saúde física e mental. Teria um belo futuro, independente da carreira que escolhesse. Será que eu era o único que percebia isso?


Continua...


Nota da autora: Eu gostaria de agradecer à Aries Sin, que foi a primeira pessoa a ler este capítulo e a me dar dicas de desenvolvimento, bem como à Arthemisys que betou a fanfic com muito carinho.