Acrílica sobre tela

"A acrílica era como ela. Simples. E, como ela, adquiria uma grandiosidade insuspeita sobre o tecido grosso da tela. Eu evitava observá-la nesses momentos. Talvez por não querer que ela parecesse ainda mais fascinante. Cores demais. Vida demais."


AVISO: Essa fic contém slash, mais especificamente femmeslash - trocando em miúdos, duas mulheres se pegando (embora não tenha nada bastante descritivo). Mais especificamente, Andrômeda e Bellatrix Black se pegando. Sim, as irmãs, o que me leva a salientar que essa fic também contém incesto. Se por motivos religiosos/políticos/sexuais/culinários/seja qual for isso ferir seus olhos e te deixar bravo comigo, é direito seu fechar a janela e esquecer que viu essa fic. Se, por outro lado você é livre de preconceitos e aprecia uma boa história, vá em frente e deixe uma review dizendo o que achou.


Acrílica sobre tela

"And if you go
I wanna go with you
And if you die
I wanna die with you"
Lonely day – Sistem of a down

"É saudade, então
E mais uma vez
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez
Os traços copiei do que não aconteceu"
Acrilic on Canvas – Legião Urbana

Prólogo

Um dia ela disse que há sempre uma coisa na vida de cada pessoa da qual ela nunca vai poder fugir. E isso ela chamava de apenas destino. Era certo e inevitável, tal como sempre haveria estrelas por trás de um manto nublado que cobrisse inteiramente o céu. Esse era seu exemplo preferido, quando puxava o meu braço em direção ao sótão e me levava até a nossa janela. Nossa, era o que ela dizia. Aquele lugar do mundo que era apenas nosso.

Ela colocou um tapete velho ali, retirado de um dos baús antigos que eram guardados entre os móveis velhos e objetos mágicos cuja utilidade ninguém mais lembrava. As coisas guardadas no sótão não deveriam ser bisbilhotadas, era o que ouvíamos quando nos repreendiam por subir até ali sozinhas. Segredos, talvez. Coisas que os Black eram, ou que tinham sido um dia, e que não queriam que ninguém mais soubesse.

E, no entanto, não importavam as proibições, aquele era o lugar onde sempre éramos encontradas, deitadas de costas no tapete velho, carcomido de traças, tão antigo que não era possível saber qual teria sido sua cor original. Naquele tempo já era marrom, como se, depois de tantos anos de existência, tivesse adquirido a tonalidade da poeira que nele se depositava. Ficávamos mirando a ampla janela que se abria para o céu, nossos rostos iluminados apenas pela luz azulada da noite. Ela segurava minha mão entre seus dedos e apontava para um ponto brilhante. "Ali está, Bellatrix". E nos deixávamos ficar naquele tapete, no escuro, por toda a noite, até adormecermos juntas, nossos corpos gelados como a madrugada, pálidos e tão imóveis que poderíamos passar por duas bonecas idênticas esquecidas no chão.

Eu sempre achei que fosse uma mentira, mas uma mentira que Andrômeda, em sua ingenuidade, gostava de acreditar. Quem era ingênua? Quem realmente acreditou nos sonhos? Quem rasgou a própria alma e tingiu a tela de negro antes de desfazer o tecido em tiras? Quem ficou enfeitiçada com as esculturas de vidro equilibradas umas sobre as outras, como acrobatas num espetáculo de circo, antes que os dedos finos deslizassem para longe silenciosamente e tudo viesse abaixo? Quem ficou sob os cacos, e depois disso só pôde ver o mundo através de um filtro vermelho? Andrômeda realmente nunca acreditou.


Eu a matei. Disse isso logo no primeiro dia. Falei outras coisas também, mas no fim, era quase somente isso que tinha para falar antes de voltar para a cela. Ficava sentada no chão como uma lunática, meu rosto comprimido contra a grade gelada, os olhos girando ao acaso, percorrendo vagarosamente as paredes cinzentas, as antigas pedras cobertas de crostas esbranquiçadas, os filetes de água correndo verticalmente até se juntarem à camada vítrea que cobria o chão. O som constante do líquido enchia o corredor.

