Disclaimer: Este é um fan work, feito totalmente sem fins lucrativos. Os direitos de Saint Seiya, Saint Seiya Episódio G e de todos os seus personagens pertencem à Toei Animation e Masami Kurumada. A exploração comercial do presente texto por qualquer pessoa não autorizada pelos detentores dos direitos é considerada violação legal.
Notas da Autora: Eu sempre gostei da lenda do Tanabata e sonhava com o dia em que poderia escrever algo sobre ela!
Eu não sou japonesa, apenas uma entusiasta. Esta história foi o resultado de muita pesquisa. Se notarem algum equívoco grave não mencionado no glossário, eu estou disposta a fazer as devidas notas e correções.
Espero que gostem da minha primeira fanfic de Saint Seiya.
Ouvir Estrelas
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
Olavo Bilac
Os vastos jardins da Mansão Kido estavam particularmente bonitos aquele verão. Após a grande reforma que devolvera a aparência original à propriedade, Saori ordenou que fossem plantadas flores da estação em toda a volta da casa, resultando naquela exuberância digna da morada de uma deusa.
Agora o crepúsculo tingia as azaléias, hortênsias e flores de alfazema com matizes de laranja. Não tardaria para que a meia-lua surgisse no horizonte, como um sorriso, alegrando o céu noturno.
Shun caminhava indiferente em meio a todas estas belezas. O jovem cavaleiro tinha sensibilidade o bastante para desfrutar de um lindo pôr-do-sol, porém estava imerso demais em sua melancolia para perceber o que quer que estivesse acontecendo à sua volta. Assim tão distraído, foi bruscamente arrancado de seus pensamentos ao esbarrar com tudo em... alguma coisa.
Sobressaltado, deixou escapar um grito. A vítima de seu descuido também gritou, fazendo com que o susto fosse ainda maior.
- Meu deus, o que você está fazendo aqui? Meu coração quase saiu pela boca!
- Desculpa... eu tava só brincando com os vaga-lumes. – Kiki, o pequeno lemuriano, explicou inocentemente.
Shun não tinha visto vaga-lume nenhum até então. De fato, havia muitos deles voando ou luzindo entre os arbustos. Expirou fundo, surpreso com a própria abstenção de sentidos.
- Pensei que estivesse com Shiryu em Rosan!
- Eu resolvi ficar e aproveitar essa casona. Não sei como você não me viu...
O seu estado de nervos não era dos melhores, mas não seria agora que Shun começaria a descontar frustrações numa criança.
- Está tudo bem. Por favor perdoe esse cabeça-de-vento.
O cavaleiro esboçou um sorriso e, ao virar as costas para voltar à Mansão, sentiu que o menino o puxava pelo braço.
- Ei! Espera!
- O quê?
- Por que está tão triste? – Kiki perguntou, genuinamente preocupado, com aquela sinceridade que só as crianças têm.
- De onde você tirou essa idéia?
- Está tudo bem no mundo, Athena está a salvo e feliz, mas você está sempre sozinho quando deveria estar se divertindo e aproveitando a paz junto a seus companheiros!
Shun suspirou. Como era difícil lidar com aquela verdade, saída dos lábios de alguém tão jovem. Agachou-se para ficar no mesmo nível dos olhos do menino.
- Ouça, Kiki, algumas vezes os adultos têm problemas que as crianças não entendem.
- Mestre Mu explicou uma vez que adultos às vezes ficam tristes por causa de coisas que deveriam fazê-los felizes. Os adultos ficam tristes por causa do amor. É por isso que você está triste? Por causa do amor?
Bingo. Kiki estava certo mais uma vez. Será que aquele garotinho podia ler mentes também?
- O amor é um assunto muito complicado para você, criança. Mas você acertou direitinho, eu estou triste por causa do amor e esse é um problema só meu. Nem mesmo Athena poderia me ajudar pois é algo que tenho de resolver sozinho.
Vendo a carinha de decepção de Kiki por não poder ser útil, Shun acrescentou:
- Não fique frustrado. Eu já me sinto um pouco melhor sabendo que alguém se importa.
O rosto de Kiki se iluminou. Ele fez uma pausa dramática como se num estalo tivesse descoberto a cura para os males do mundo.
- É isso...! – Murmurou, antes de expor sua brilhante idéia. – Eu não posso te ajudar, mas as estrelas podem!
Shun franziu a testa, confuso. Estrelas?
- Isso mesmo, a Festa das Estrelas vai ser amanhã, a Saori me falou sobre esse dia.
- O Tanabata Matsuri! – Shun sorriu.– Eu tinha me esquecido...
- Vega e Altair são estrelas que sabem tudo sobre o amor. Elas vão simpatizar com o seu pedido!
Se fosse verdade que havia um dia em que as estrelas estariam propícias a realizar milagres, este dia estava próximo. Não custava nada tentar.
Shun estava um pouco mais animado após a conversa com Kiki. Mesmo sendo uma criança ingênua, o garoto lhe dera mais esperança do que qualquer adulto poderia.
"Isso só prova o quanto você é mais inocente do que ele."
Havia um lado de sua mente que gostava de recriminá-lo, mas dessa vez ele não se permitiu levar por aquela vozinha incômoda. Ao invés disso, afirmou para si mesmo que tudo correria bem. Já estava mais do que na hora de encarar o problema de frente.
Shun descia de sua suíte para o jantar, que era servido religiosamente às sete e meia, quando passou em frente ao quarto de Ikki e notou que a porta estava entreaberta. Havia uma certa movimentação lá dentro.
- Irmão? Está aí? – chamou.
-Sim, pode entrar.
Ele entrou. As roupas espalhadas pela cama e a sacola de viagem aberta confirmaram suas suspeitas
-Vai nos deixar mais uma vez? Você vai perder o Tanabata.
Shun jamais perguntava para onde Ikki estava indo. O irmão era muito evasivo no tocante a esse assunto, se irritava facilmente com interrogatórios de qualquer espécie.
-Eu sei, mas não estou em clima para festividades. Não estou agüentando mais ficar aqui, sem ter nada melhor para fazer do que nadar na piscina ou jogar bola com o Seiya. Isso não é vida para mim.
-Eu sabia que você diria algo do tipo. Mas Ikki... você não está tentando me evitar... está?
-Você é meu irmão, como posso querer lhe evitar? Não diga mais essas besteiras.
