Capítulo 1

Luzes.

Ampolas iluminadas com a eletricidade, brilhantes e incandescentes. Espalhavam-se por toda Tokyo, tomando tudo o que viam pela frente. Nos postes, nos faróis dos carros, nos letreiros luminosos e propagandas espalhafatosas... Até mesmo nos tênis de uma ou outra criança que circulavam pela rua...

Luzes.

Eram aquelas luzes que clareavam o céu naquela típica noite japonesa. Eram elas que, sem brio ou discrição, rivalizavam com o brilho tênue e frio da lua minguante.

Lá estava ela, no centro do céu, como um arco prestes a disparar uma seta. Pálida. Altiva. Bela. Passava despercebida aos transeuntes, ignorada pelas pessoas. Era culpa das Luzes...

Assim era, até um par de íris azuis focarem-se nela.

Um pouco afastado do centro de Tokyo, burlando os portões de ferro e as paredes espessas, aquela energia lunar invadia o coração da jovem Saori Kido.

Por algum motivo que ela desconhecia, não conseguia pregar o olho e, cansada de revirar-se sob os lençóis, a deusa levantara-se, trajara o fino roupão pondo-se a observar as luzes do centro através da janela de seu quarto.

Saori inclinou a cabeça, apoiando-se no vidro. Um dos fatores da insônia poderia ser a preocupação, mas com o quê? Sua vida e toda a situação estavam em perfeita calmaria e, por que não dizer, paz. A Fundação prosperava mais e mais a cada dia, todos os cavaleiros (graças aos Céus) passavam bem, cuidando de suas vidas, e (o mais importante) desde a luta contra Ártemis, tudo havia permanecido "quieto", como uma miniatura inanimada do Mundo Perfeito. Ela mesma ia ao Santuário apenas para arcar com suas responsabilidades como deusa ou apenas numa visitação, fora isso...

Parou imediatamente com seus pensamentos ao sentir uma aura pesada invadir o recinto. O aroma acre e, infelizmente, conhecido entrou em seu ser, provocando-lhe náuseas. Sangue recém-derramado. Um mau pressentimento percorreu cada célula de seu corpo, fazendo-a afastar-se rapidamente das janelas.

O que foi a tempo, pois no mesmo instante os vidros estilhaçaram-se, fazendo cair sobre o quarto uma chuva de vidro e pedaços da cortina escarlate. De dentro das crateras abertas na parede, a japonesa pôde ouvir seu nome sendo gritado por um coro de vozes agourentas:

- SAOOOOOORI!!!!

Ela saiu apressadamente do quarto, batendo a porta atrás de si. Por um segundo tivera a impressão de reconhecer... Calafrios percorreram sua espinha ao completar o pensamento. Tentando acalmar-se, deixou as costas encostarem e deslizarem pela porta, porém o coro ainda gritava seu nome, desta vez dentro de sua cabeça.

O som claro de algo se quebrando afastou-a das vozes. Vinha do andar de baixo, acompanhado por o que parecia um gemido. Era débil e rouco, mas inconfundível. Levantou-se e correu escadaria abaixo.

A escuridão e a plena quietude da sala pioravam ainda mais sua impressão que algo ali estava errado. Cautelosamente, procurou o dono da voz pelo hall e o salão de jogos, até ouvir novamente seu nome ser chamado, do jardim. Correu até a varanda e se deparou com um vulto de pé. Saori respirou aliviada ao ver os contornos da armadura contra a luz da noite. Deu o primeiro passo, querendo a explicação para todo aquele filme de terror barato.

- Ikki... O que está acontecendo?

A resposta veio na forma de um "Atena" estrangulado, para então o cavaleiro tombar, revelando as enorme feridas e a armadura semi-destruída. As íris azuis transbordantes de uma surpresa dolorida e fria, somada a poça rubra que inundava o carpete fizeram-na exclamar de horror.

Fênix jazia morto a seus pés.