Eles não queriam saber. Queriam saber sobre as torturas. Sobre as maldições imperdoáveis. Sobre os cativeiros secretos e os métodos de interrogatório. Eles não sabiam que eu havia mesmo matado. Minha irmã.

"Por que você acha que a matou? Andrômeda Black morreu antes da guerra..."

Eu ria. Eu podia rir porque já era louca, mesmo antes das grades e das perguntas, antes das mortes. Antes dela. Eu repetia seu nome, me lembrando da exata entonação com que ela o pronunciava as vogais enquanto assinava.

Ela não assinava no início, apenas numerava as telas com um lápis. Isso era quando seus quadros tinham como destino as paredes do meu quarto, o chão, o teto, até cobrirem a janela e impedirem qualquer luz de entrar. Eu convivia com aquelas pinceladas, respirando o odor tóxico da tinta ainda úmida até perder a noção dos limites entre as cores, entre as telas e o quarto, entre meu corpo e o emaranhado de tons, e de mim surgia a tinta vermelha sobre as pinturas.

Depois, quando seus quadros passaram a ter outros destinos, ela passou a assinar com um pincel fino, os lábios formando os sons antes que as letras tomassem formato. An-drô-me-da. E me vinha a lembrança dos cabelos dela esvoaçando ao redor do rosto e tocando a tinta fresca, formando relevos estranhos na pintura.

Como a água. Eu a via, com os traços disformes e caóticos de sua pintura, nos reflexos que tremulavam na superfície da água, o laranja das chamas dos archotes se fundindo com o cinzento das paredes e o azul que se insinuava através de uma janela no fim do corredor. As cores se moviam em línguas que se enroscavam e se separavam continuamente, à medida que a água era agitada pelo vento que atravessava o corredor.

Inclinava o corpo o máximo possível contra as grades para ver a janela, e aquele pequeno pedaço de céu a que eu agora tinha direito. O azul me parecia de algum modo falso e voltava a olhar para a água, onde um azul intenso e perturbadoramente verdadeiro envolvia meu próprio reflexo. E me lembrava que já fazia algum tempo que as ilusões, as simples duplicatas de luz refletida, me pareciam mais reais que a realidade. Talvez porque a realidade ultimamente fosse terrivelmente cinzenta, como se todas as cores tivessem sido sugadas da tela do mundo e restassem apenas os traços negros, as sombras cinzentas e o fundo assustadoramente branco e vazio.

Meu reflexo, aquele que era mais real que meu corpo que se comprimia contra as grades da cela, mantinha o olhar para mim. O rosto emagrecido brilhava pela umidade acumulada sobre a pele e fios dos cabelos negros grudavam nas bochechas. No espelho instável de água via meus olhos. Meus olhos de verdade, com meu brilho de verdade. Aquele que havia me deixado há muito tempo. "Andie..."

Eu não estava facilitando as coisas, eles diziam. Ora, as coisas nunca tinham sido tão fáceis. Ali, naquela maldita cena úmida e escura, as cores fluindo na água suja que se acumulava no chão, as coisas me pareciam mais claras do que nunca. Não estava bom dizer sim para tudo? Eu não tinha vergonha de nada do que fizera.

Mais uma vez o reflexo. E dessa vez não era Bellatrix quem me espiava de lá. A face se tornara mais arredondada e os olhos faiscaram. A impressão durou apenas um instante, e logo em seguida havia apenas a mistura de cores e o irritante som dos passos na água. O bruxo se aproximou e meus dedos deslizaram nas barras da grade.

"Andie... Está falando de Andrômeda Tonks?"

Encarei os olhos escuros sob os cílios fartos do auror. Andie acreditava que tudo poderia ser corrigido. Como uma mão de tinta branca sobre a tela permitia que se recomeçasse do zero. Nem tudo, Andie, nem tudo.

Existia alguma forma de apagar tudo agora? Existia a palavra perdão para mim àquela altura? Existiu em qualquer outro momento?

"O senhor sabe pintar?"

Ele me encarou, seu rosto coberto pelas sombras oscilantes das grades, parecendo avaliar se deveria ou não responder.

