Disclaimer: Os personagens originais de Saint Seiya são propriedade de Kurumada. O trabalho ficcional aqui apresentado não tem fins lucrativos.
Resumo: Shaka é um típico virginiano e quando provocado, muito arrogante. Ele gaba-se de não precisar de Mu, o independente e forte ariano com quem vive uma complicada estória de amor. Agora ele tem a chance de provar sua teoria.
Yaoi leve.
Quando For Amanhã
Capítulo 1
Crime & Castigo
– Você está impossível hoje.
– Mu, chega de discussão.
– Não, não chega. Para você, nada nunca está bom. Você reclama o tempo todo, você me critica sem pensar duas vezes e me faz acusações na frente dos meus amigos!
– Não fiz isso.
– Fez! Na frente de Athena! No almoço mensal dos cavaleiros! Não podia ter escolhido melhor! No único dia em que todos compareceram!
– Talvez eu tenha me excedido um pouco.
– Um pouco? Um pouco? Sua crueldade não tem limites, Shaka! Você pensa em cada palavra, em cada suspiro, em cada inflexão de voz para ser o mais abominável possível!
– O que você quer com essa conversa? Quer que eu me desculpe por minha honestidade?
– Não! Quero que você tire tudo que é seu da casa de Áries, por favor.
– O quê?
– Serei claro: nosso relacionamento já provou, inúmeras vezes – mesmo eu não querendo aceitar –ser uma coisa impraticável. Então, para que nos machucarmos mais? É melhor que esteja tudo acabado agora, quando ainda me resta um pouco de respeito por você e por tudo que já nos aconteceu.
– Isso é sério, Mu?
– É claro que é. Acha que eu brincaria com uma coisa assim?
– Mas por causa de uma coisa tão pequena?
– Por você me ofender e humilhar constantemente na frente dos meus amigos? Por você me impor sua virgindade e fazer disso um motivo para me diminuir? Por você nunca dizer que me ama, mas ser sempre rápido para me criticar? Por você nunca ter me agradecido por tudo que faço por você? Não que você tenha me pedido alguma coisa, e tudo que faço por você, faço por mim, porque eu te amo... ou amava... acha isso pouco, Shaka? Eu amava você mais do que a mim mesmo e você conseguiu diminuir isso que eu achei que nem a morte ia diminuir!
Shaka engoliu o seco, mas manteve a serenidade da sua expressão fina.
– Se é assim que você quer, assim será.
– Você não perde a sua pose nem sofrendo, não é?
– Quem disse a você que estou sofrendo? – o indiano não olhava Mu nos olhos, mantendo-os fechados mais por hábito que por necessidade. Estava inclinado sobre um imenso baú, da onde tirava suas túnicas, sempre misturadas com as de Mu.
– Não est�?
– Não. Minha vida era a minha vida sem você. E continuará sendo.
– Como pode ser que você sequer fale algo? Eu não valho sequer um grito, ou uma voz alterada, nada?
– Sinto muito por não me atirar aos seus pés implorando para que não me deixe. Essa não é a minha natureza e sinto-me até desapontado por você me conhecer tão pouco para esperar algo como um arrebatamento da minha parte.
– Claro, como poderia esperar algo assim de você? Você se basta, eu não significo nada para você!
– Gosto de você. Mas se você prefere que nos separemos... assim será feito. Eu não vou morrer de amor, Mu.
– Não... você não poderia. Você não ama.
– Não me diga que fará uma cena?
– Não, você não mereceria.
– Não mereço, eu?
– Não, Shaka, não! – Mu por fim exasperou-se, as lágrimas contidas porque sabia que o virginiano seria hostil e sarcástico com sua dor, como ele sempre reagia quando não sabia bem o que dizer. – Você não merece nada!
– Mu, acho que virei buscar minhas coisas depois. Você está obviamente descontrolado.
– Porque você me descontrola!
– Você está começando a me tirar do sério, Mu!
– O que é que tem dentro de você? Pedra? Aioria tinha razão: você não é um homem para ser amado!
Shaka virou-se para ele imediatamente, o rosto afogueado de raiva.
– Você anda de conversas com aquele homem? Então é por isso...
– Isso o quê?
– Óbvio que você está interessado em que eu vá o mais rápido possível! Se arrependeu de ter ficado comigo, porque eu não lhe dou o que eles podem te dar e agora você cria nossos problemas para poder me deixar e ficar com ele! Ora, Mu! Para que esse circo? Por que não me disse logo? Eu o deixaria ir!
– Você está louco, não sei porque eu perco meu tempo com você!
– Então vá ganhar tempo com ele! Vá ganhar tempo dando para todos os seus amiguinhos licenciosos e obscenos!
Mu deu-lhe uma bofetada no rosto branco.
– Você teve coragem de levantar a mão para mim?
– Você é mau, Shaka! Mau!
– Eu odeio você, Mu!