Tremendo mais do que nunca, ela ouviu o coro novamente em sua mente, percebendo no meio das vozes a do defunto. Era verdade, reconhecera antes! Com medo, correu para o jardim para então ver as imagens de Shiryu, Shun, Hyoga, Seiya e todos os outros cavaleiros, dilacerados e estirados no chão fétido e tinto de sangue.

Seus olhos arderam mais que nunca e seu coração reduziu-se a um tamanho tão minúsculo que lhe doeu. As vozes, os gritos, os chamados de desespero, eram deles, de todos eles...

- Quer saber quem fez isso?- Uma mão pálida e gelada agarrou seu ombro e a girou com força, pondo-a de frente para um espelho. Com um nó na garganta, Saori viu a própria imagem refletida, o báculo na mão direita, imundo de sangue. E atrás de si uma mulher que mais parecia a personificação da morte.

- Você... - Ela começou a murmurar, obrigando a deusa a olhar para a peça.

- Não...

- Todos os sacrifícios, todas as mortes... Tudo por você, Saori Kido.

- NÃO!- Ela sobressaltou-se no pequeno sofá do quarto, suando e tremendo. Seu estômago revirava com a súbita percepção da realidade. Ela dormira... e tudo aquilo fora excessivamente real...

- SENHORITA SAORI! – A porta foi aberta com um estrondo e Tatsumi entrou, aflito para saber a razão do grito da jovem patroa. Mas, antes que dissesse "o que está acontecendo?", o estômago de Saori deu seu primeiro grito de revolta, fazendo correr até o banheiro da suíte e derramar privada abaixo o jantar. Os cadáveres de feições desesperadas e o mau estar do sonho ainda assombravam-na.

- Melhor chamar um médico... – o mordomo ponderou, assustado em vê-la tão pálida.

-... N-não Tatsumi... – a voz da deusa havia saído fraca e estrangulada entre as tosses e tentativas de recuperar o fôlego, já sentada no chão do banheiro. – E-eu estou melhor agora...

Obviamente, Tatsumi insistiu:

- A senhorita está pálida e acaba de vomitar! Definitivamente, não está bem!

- Tatsumi. – a voz da japonesa saiu firme, miraculosamente livre do tom embargado. – Foi apenas algo que não me caiu muito bem. E seja lá o que fosse meu corpo encarregou-se de mandá-lo embora. – disfarçou com um sorriso, apontando para a privada. - Só preciso de um pouco de descanso agora, está bem?

- Mas...

Um momento de silêncio, um milésimo de segundo. O suficiente para os orbes azuis brilhassem, determinados, frustrando o empregado de qualquer contestação.

- Está bem, senhorita. – murmurou resignado. Recolhendo-se a sua insignificância serviçal, pôs-se a caminho da porta.

Nos poucos segundos que o trajeto levou, Saori teve o ímpeto de relembrar a sensação de veracidade do pesadelo, fazendo com que sua boca ficasse seca e o que parecia ser um último calafrio passar-lhe pela espinha. Maldita era a insegurança causada por sonhos! Sentindo-se nada mais que uma criança, mas ainda levemente assustada, pediu, no exato momento em que o mordomo tocava na maçaneta:

- Tatsumi... Poderia, amanhã, claro, organizar uma viagem para a Grécia; o quanto antes, sim? Preciso ir ao Santuário.

- Como quiser, senhorita. – e saiu.

Sozinha no quarto, a deusa perdeu-se nos próprios pensamentos. Algo dentro de si dizia-lhe para ir ao Santuário, verificar se cada um dos sobreviventes daquelas cruzadas sem fim estava bem. Por outro lado, a perspectiva de estar tão impressionada assim com um sonho dava-na a impressão de parecer uma menininha boba. Porém, lembrando-se do sonho que tivera pouco antes de toda a odisséia contra Hades começar, mandou suas hesitações para o espaço.