-Só pensei que... depois que conversamos sobre aquele assunto... bem, esquece.
"Conversamos" tinha sido um eufemismo. Na verdade os irmãos tiveram uma discussão como nunca antes. Shun ainda lembrava das acusações, da decepção no rosto de Ikki...
"Ele o seduziu? Ah, se aquele desgraçado fez mal para você, eu matooo!"
"Calma, ele não fez nada... ele não sabe de nada..!"
Ikki sorriu, afagando brevemente os cabelos de Shun. - Eu já não pedi desculpas?
-Perdão, estou sendo infantil. – Shun suspirou, aliviado. –Vou sentir muito a sua falta.
-Espero sinceramente que você use o tempo em que vai ficar livre de mim para refletir sobre o que quer fazer com sua vida.
-Eu já pensei. Pensei até demais.
-Você sabe que eu não gosto nem um pouco da idéia de ver o meu irmão sofrendo por causa de um homem. Ainda mais sendo aquele pato...
Shun não gostava quando o irmão se referia à Hyoga daquela maneira debochada, mas resolveu que era melhor não argumentar. Não havia muito o que fazer a respeito, já que era claro que os dois cavaleiros não se davam. Colaborariam meio a contragosto para o bem do Universo, toleravam-se na convivência diária, mas querer que fossem grandes amigos era pedir demais. Eles tinham gênios fortes, personalidades marcantes com um firme traço em comum: não sabiam ceder.
-...Mesmo assim prefiro que você acabe de uma vez com essa história. Fale com ele logo.
- Eu decidi que vou conversar com ele... amanhã... no dia do Tanabata.
- Humpf, você é um romântico incorrigível. Faça como quiser, mas faça!
Ikki podia ter convicções diferentes, mas preocupava-se com a felicidade de Shun. Aquela era sua maneira ranzinza de manifestar apoio.
- Eu vou me esforçar.
- Lembre-se que se ele te fizer derramar uma única lágrima, eu o mando para o inferno sem escalas!
No horário de sempre, o jantar estava posto. Shun, Hyoga e Kiki ocupavam pouco espaço naquela mesa de dimensões tão palacianas e logo a ausência de um dos cavaleiros se fez notar.
-Onde está Ikki? – Saori perguntou casualmente antes de provar o consomê que era servido como entrada. – Ele não vem jantar?
-Meu irmão resolveu viajar novamente. – Shun respondeu meio sem graça.
-E nem mesmo se despediu? Ah, nunca vou compreender as motivações de Fênix.
Com excessão de Saori, mais ninguém parecia desapontado com a notícia. Tatsume, que servia a mesa resmungou:
- Ele é um rebelde petulante, Senhorita.
-Tatsume! Não fale assim de meu cavaleiro!
- Ah...! Mil perdões!. – O mordomo enrubesceu de raiva. Ikki era sempre a causa de seu desgosto.
-Só espero que ele não tenha ficado insatisfeito com algo em minha casa. – Saori disse, ignorando a cara de aborrecimento de seu empregado.
-De forma alguma, muito nos honra morar sob o mesmo teto que a Senhorita. Meu irmão apenas precisa ficar um pouco sozinho.
-Fico feliz em ouvir isso. Mas ainda sinto que ele não nos considere sua família.
-Ikki não vai mudar, Saori. É o jeito dele ser, devemos respeitá-lo. Creio que em breve estará de volta, não é?– Hyoga pronunciou-se pela primeira vez, fazendo com que Shun ficasse ruborizado e surpreso com tanta cortesia.
-Ele prometeu que não vai demorar.
-Então está tudo bem. – Saori sorriu e todos voltaram a comer, sem falar mais no assunto.
O prato principal era linguado, o favorito de Shun. Ele mal tocou na comida.
Shun não conseguia dormir. Quanto mais tentava se convencer de que seu corpo precisava de descanso, mais difícil ficava pregar os olhos. Sua cabeça não queria relaxar. Os pensamentos fluíam incontrolavelmente, afligindo-o com receio infantis, diálogos fora da realidade e, em meio a eles, recordações amargas da discussão com Ikki.
"Meu irmão, homossexual... Como você achou que eu ia me interessar por alguém como você? Eu tenho nojo de você! Eu sempre suspeitei, mas não quis ver, fechei meus olhos para a verdade. Como você é ingênuo. É só uma fase, não é? Diz que é só uma fase! Se você fosse uma mulher..."
Ele gostaria muito de calar de uma vez a boca de sua mente. Como se o problema real não fosse ruim o suficiente, ainda tinha o calor. Shun estava sentindo tanto calor que a roupa de dormir colava-se na pele febril, o cabelo grudava nas têmporas e volta e meia as pontas das franjas caíam nos seus olhos, irritando-os. As cobertas logo tornaram-se um estorvo. Rolava de um lado para o outro na cama sem achar uma posição confortável o suficiente, uma que não o fizesse sentir tanta falta de ar.
Quando mesmo o roçar da colcha e dos travesseiros tornaram-se incômodos demais, Shun desistiu de tentar pegar no sono e foi até a cozinha se refrescar um pouco.
Bebeu meio litro d'água quase que num fôlego só, aplacando aquela sede infernal que estava sentindo. Ele sabia que aquelas sensações nada agradáveis eram efeitos psicológicos do nervosismo, mas como evitar ficar assim se em breve ele estaria se declarando para Hyoga? Nem a hipótese de uma batalha mortal era capaz de abrasar sua alma daquela maneira ridícula.
Shun considerou voltar à suite para tomar um banho rápido, mas algo na sala de estar pareceu convidativo. Resolveu ficar ali, quietinho, observando o céu através de uma das altas janelas por alguns instantes. Podia distinguir bem as formas das constelações.
"Espero que os deuses sejam auspiciosos e nos dêem uma noite limpa amanhã."
O rapaz pousou as mãos espalmadas na vidraça e aproximou o rosto para enxergar melhor. Teve a impressão de ter visto uma estrela cadente, mas talvez fosse um vaga-lume de Kiki errando pela madrugada.
Ele suspirou, recriminando-se por sua imaturidade. Por que agarrava-se a superstições com tanta força? Que tipo de desespero era aquele?
Subitamente uma voz familiar cortou seu diálogo interno.
- Shun...