– Eu é que te odeio! Eu quero você longe, muito longe de mim!
– Eu também! O mais longe possível! Vá se atirar nos braços dos seus homens!
– Eu vou! Não será a sua maldade que vai me impedir de ser feliz! Com meus amiguinhos licenciosos! Entre ele deve haver quem me queira como eu sou!
– Espero que você MORRA!
Mu voltou os olhos para ele, sério.
– Retire o que disse, por favor.
– Não. – Shaka negou, mas já sem ferocidade do momento de explosão. Nada o tirava do sério – exceto ciúmes.
– Retire, Shaka! A palavra de um homem como você é muito forte! Retire j�!
– Não, nunca! Minha vida sem você será boa! Você não me faz a falta que pensa! Eu posso viver sem você como vivia antes de te conhecer e vou viver se quiser me deixar! Eu não me importo!
– Vai se arrepender de ter dito isso. Sabe que vai.
– Eu vou embora. – ele tomou uma trouxa com as poucas mudas de roupa que conseguiu juntar durante o bate-boca. Saiu de Áries para Virgem sem cumprimentar os amigos no caminho. Atrás dele, até que ele perdesse o ariano de vista, um Mu pálido e desfigurado o encarava da porta. Esperava que ele se retratasse. Ele não se retratou, como era de seu hábito, nunca pedir desculpas. Nunca imaginou que Shaka fosse capaz de ser tão frio e tão mesquinho em levar seu orgulho mais longe do que seu amor.
Claro, não acreditou no 'espero que você morra'. Shaka não era exatamente passional, mas costumava responder grosseira e ferozmente à altura. Deve ter ficado realmente ofendido com a possibilidade dele ter outros homens. Nada, é óbvio, que justificasse a estupidez do ataque. Mas como sempre, Mu estava inclinado a entender os ataques de 'estrelismo' de Shaka. Por amor cedia sempre.
- X -
Shaka chegou em Virgem com a cabeça loira latejando de raiva. Tomou banho frio com sais importados que Saori trazia do Japão para eles, toda vez que vinha 'visitá-los'. Preferia os sabonetes artesanais de Mu, de alecrim e malva, mas não podia conceber usá-los naquele momento. Fez outra vez... Buda! Tinha sempre que terminar assim. Mu era tão calmo, calmíssimo. Ele, um monge. Suas discussões, contudo sempre eram piores do que as de Máscara da Morte e Afrodite, passionais, mundanos e descontrolados. Eles diziam-se meia dúzia de palavrões escabrosos, estapeavam-se, juravam-se de morte e debochavam da capacidade sexual um do outro – não necessariamente nessa ordem. Depois de alguns socos e chutes, estavam aos beijos, com arranhões e chupões do tamanho de pires pelas partes visíveis do corpo, que exibiam como troféus de amor.
Ele e Mu não... conseguiam fazer ofensas das mais perversas e más, machucavam-se no mais fundo da alma, até doer. Então o mais flexível deles, quase sempre Mu, pedia desculpas – a despeito de ter estado errado ou não – e a briga acabava. Sempre brigavam por causa do seu mal gênio. Sim, Shaka sabia que tinha um gênio difícil. Foi criado para ser monge e viver na clausura. Conviver socialmente com tantas pessoas e pessoas tão diferentes e ainda por cima manter um relacionamento amoroso sem sexo era extremamente desgastante. Mas Mu não tinha culpa. Ele também não tinha. Entretanto, estavam sempre brigando. E sempre se ofendendo da maneira mais terrível. Na verdade, Shaka imaginava que eles se conheciam bem demais 'nos conhecemos na alma'; por isso suas ofensas nunca ficavam no superficial."Ora," pensou Shaka "ele virá e pedirá desculpas como sempre."
Comeu uma maçã e tomou leite de cabra. Sentia-se cansado como se tivesse carregado um caminhão em seus ombros. Deitou-se na sua esteira e cobriu-se com um sarongue. Estranhou que tivesse tido vontade de fazê-lo: nunca sentia frio. Antes de dormir, vencido pela exaustão, pensou em Mu. "Se ele nunca mais viesse, também seria mesma coisa. Se ele pensa que me dobrará pela força, está enganado. Ele que se deite com o porco sujo do Aioria... e com quem mais que o queira! Quem ele pensa que eu sou? Que vou ceder aos caprichos sexuais dele porque ele me faz chantagens? Não! Minha vida sem Mu será igual ao que era antes dele. Aliás, será ainda melhor!"
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– Viu isso, Saori?
– Vi, Seiya... o que será que foi essa luz na casa de Virgem?
– Estranha... quer que eu vá ver?
– Não, não precisa. Não senti nenhum cosmo ameaçador ou perigoso. Talvez seja Buda tentando mandar uma mensagem para Shaka...
– É, pode ser.
– Até porque, depois de hoje, sei que ele deve ter tido problemas com Mu.
– Também...