Depois de terminar de refletir sobre o que ocorrera, percebeu apenas que uma dúvida lhe restava: Por que não contara a Tatsumi sobre todo o ocorrido em seu subconsciente?...

- Bah, melhor esquecer... - ela pôs a mão na testa, suspirando. - Talvez Kiki tenha razão, afinal. Depois de tantas batalhas, devo estar ficando paranóica...

Começou sua jornada de volta para a cama, mas não sem antes dar uma olhada nas janelas.

As luzes ainda brilhavam como nunca lá fora.

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Dentro de um quarto escuro, iluminado por poucas velas dispostas em semicírculo. A respiração quase nula e a mente entorpecida num paradoxo controlador, como que tentando recuperar o controle sobre o próprio corpo. Os olhos e pele, pálidos e mortiços como mármore. Tudo isso fervilhando dentro de um cosmo negro como a própria escuridão.

Em resumo, quase a própria personificação da morte.

- AH! – ela gritou quando se livrou do torpor, tremendo dos pés a cabeça. A respiração e o compasso do coração tornavam-se febris, enquanto a moça voltava gradativamente a ter uma aparência não tão sobrenatural. Cansada, ela deixou-se tombar para trás, mas, antes que tocasse o chão, fora amparada por uma companheira.

- Pelas deusas! – Exclamou, preocupada com a desmaiada. – Elpis, ela...

- Está exausta, apenas isso. - Hipólita aproximou-se das duas para depois limpar o suor da desacordada. - Bom trabalho, querida, muito bem. - e voltando-se para que a segurava no colo – Não se preocupe, 'Ina. Controlar os sonhos de um deus, qualquer que seja, não é uma tarefa fácil. Ela está bem. Por ora, leve-a e a deixe descansar.

A mulher obedeceu, a armadura reluzente mostrando ser uma amazona. Ela deixou o aposento fechado, Elpis sozinha. Ao que tudo indicava tudo corria conforme o plano: primeiro, o alerta e depois...

Suspirou consternada, tentando não pensar no esquema e na sua conseqüência final. Tentando ocupar-se, retirou as cortinas pesadas do quarto, liberando as janelas. A noite parecia serena, sem nenhum barulho perturbador, num marasmo sutil e quente de verão. Era...

- O cenário perfeito para uma conspiração... - a grega ouviu uma voz conhecida atrás de si, permanecendo no mesmo lugar em que estava, no peitoril da janela.

- Lyra...

- Eu sei, deveria estar com as outras... - a ruiva posicionou-se a seu lado. - Vim ver se está tudo bem. Uma e Hai estavam vindo, mas as convenci a tratar dos últimos detalhes... Estamos preocupadas com você.

A rainha sorriu e segurou a mão da discípula.

- Eu ficarei bem, querida... Você sabe...

-... Que sempre. - a outra completou, focalizando nas mãos unidas. – Diz isso para nós desde éramos crianças.

A ruiva abaixou a cabeça, o olhar triste. Sim, Elpis sempre falara aquela frase, mas naquela ocasião, especificamente, duvidava que a senhora dissesse a verdade.

A morena, percebendo isso, apertou a mão de Lyra.

- E eu sempre direi. – ela fitou a moça, que permanecia na mesma posição – Ly, é sério. E olhe para mim quando falo com você. – Ela ergueu o rosto e Elpis depositou a mão livre em seu rosto. - Paremos agora, sim? Sabe que não tenho prazer maior do que falar com você, mas...

Lyra sorriu-lhe, conformada. Apenas de ouvir o tom de voz usado, sabia que não arrancaria nada de Elpis:

- Não é o momento apropriado... Sei... Continuaremos com a mesma tática?

A morena afastou-se da ruiva com delicadeza, tomando o caminho para fora do quarto. Antes de sair, escorou-se no batente do portal e lançou um olhar sério para Lyra:

- Conhece o velho ditado, criança. Nós devemos manter nossos amigos próximos e os inimigos, mais próximos ainda.