- Hyoga...! – confirmou, sentindo o coração falsear.
Ele olhou rapidamente para trás e voltou-se para a janela, procurando esconder todo o embaraço que sentiu ao realizar que estava vestido da forma mais inapropriada possível: apenas com uma blusinha leve e um par de shorts curtíssimos que deixavam suas coxas totalmente vulneráveis a qualquer olhar. Naquele momento Shun agradeceu aos céus pela penumbra; o luar não era revelador o suficiente para denunciar o rubor em suas faces.
- Eu atrapalho?
- Ah! Lógico que não!
- Não consegue dormir, Shun?
- É... eu... vim tomar um pouco de ar. Você também está insone?
- Kiki não quis dormir sozinho e foi para o meu quarto. Não sei como Shiryu consegue dormir junto de uma criança que se mexe o tempo todo...! Ainda mais nesse calor.
Hyoga aproximou-se de Shun e parou a poucos centímetros de distância. O cavaleiro de Andrômeda podia sentir a eletricidade da pele do outro, arrepiando-se de desejo.
Shun olhou rapidamente para Hyoga. Como que para aumentar seu desespero, ele também não estava muito composto... Aquela regata branca marcava todos os contornos do peito torneado. Mesmo de relance, Shun pôde ver até as pequenas saliências dos mamilos sob o tecido fino... Tentou não pensar muito nesses detalhes ou ficaria constrangido, diria muitas bobagens.
- A Ilha de Andrômeda era um forno durante o dia e gelada de noite. Mas eu me pergunto porque não consigo dormir aqui enquanto lá eu simplesmente apagava.
- Engraçado. Parece que gente se acostuma até com o inferno.
- Ei, não é isso. – Shun riu, divertindo-se com o modo espirituoso de Hyoga - Acho que sinto falta do mar. Aqui não é tão longe do litoral, mas não é a mesma coisa.
- Entendo. Ei, falando em litoral, Kiki anda empolgado com uma tal festa que vai acontecer perto da praia. Você sabe direito o que é?
- Ah, é verdade. O Tanabata Matsuri. É um festival muito bonito, com decoração tradicional, comidas típicas, concursos, música... nunca esteve em um?
- Humm. Não me lembro de nada disso.
- Eu não estive em muitos destes, mas posso dizer que é bem divertido. Acho que a Senhorita Saori e Seiya vão querer ir... a gente pode pegar uma carona.
- Ah, eu adoraria! Mas só se você for. Não quero ser acusado de atrapalhar os pombinhos.
Shun ficou um pouco espantado com o modo direto com que Hyoga tratava o assunto.
- Hyoga, você é impossível! Quer dizer que você acha que o Seiya e a Senhorita...
- Acho não, eu tenho certeza. Você nunca percebeu?
- Não acredito que estamos acordados de madrugada fazendo fofoca!
- Mas não é verdade?
Ambos caíram numa gostosa gargalhada. Shun teve que tapar a boca com as mãos para não fazer muito barulho.
- Está certo, está certo! Vamos parar de falar da vida alheia. – Hyoga disse, limpando algumas lágrimas nos cantos dos olhos – Afinal, o que é comemorado nesse tal "Tabanata"?
- Tanabata...
- É, ou isso.
- Como vou explicar...? A história é um pouco longa.
- Não estou com um pingo de sono.
- Bem, a lenda conta sobre Orihime e Kengyuu, ou seja, as estrelas Vega e Altair. Orihime era uma moça que tecia as mais belas vestes e seu pai, o Senhor Celestial muito se orgulhava disso. Porém Orihime era solitária e o Senhor arranjou o casamento entre ela e Kengyuu.
Shun baixou os olhos ao sentir que Hyoga o fitava, interessado no que ele dizia.
- Os dois se apaixonaram e viviam se amando. Orihime estava tão apaixonada que negligenciou seus afazeres. Por isso o Senhor Celestial, insatisfeito, separou-os colocando a Via-Láctea entre os dois. Porém, uma vez ao ano foi concedido a eles o direito de se encontrar. Eles ficam tão felizes que realizam os pedidos dos humanos nesta data...! É mais ou menos isso.
- É uma história muito romântica. Me lembra alguns contos russos... – Hyoga sorriu, gentilmente – Como se faz um pedido às estrelas?
- Sim, os pedidos são escritos em papeizinhos coloridos, chamados "tanzaku" e são pendurados em ramos de bambu. As cor do papel varia de acordo com o tipo de desejo. Se você quer dinheiro deve comprar um tanzaku amarelo, para esperança o ideal é o verde, paz celestial é o azul, branco é para a paz, vermelho para a paixão e o cor-de-rosa é para o amor...
- Você é mesmo uma pessoa detalhista.
- Hum, deve ser coisa do meu signo.
- Vou ter certeza de comprar um tanzakuna cor certa. Você acha que as estrelas vão atender ao meu desejo?
- É claro, se for de coração.
- Então posso contar com isso?
Shun sentiu-se estremecer ao ouvir a voz sussurrada de Hyoga. Pela onda de calor que inundou seu rosto, deduziu que estava parecendo um pimentão vermelho naquele momento. Tentou desconversar.
- Pena que eu não tenha um quimono de verão para usar.
- Eu tenho um desses! "Yukata", não é? Comprei logo que voltei ao Japão, sem nenhum motivo especial, de brincadeira mesmo. Essa vai ser a minha primeira oportunidade de usá-lo para valer... embora eu não ache que vá ficar muito bem dentro dele.
- Como assim? Por que não ficaria?
- Apenas acho que deve ficar bem mais bonito em um japonês puro. Se quiser eu posso te emprestar...
Era um sacrilégio que o russo tivesse coragem de dizer tal besteira. Naturalmente nem todos os ocidentais ficam jeitosos usando quimonos yukata, mas Shun sabia que aquele não era, em absoluto, o caso. Hyoga podia ter cabelos loiros, mas a forma amendoada dos olhos e o tom dourado da pele denunciavam suas raizes orientais. Era uma combinação incrível.
"Hyoga dentro de um yukata!" - A possibilidade deixou Shun extremamente excitado.
- Não precisa, é sério. Você é suficientemente japonês para ficar bem de trajes típicos.
- Você na verdade quer me ver todo enrolado para vestir esse quimono...
- Eu juro que vou lhe ajudar.
- Promessa é dívida.