"Eu costumava pintar", falei, sem esperar por uma resposta. "Fazia isso muito bem, diziam. Algumas galerias chegaram a exibir meus quadros. Era uma coisa que eu gostava. Pintei muito, mas provavelmente não há ninguém que se lembre disso agora". Suspirei. Andrômeda Black, Andrômeda Tonks. Andie. Sempre começava e terminava da mesma maneira. O reflexo na água. Os grandes olhos negros me mirando do berço. Olhos de "céu nublado", eu definiria muitas e muitas vezes, enquanto revisava todos os tons de cores existentes de tinta óleo em busca daquela única tonalidade. Era como se sempre houvesse nuvens escuras a frente deles. "Há uma pintura no átrio do Ministério da Magia... uma mulher com uma criança nos braços".

"Não sabia que aquela pintura era sua", ele deu um passo para fora das sombras, e sua pele morena foi iluminada pela luz avermelhada dos archotes.

"Não é. É de Andrômeda Tonks. Ela adotou esse nome para assinar os quadros mesmo antes de se casar. Ela não gostava de ser uma Black, a Andie, tinha vergonha. Nenhum de nós nunca entendeu isso".

"Foi por isso que a matou? Ela desprezou sua família e os humilhou ao se casar com Ted Tonks?" Mais passos na água. Ele agora estava bem à minha frente. Olhei para minhas mãos, ainda presas às grades, os dedos marcados com o avermelhado da ferrugem. Suas mãos estavam sempre esticadas na minha direção, desde o dia em que eu tinha me inclinado em direção aos braços de minha mãe e admirado o conteúdo de um pequeno embrulho amarelo. E desde o início ela sempre pareceu estar muitos passos a minha frente.

Cerrei os dentes e os vi aparecer sob meus lábios no reflexo. Isso costumava ser um sorriso. Há muito, muito tempo. Quando eu sorria de verdade. Quando eu me sentia mais real que meu reflexo. Não era mais de interrogatório, mas uma confissão. Mesmo que não existisse perdão possível. Mesmo que minha culpa não tivesse sentido.

Eu a admirava acima de todos. Andrômeda. Agora parecia-me que sempre soubera o nome dela, mesmo antes de nascer, como se ela sempre tivesse existido. E eu dissera ao auror que pintava...
Não era verdade. Perto dela eu rabiscava telas. Com onze anos eu pintava flores. Com essa idade ela trazia para as telas a exata impressão de se mergulhar num lago de gelo, pintando nosso jardim de inverno na tela, não como se espalhasse tinta sobre o tecido, mas como se espalhasse ali o próprio frio, o branco indefinível da neve e o cinza morto das pedras e das plantas adormecidas. Quando eu dizia que queria pintar como ela, minha mãe perguntava para que queria pintar coisas que ninguém entendia. Como explicar o que a pintura significava para mim? Enquanto tudo que minha mãe queria era que meu pai encontrasse ocupações suficientes fora de casa e que sempre houvesse festas de gala onde pudesse desfilar com vestidos caros e jóias exclusivas, eu desejava, com toda a minha escassa fé entremeada de cinismo, pintar não apenas objetos, mas almas nas minhas telas.

Eu queria acreditar que tinha realmente uma fé a qual apelar. Eu queria celebrar minha fé, minha crença da vida, nas cores e nos traços trabalhados de tinta óleo. Queria ser reconhecida. Queria que a pintura me fizesse imortal. Talvez tudo se resumisse àquela palavra. Eu queria ser imortal, ainda que apenas nas tintas cercadas de molduras. Eterna.


N.A.:
A primeira femmeslash que eu escrevo, quero reviews.
Acrílic on Cancas é uma música do Legião Urbana, em português, acrílica sobre tela, uma técnica de pintura.

Agradecimentos: Katherine, que me mostrou a música Acrilic on Canvas (linda, ouçam) e me deu o título da fic; Ferfinha, que mestrou o challenge Femmeslash do fórum 3Vassouras para o qual a fic foi escrita e exigiu que eu terminasse; Gutenha, que foi uma beta rápida e solícita; Poli, que fez uma capa linda mesmo antes de eu ter um título para a fic; as nozes em geral, eu não teria ido em frente sem vocês!