Shun acordou um pouco mais cedo do que o habitual naquele domingo. Ele desceu as escadarias para tomar o café-da-manhã ainda pensando na beleza do rosto de Hyoga sob a luz das estrelas. A conversa agradável da noite anterior tinha se estendido um bocado. Falaram de todas as amenidades possíveis. Era incrível como tinham coisas em comum, como o tempo fluía macio quando estavam juntos e todos os pensamentos negativos o abandonavam.
Normalmente Hyoga era o primeiro a levantar na Mansão Kido e por esse motivo Shun estranhou que não estivesse presente à mesa.
- Bom dia, Senhorita, bom dia Kiki!
-Bom dia! – Os dois responderam quase em uníssono.
-Ué, onde está Hyoga?
-Estão fugindo um a um. – Disse a moça sorrindo, numa das raras vezes em que fazia uma brincadeira. – Deve ser o tempero da comida...
Shun escondeu uma risadinha com as mãos.
-O Hyoga ainda está dormindo que nem uma pedra, Saori. Ele quase me derrubou da cama. – Kiki reclamou, um pouco indignado. – Ele tem mania de dormir todo esparramado. Ao menos ele ronca menos que o Seiya.
-Erm, Kiki, não se deve falar assim da intimidade das pessoas. – Ela tentou explicar, enrubescendo.
-Que mal tem? É tudo verdade! – O menino protestou. Não dava para discutir com uma criança.
-Bem, ao menos ele é sincero. Então, está animado para a festa de hoje? Vai agüentar ficar acordado até tarde? Se Seiya souber que você contou o segredo dele, não vai querer levá-lo nas costas se você pegar no sono. – Saori disse, piscando um olho para Shun.
-Eu já estou bem grandinho para isso. – Kiki falou orgulhosamente cruzando os braços.
-Acho bom. – Disse ela. E voltando-se para Shun: - Você vem conosco? Vai ser uma linda noite.
-Sim, claro, obrigado pelo convite.
-Eu convidei Seiya e Hyoga também. Infelizmente não teremos a companhia de Ikki e Shiryu.
-Vai ser tão legal, Shun, a Saori até me deu uma roupa japonesa!
-Sim, eu mandei fazer um yukata especialmente para ele. Ficou uma gracinha! Você tem um yukata, Shun?
-Não... eu não me lembrei a tempo de comprar um. É uma pena.
-Ah, não acredito! Se não fosse um domingo eu poderia pedir a Tatsume que...
-De modo algum eu quero dar trabalho à Senhorita!
-Ora, Shun. Não é trabalho... temos toda a Fundação ao nosso dispôr. Vocês fizeram tanto por mim e eu não posso lhes dar um simples agrado?
-Não precisa... eu vou ficar constrangido. Gostaria de usar yukata mas isso não é imprescindível...
-Pode ir tomando o seu café-da-manhã, Kiki, mandei trazer aquele bolo de chocolate que você adora. Nós vamos conversar um pouquinho e já estamos vindo. – Saori falou para o menino, que assentiu imediatamente.
Shun acompanhou Saori até o hall. Quando estavam longe o suficiente dos ouvidos atentos da criança lemuriana, a garota explicou-se.
-Olha, eu tive uma idéia agora. O corte do yukataé bastante neutro e os tamanhos praticamente não variam. Tenho muitos aqui, de várias cores... mandei trazê-los da casa de veraneio onde estavam guardados. Fiquei muito feliz em ver que não tinha perdido todos os meus objetos pessoais. Há de ter um mais tradicional, com uma estampa unisex, que você possa usar, se você não se importar, é claro!
Shun ficaria um pouco envergonhado em usar uma roupa pertencente à Saori, mas ele queria tanto ir vestido tradicionalmente que a vontade foi maior do que a timidez.
-Podemos ver...
-Ótimo, venha comigo e eu vou mostrar. Não se preocupe, ninguém vai saber se você não disser.
Saori levou Shun até seu closet, que era grande como um cômodo. Mesmo que Saori tivesse abandonado a vida de futilidades e ostentações, ela ainda precisava ter uma aparência impecável, como neta de Mitsumasa Kido e presidente da Fundação.
-Aqui estão. – Disse ela mostrando os quimonos. Estavam muito limpos e pareciam novíssimos. – A maioria deles mal foi usada. Vovô achava as tradições bonitas e sempre me comprava modelos diferentes para os festivais de verão.
-São lindos!
-Esse aqui deve servir. Nem me lembro de ter usado... mas é a sua cara!
Shun ficou impressionado com a qualidade do algodão daquela peça e da vibração singular das cores. Era um maravilhoso yukata verde fechado com um padrão em branco e oliva que lembrava folhas de bambu. Talvez a estampa fosse um pouco feminina, mas ele não se importava com esse tipo de detalhe.
-O-obrigado. É lindo.
-Não foi nada. Pode ficar com ele para você. Eu tenho os acessórios que você vai precisar para vestí-lo da forma correta. Você sabe fazer?
-Bem... eu não tenho certeza... faz muito tempo.
-Eu vou te explicar.
Saori então explicou a Shun o passo-a-passo para se vestir o yukata. Ele ficou feliz, agora poderia ajudar Hyoga a se arrumar para a festividade.
Aquela tarde transcorreu normalmente na mansão Kido, com uma exceção. Hyoga simplesmente desaparecera sem dar maiores satisfações. Shun ficou um pouco preocupado com o "sumiço" do outro jovem e vasculhou todos os cômodos à sua procura. Quando chegou à sala de TV, encontrou Kiki assistindo desenhos animados.
-Você está procurando o Hyoga?
-Sim, você o viu? Eu prometi que iria ajudá-lo a se arrumar mais tarde.
-Ele saiu, disse que precisava pegar algo importante. Não quis me dizer o que era. Hyoga é esquisito.
-Novamente falando mal das pessoas!
-Mas não é verdade?
-O que Hyoga tem de esquisito? – Shun perguntou, colocando as mãos na cintura e achando muita graça da opinião do menino. – Pensei que você fosse amigo dele, afinal vai dormir na cama com ele.
-Eu sou amigo dele! Eu sou amigo de todo o mundo. O Tatsume é chato, mas eu sou amigo dele também. O Hyoga é esquisito que nem você.
-Que nem eu? – Shun estava chocado. Kiki saberia algo sobre sua homossexualidade? Hyoga também seria homossexual?
-É, ele nunca me fala da vida dele. Diz que é "coisa de adulto".
Era isso. O coração do rapaz ainda batia descompassadamente. Sentiu um misto de alívio e decepção.
-Então todos os adultos são esquisitos. A Senhorita por acaso conta de sua vida pessoal a você?
-Mas ela é Athena!
Shun não agüentou e riu. Kiki era mesmo uma figurinha.
-É, acho que isso é definitivo. Você não deve perguntar sobre a vida de uma moça.
-Bem que eu queria saber...
-KIKI!
-Que foi? Falei algo errado?
-Nada... bom, vou ficar aqui vendo desenho com você enquanto Hyoga não chega. Você deixa?
-Claro!
Shun sentou-se ao lado de Kiki naquele imenso sofá, enquanto uma tela de plasma igualmente monumental exibia um episódio de Doraemon.
-Você é muito amigo de Hyoga, né?
-É sim. Com excessão do meu irmão, o Hyoga é o melhor amigo que eu tenho.
-Mestre Mu também tem um melhor amigo. É o Aldebaran. Ele sempre vem nos visitar trazendo um monte de presentes para nós. Na verdade, Mu ganha a maior parte. Aldebaran o ajuda a fazer muitas coisas, consertar armaduras, arrumar o palácio... às vezes ele até cozinha. A comida do Aldebaran é a melhor do mundo.
-Mu deve ser muito feliz por ter um amigo tão bom.
-Eles são ainda mais amigos que você e o Hyoga.
-É mesmo?
-Sim, pois eles sempre saem para passear juntos. E mesmo sendo adultos, dividem a cama de noite.
Shun corou pela enésima vez aquele dia. Então os cavaleiros de ouro eram amantes? Sentia a cabeça rodar. Esperava sinceramente que Kiki não soubesse o peso exato daquelas revelações que estava fazendo.
-Realmente... é assim quando duas pessoas se gostam muito. – Shun falou, tentando parecer natural e não forçar o menino a entrar em detalhes.
-Mu nunca fica triste como você. Deve ser porque ele tem com quem dormir quando faz frio. Acho que Aldebaran ajuda Mu a resolver os problemas de adulto que ele tem, então ele nunca tem problemas por muito tempo.
Aquilo estava indo longe demais. Logo Kiki estaria sugerindo que ele e Hyoga dormissem na mesma cama.
-Que desenho é esse? Eu não tinha televisão lá na Ilha de Andrômeda...
Shun deu uma última olhada no espelho. Estava impecável com aquele yukata verde, completo com um obi cor de ouro velho. A combinação de matizes ressaltava o tom róseo e a textura apessegada de sua pele. Sentiu-se estranhamente sensual dentro daquela vestimenta, que restringia o movimento das pernas, e ao mesmo tempo permitia que suas coxas roçassem.
Hyoga aparentemente tinha voltado para a mansão quando ele estava no banho. Shun pôde ouvir a voz familiar conversando com Saori e Kiki na sala, enquanto ele se arrumava. Agora, vendo que estava pronto, poderia sair para ajudá-lo.
Bateu à porta do quarto do amigo.
-Hyoga, sou eu, Shun.
-Pode entrar, estava mesmo esperando você. – Respondeu a voz de Hyoga, um pouco distante.
Shun entrou naquela suíte pela primeira vez. Era um quarto quase tão espartano quanto o seu. Eles não tinham muitas posses... e ainda não se sentiam totalmente em casa. Os poucos objetos pessoais dignos de nota eram os muitos livros que Hyoga havia herdado de Camus. Ele surpreendeu-se com a ordem e a limpeza de tudo. Um lindo yukata índigo esperava, bem alisado sobre a cama.
-Estou acabando de vestir essa coisa. – O russo gritou de dentro do banheiro.
-Que coisa?
-Esse quimono branco que usa embaixo do yukata... qual era mesmo o nome?
-Chama-se "nagajuban"!
-Isso!
Hyoga saiu do banheiro, os cabelos ainda úmidos presos em um rabo-de-cavalo alto que deixava o pescoço longo em evidência. O nagajuban era translúcido. Os planos daquele abdome torneado revelavam-se sob a gaze, assim como as coxas firmes e até mesmo o volume do sexo dentro da roupa íntima.
-Você vestiu direitinho o naga... – Shun tentou dizer, mas foi interrompido por Hyoga.
-Eu não falei? Deus, Shun, você nasceu para usar isso! – O loiro exclamou num tom admirado.
Ele quase engasgou ao ouvir aquele elogio súbito. Pelo visto suas bochechas ficariam permanentemente coradas. Hyoga o olhava de cima a baixo, aprovando o que via.
-Não é assim... você vai ficar muito bem.
-Só se for bem desengonçado! Eu nunca vou parecer você!
-Tsc, seu bobo. Vem aqui, vamos te aprontar antes que percamos a hora.
Shun pegou o yukata e o vestiu em Hyoga. Ajeitar uma roupa como aquela demorava um pouco... mas ia ser um prazer.
-Abra os braços. – Instruiu.
-Assim?
Certificou-se de que a peça estava centralizada. O perfume de Hyoga era muito gostoso.
-Agora segure a gola na frente do corpo. Isso.
Definiu o comprimento. Acima dos tornozelos como era o usual. Sobrepôs os lados do yukata com a precisão com que dobraria um origami. O esquerdo sempre sobre o direito. Sua mão deslizou macia no estômago de Hyoga. O algodão novo, ainda rijo e engomado, não tinha o toque tão sensual quanto a seda, mas Shun achou um tanto erótico poder apalpar Hyoga despretensiosante sob o tecido.
-Segure esta parte aqui. Bem firme. Não deixa escorregar, hein?
Amarrou o quimono. Parecia estar tudo no lugar. Ajustou a gola no ponto certo dos ossos da clavícula e a dobrou, deixando a nuca visível. Seus dedos mais uma vez roubaram uma carícia.
Ajeitou o excesso de tecido, alisando com cuidado para que não sobrasse vincos e finalizou a produção com um obi prateado muito elegante. Suas mãos se despediram do corpo de Hyoga, roçando sua cintura ao girar o obi de forma que o laço ficasse nas costas do yukata.
-Pronto, agora calce o tabi e o geta. – Shun ordenou.
-As meias e as sandálias, certo?
-Hum! Você aprende rápido, hein?
Hyoga presenteou-o com um lindo sorriso.
Shun deu alguns passos para trás na intenção de observar o conjunto. Estava muito harmonioso. Mais do que isso, estava arrebatador. Todos naquela festa teriam olhos apenas para aquele belo e exótico loiro.
-Ficou perfeito! Vou só pegar umas coisas em meu quarto e logo poderemos sair!
Seiya, Saori e Kiki esperavam na sala, usando seus quimonos festivos. Shun e Hyoga desceram juntos e arrancaram comentários de admiração dos amigos.
-Nossa, ficaram muito elegantes! – Saori disse, parecendo mesmo surpresa com a beleza do par.
Shun vai ser eleito Miss Tanabata desse jeito! – Seiya falou, vestindo seu velho yukata preto e vermelho, já meio puído pelo uso.
-Seiya! – Shun protestou.
-Isso é jeito de falar do Shun? Já está bêbado antes da festa? – Hyoga disse defendendo o amigo e dando um cascudo amigável na cabeça de Seiya.
-Calma, calma, tou só brincando, não precisa me dar bicadas!
Todos riram das gracinhas do cavaleiro de Pégaso, menos Shun que não conseguia fazer nada além de ficar vermelho novamente. Deveria ter usado uma maquiagem de ator de kabuki.
Chegaram no local da festa à bordo da limusine de Saori. O evento era tradicionalmente realizado na rua da praia, uma escolha muito feliz.
O céu estava limpo. Um ótimo auspício.
Shun ficou deslumbrado com o que viu. Nunca tinha estado em um festival grande como aquele. Havia muitas pessoas, sorrindo, dançando ou batendo palmas. Um grupo de tambores taiko dava o ritmo da festa. Centenas de lanternas tradicionais e enfeites dos mais variados coloriam o lugar e os postes arrematados com fitas e estrelas pareciam querer alcançar o céu. Os bambus farfalhavam com a aragem, chacoalhando os milhares de tanzaku.
As comidas estavam sendo preparadas e o aroma dos quitutes e frituras misturavam-se ao cheiro de maresia. Uma combinação que muitos diriam ser nauseante, mas que Shun adorava. Eram tantos os estímulos que ele quase sentiu tonturas.
-Nossa! – Hyoga exclamou ao seu lado, os olhos azuis faiscavam. – Estou impressionado.
-Eu também! – Shun suspirou.
-Ei, vocês vão ficar aí parados, seus caipiras? Vamos aproveitar a boca-livre antes que acabe! – Seiya gritou para os dois, já embrenhado no meio da multidão.
Os dois deram uma risadinha e correram para alcançar os amigos.
-O que vamos fazer agora? – Hyoga perguntou. – Tem tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo!
-Comer, oras! – Disse Seiya empolgado. - Tem algo melhor para fazer?
-Aproveitem que é por minha conta! – Saori completou. – Vamos pedir uns espetinhos de tofu ?
-Assim é que se fala, Senhorita! – Pégaso apressou-se, tomando Kiki pela mão e correndo até a área onde estavam concentradas as barracas das guloseimas.
-Duas crianças... – Ela comentou sorrindo. - Vamos rapazes, ou eles vão ficar ansiosos.
-O que você vai comer? – Hyoga perguntou discretamente.
-Mochi. Vi uma barraquinha ali perto de onde Seiya está se empanturrando de yakissoba. É um bolinho à base de arroz. Tem vários recheios para escolher, você vai gostar.
Após deliciarem-se com os petiscos, dançaram um pouco no meio das pessoas que acompanhava os sons do taiko. Com excessão de Saori, nenhum deles sabia dançar, mas foi um momento descontraído mesmo assim. Os movimentos eram simples e em alguns minutos até mesmo Kiki parecia ter feito aquilo a vida toda.
Shun observava a pessoa mais importante daquela noite, Hyoga, que abandonou-se à dança. Cisne era tão elegante quanto a própria ave, quando deslizava sobre um espelho d'água.
"Mas andando parece um pato."
Na verdade ele não tinha nada de desajeitado. Hyoga era dono de um belo corpo e sabia usá-lo tanto para a luta quanto para a dança; tanto que hipnotizava todas as mulheres com seu modo fluido de se movimentar. Ele próprio, Shun, estava hipnotizado também. Ele precisava falar tudo o que sentia para o amigo, mas ainda não parecia o momento mais propício. Relaxou e aproveitou aquela meia hora de descontração total.
Quando estavam exaustos de tanto dançar e enjoados de tanto repetir os mesmo passos, saíram em busca de outra diversão.
Kiki corria para lá e para cá excitadíssimo com cada nova descoberta. Queria participar de jogos nas barracas, queria comer doces, queria ganhar brindes.
Um concurso de haicai chamou a atenção de Saori, Shun e Hyoga, mas Kiki e Seiya não pareciam muito animados para poesia. Tentando ser diplomática, a Senhorita deixou uma bela quantia de ienes na mão de Hyoga e foi atrás das "duas crianças" para satisfazer-lhes as vontades.
Os versos eram belos, os dois apreciaram silenciosamente as imagens criadas por palavras.
Face corada
tanzaku cor de rosa
acordado, sonho
E na mente de Shun isso soou como "acorda do sonho" .
-Acabou, e agora?
-Vai ter a Miss Tanabata...
- Não quero muito assistir.
-Nem eu. Vai ter queima de fogos. Ali naquelas balsas dentro do mar.
- Poderemos ver bem de longe, não é?
-Sim.
-Vamos dar uma volta na praia então? O barulho está me cansando. Você vai poder ouvir o som de seu querido mar...
Shun sorriu acanhado, sentia suas pernas vacilarem.
-C-claro.
-Mas antes não podemos esquecer de pendurar os tanzaku. Vega e Altair podem se esquecer de nós se não o fizermos.
-Sim... eu...já vou...
-Está com medo que eu veja a cor do seu? Pode ir, não vou bisbilhotar.
Dizendo isso, Hyoga virou-se de costas. Shun aproximou-se de um ramo de bambu já coalhado de papeizinhos.
-Jura? – Ele perguntou, trêmulo.
-Juro. Pela minha alma. – Falou num tom solene que beirou o cômico.
-Tá... – Shun retirou o seu tanzaku de dentro das dobras do yukata. Era um origami em formato de cisne, que ele mesmo tinha feito com todo o cuidado, usando papel cor-de-rosa. Beijou a dobradura delicadamente e a pendurou. Suas mãos trêmulas quase não conseguiram executar a tarefa. Havia muitos outros papéis e pedidos, Hyoga saberia que aquele era o seu?
-Pronto... sua vez. – Ele disse, virando-se de costas em seguida.
-Eu não me importo que veja. Mas tudo bem, é justo.
Alguns segundos se passaram até que ele sentiu a mão do amigo sobre o seu ombro, sinalizando que estava feito.
Compraram sorvetes de chá verde e foram caminhando juntos, para longe da agitação. As pessoas do festival admiravam-se ao ver dois jovens tão bonitos em par, como se fosse impossível juntar tanta beleza em um ponto só. Passaram pela frente das grandes estrelas de papel que representavam Vega e Altair.
"Orihime... você que é mulher, como minha constelação guia, por favor leia meu pedido. Ajude-me nesse momento difícil. Eu o amo sinceramente. Só quero que ele me compreenda e nada mais."
Chegaram na área em que a festa parecia um murmúrio distante. Estava muito escuro, mas nenhum dos dois se preocupava com qualquer perigo. Eram cavaleiros de Athena, que poderiam esmagar montanhas com as mãos.
Descalçaram os geta e os tabi. Caminharam um pouco, lado a lado, sentindo a areia úmida massagear-lhes os pés, aproveitando a bela noite que fazia.
-Sim, aqui está bem calmo... – Hyoga comentou, sorrindo de forma atraente.
-Está.
-Bem, na verdade eu queria lhe mostrar uma coisa. Veja isto.
O russo enfiou a mão entre as dobras do yukata e retirou um crucifixo brilhante.
-Hyoga, esse não é... esse não é...?
-O crucifixo de minha mãe.
Shun ficou completamente pasmo. Não havia lógica.
-Mas esse crucifixo... ficou no túmulo do meu irmão... na Ilha da Rainha da Morte... que foi destruída!
-Pois é, foi o que eu disse a mim mesmo quando o encontrei junto ao meu yukata.
-Como pode?
-Só pode ter sido Ikki.
-Eu achava que Ikki e você não se davam...
-E de fato não nos damos... eu sei que ele é seu irmão, mas ele é uma pessoa muito difícil. Acontece que se ele devolveu meu crucifixo, o meu tesouro mais precioso, só pode estar querendo dizer alguma coisa com isso.Afinal só veio a me entregar agora, nessas condições misteriosas.
-O que ele poderia estar querendo dizer?
-Talvez esteja propondo uma trégua.
-Talvez...
-Mas eu acho que tem mais por trás disso. Já te contei sobre a minha mãe?
Shun balançou a cabeça em negativa.
-A minha mãe morreu quando eu era pequeno. Mas eu ainda lembro dela quando viva, com toda a clareza... ela era jovem, linda... e morreu para me salvar. Estávamos em um navio prestes a afundar e mamãe cedeu o seu lugar para mim no bote salva-vidas. Eu lembro de cada segundo, ela se despediu de mim com um aceno. Parecia conformada, Shun, eu vi.
Hyoga suspirou olhando para o crucifixo, que rebrilhou à luz da lua. Shun estava totalmente sem reação.
-Encontrei os escombros do navio no fundo do mar da Sibéria, durante meu teinamento. O corpo de minha mãe estava lá, intacto, como se nem um dia tivesse se passado. Era como se dormisse, serenamente. Quando meu mestre Camus afundou o navio onde ela estava, eu senti tanta dor! Nunca mais veria aquela mulher, que me deu a vida duas vezes... Eu confesso que quis morrer e acabar logo com tudo. Quis morrer e ir para junto da pessoa que para mim representava o amor.
Os olhos de Shun encheram-se d'água. Então era por isso que Hyoga era tão frio, tão triste? Ele não tinha conhecido a mãe, tão tinha como mensurar aquela perda. Talvez a dor fosse apenas comparável ao sofrimento que ele próprio sentira ao ver Cisne caído nas pedras frias da Casa de Libra.
Ao tocar o peito e a face daquele homem a quem tanto admirava, ao perceber que o corpo estava mais frio do que de um morto, Shun decidiu que morreria por ele de bom grado. Se pudesse proporcionar a Hyoga apenas mais um momento de alegria, extinguiria o seu cosmos por isso!
Uma lágrima morna correu pela face do russo; aquelas recordações pareciam mexer muito com o seu coração. Shun teve ânsias de abraçá-lo e confortá-lo, mas segurou seus impulsos firmemente.
-Não fosse você... o que mamãe fez por mim... teria sido em vão. Eu sei que nada que eu possa fazer vai ser o suficiente para expressar toda a gratidão que eu tenho por ti.
-Você acha que eu ia lhe deixar daquele jeito? Eu tenho certeza que qualquer um teria feito o mesmo, no meu lugar. – Falou com modéstia, olhando os próprios pés.
-Você sabe que não, Shun. O tempo estava correndo. Se você tivesse morrido para me recuperar ou se eu tivesse sido deixado no esquife de gelo em Libra... teríamos um homem a menos de qualquer forma.
-Sou... mais fraco do que você.
-Fraco? Como pode ser fraco um homem que oferece a própria vida em troca de outra vida? Não, ao meu ver esse homem é muito forte. Athena não poderia pedir mais de um Cavaleiro. Um Cavaleiro que se sacrifica por um desconhecido...
-Um amigo. – Shun corrigiu. – Você não precisa me agradecer por nada pois eu fiz o que fiz de coração aberto. Um dia você me disse que o mundo era exatamente como a Sibéria: gelado e hostil, lembra? Eu não poderia permitir que você morresse achando que essa vida não vale a pena.
-Eu renasci nas suas mãos. Duas vezes. – Hyoga pousou a mão de Shun sobre o seu próprio coração, que pulsava com força, junto ao volume do crucifixo. – Vê?
Era chegada a hora que Shun tanto aguardara. Se deixasse passar aquele momento, perderia a coragem. A emoção era tão grande que ele sentiu um nó se formar em sua garganta. Tinha medo de cair em prantos e perder a compostura. Respirou fundo.
-Eu... Fico feliz... realmente feliz.
Sem conseguir dizer mais nada, agarrou-se à gola do yukata índigoe enfiou o rosto no peito de Hyoga. Ficaram assim por alguns segundos; Shun, trêmulo, tentando abafar a respiração ofegante contra o tecido e o russo paralizado com a atitude súbita do outro.
-Shun...
"Não me rejeite, por favor, não me rejeite!"
-Eu gosto muito de você. – Shun falou de forma quase inaudível. Estava feito.
Esperou por um pedido de desculpas sem graça ou mesmo uma recusa polida e fria que nunca vieram.
Ele sentiu-se zonzo quando, ao mesmo tempo que as bombas começaram a queimar fazendo barulho, os braços inseguros do outro rapaz o envolveram.
-Seu calor... -Hyoga apertou-o com força para junto de seu corpo. Shun quase desmaiou naquele abraço, sentindo os ouvidos zunirem como se alguém tivesse feito um diapasão vibrar dentro de sua cabeça. -Esperei tanto para senti-lo novamente, assim.
Ao longe os primeiros fogos pipocavam da mesma forma errática que o seu coração aflito.
Ele não podia acreditar no que estava ouvindo e levantou a cabeça para constatar a verdade dentro dos olhos azuis.
-Por que não disse, eu...
-Shhh... depois...– Hyoga sussurrou, pousando o indicador sobre os lábios trêmulos e rosados do amigo. Shun calou-se. Palavras não eram necessárias naquele momento. Ele deslizou as palmas pelo peito de Hyoga enquanto sentia o hálito fresco, cheirando a chá verde acariciar-lhe a face.
Beijaram-se. As pernas de Shun quase falharam ao sentir a maciez da boca de Hyoga requisitando a sua. Ele nunca tinha experimentado aquela sensação de intimidade, aquela carícia úmida entre lábios exigentes.
Os fogos de artifício explodiam como crisântemos inflamados no céu.
Shun não conteve um pequeno ruído de prazer quando os dedos longos de Hyoga afagaram seu pescoço. Estava completamente lânguido, entregue, acreditava estar de pé por causa do braço que o segurava pela cintura com firmeza.
As línguas dos jovens amigos enlaçaram-se, deslizando uma sobre a outra como numa declaração muda de amor. Shun não queria que aquilo acabasse. Não queria se separar do de Hyoga nunca mais, não agora que tinha bebido de sua boca...
Os dois corpos se roçaram ansiosamente, e Shun foi tomado pela demanda de sua pele por um contato mais direto. Ele sorriu, emitindo sons de puro deleite conforme a boca do russo lhe descia pelo pescoço.
Sentiu cada pêlo de seu corpo arrepiar-se e um formigamento morno espalhou-se por seu ventre e coxas. Ele arranhou os ombros do parceiro sobre o tecido do yukata ao sentir a língua quente enroscar-se no lóbulo de sua orelha.
Hyoga deslizava as mãos pelas costas de Shun, fazendo com que espasmos elétricos percorressem sua coluna. Se havia alguma parte de seu corpo que não ardia de paixão, agora não restava nenhuma.
-Ah! Hyoga!
-Você está tão lindo... eu o quero...quero por inteiro. – Ele sussurrou, com sua voz rouca, fazendo Shun suspirar de tanto desejo.
-Também quero... tudo... ! – Agarrou-se às madeixas loiras, sentindo um beijo particularmente molhado cobrir o seu pomo-de-adão. Inclinou a cabeça para trás, oferecendo o pescoço para os lábios do amante e gemendo alto. Mais um pouco daqueles beijos e não haveria retorno.
Porém o tempo deles estava contado, os minutos mágicos durariam apenas enquanto os fogos queimassem e o som entre um estouro e outro espaceava até, finalmente, morrer.
-Mnnn...Temos que voltar, Hyoga. Logo vão dar por nossa falta...
-Shun... – O russo disse, olhando nos olhos do companheiro. Parecia tão frustrado quanto ele. – Venha ao meu quarto. Esta noite. Eu vou deixar a porta encostada... Por favor!
Shun sabia o que aquele pedido significava, mas não sentiu-se intimidado. Ele também desejava prolongar aquele momento maravilhoso... o amanhã poderia simplesmente não existir. Mas naquela noite teria tudo.
-Sim!
-Sim? – Hyoga abriu um sorriso enorme e o beijou docemente.
Glossário (em ordem de aparição):
Yukata – Quimono de verão. São mais simples que os tradicionais e feitos de algodão leve. São usados por homens e mulheres, em festivais, em casa, para dormir ou em onsens (hotéis de fontes de águas termais).
Dizem que o físico ideal de um homem para usar yukata eh um tipo meio barrigudinho. Eu particularmente prefiro uma barriga "sarada", rsrs. Como a do Hyoga!
Obi – Cinta usada sobre o quimono para prendê-lo na cintura.
Tabi – Uma espécie de meia própria para usar com sandália tipo chinelo. Tem uma fenda entre o dedão e os outros dedos.
Geta – Sandália de dedo japonesa, geralmente feita de madeira, com saltos separados. Tem esse nome por causa do barulhinho que as pessoas fazem ao andar com elas.
Kabuki – Teatro japonês tradicional onde são apenas permitidos atores homens. Os papéis femininos também são representados por homens. A maquiagem do Kabuki é pesada e elaborada, de base branca.
Taiko – Um tambor japonês. O nome é usado de forma genérica aqui no ocidente para a maioria dos tambores japoneses. Me parece que não são muito usados no Tanabata especificamente... mas eu achei divertido colocar isso, oras. XD
Tofu – Queijo de soja. Há muitos pratos japoneses feitos com ele.
Yakissoba- Macarrão frito, preparado com carnes e vegetais. De origem chinesa, esse prato é muito popular.
Haicai (haikai, haiku)- De maneira geral, haicai é um poema japonês conciso, formado de três versos, no total de 17 sílabas. Eu inventei este que está aí... porque não achei nenhum que tivesse a ver para pegar emprestado. Eu não entendo muito de haicai, portanto ele possivelmente está errado ou horrível. Desculpem a liberdade poética... com a poesia!
o0o
Agradecimentos especiais: A minha querida amiga e super beta Deneb e a todos que leram a fic sem as devidas edições e correções e gostaram mesmo assim. XD