– Mas não vamos nos meter, hein, Seiya? Não vamos nos meter... vamos deixar que Shaka pense sobre o que tem feito. Tenho certeza de que ele reconsiderará.
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Shaka acordou dolorido, com a cabeça que ainda doía, com um gosto ruim na boca. Lembrava-se vagamente de ter brigado com Mu... "daqui a pouco ele aparece" pensou para si mesmo.
Sentou-se para meditar, mas estava se sentindo tão enjoado que desistiu. Andou de um lado para o outro da casa de Virgem. Separar suas coisas das de Mu daria muito trabalho. Tudo deles estava misturado, junto. Os cds, os perfumes, as essências, os incensos, as velas, as roupas, os enfeites. Eram tão parecidos nos gostos, mas tão diferentes no temperamento. Sabia que Mu voltaria, como sempre, para lhe pedir perdão por qualquer coisa que fosse. Ah! Mu... era tão altruísta e tão superior... ele era capaz de tudo para manter uma relação harmônica. Tinha que admitir que ficara mal acostumado com a solicitude de Mu em perdoá-lo por tudo: tornou-se mimado e intransigente. Aliás – mais mimado e mais intransigente que de costume. Sempre escapava impune de suas grosserias e maldades, porque Mu cedia. E agora não seria diferente. Assim mesmo, percebeu que Mu demorava para voltar. Lembrou-se das palavras que tinha dito para ele. Excedera-se na sua maldade para com o ariano, que afinal de contas, era a única pessoa que lhe importava. Tudo culpa de Mu! Como ele pode provocar os ciúmes dele daquele jeito? E justo com Aioria... Aioria! Sabia o quanto lhe irritava a comparação com o bronco do leonino! Mas mesmo assim... mesmo assim! Um peso lhe sombreava a alma. Não devia ter dito aquilo. Não devia! Ia se desculpar com ele; pedir desculpas era uma das coisas que mais detestava fazer na vida, mas ponderou que o tamanho de sua ofensa, pesada junto ao amor que sentia pelo seu doce ariano, compensavam o embaraço.
Desceu as escadas até que viu Camus. Notou que, pelo céu, já devia ser por volta de umas seis da tarde. Era um horário em que ele imaginava que Camus não devia estar circulando. Estranhou quando ele veio lhe olhando fixamente, estranho, pálido, como se estivesse sondando. Depois que Camus o rodeou e olhou bem, ia falar algo, mas o aquariano o interrompeu com um estranhíssimo "como você est�, Shaka?". Intrigado, respondeu:
– Estou muito bem, por que?
– Estava vendo televisão?
– Não, sabe que não mantenho esse aparelho nefasto em Virgem. É pernicioso e draga a energia do ambiente... – olhou para o aquariano, e percebeu que ele parecia abalado.
– Então você não sabe?
– Não sei o que?
– Estava na TV. Aconteceu um assalto no centro de Atenas.
– Não sabia, mas o que há de tão especial em um assalto?
– Três pessoas foram baleadas na fuga dos bandidos.
– É lamentável, mas... o que poderíamos ter feito? Somos cavaleiros, não policiais.
– É que... não sabe onde Mu est�?
– Ele deve estar em Áries, onde o deixei. Eu ia mesmo procurá-lo e... a propósito... o que quer dizer com toda essa preleção sobre o assalto?
– Shaka, Mu estava no centro de Atenas hoje. Ele foi baleado.
Shaka passou a língua nos lábios que embranqueceram levemente. Ficou em silêncio por alguns segundos. Perguntou muito lenta e calmamente.
– Baleado? Camus... ele é um cavaleiro. Ele... é um cavaleiro. Balas... o que são balas para nós? Ele se machucou?
– Shaka... ele está morto.
Uma outra longa pausa.
– Como assim, morto? – a mesma calma que já estava deixando até o próprio frio e contido Camus irritado. Compreendeu então as queixas de Mu; ele, que sempre ficava envergonhado com o excesso de Milo, pensou que enlouqueceria com a convivência com um Shaka, que ouvindo tal notícia sequer levantava o tom de voz.
– Ele estava saindo da tinturaria onde ia apanhar as suas roupas, e... provavelmente não estava prestando atenção... foi um tiro no pescoço... os ladrões bateram com o carro na fuga... parece que houve muita confusão. O socorro demorou muito. Não puderam fazer nada por ele.
Shaka simplesmente o olhou por mais alguns segundos e sem dizer palavra, desceu as escadas vagarosamente.
– Você não diz nada, Shaka? Onde vai?
– Vou procurá-lo.
– Como vai procurá-lo? Sem saber onde está o corpo?
Shaka voltou os olhos para ele, circunspecto.
– Acha mesmo que meu cosmo não o encontraria onde quer que ele estivesse?
– Shaka...
– Por favor, Camus. Nunca mais refira-se a Mu como 'corpo'.
- X -
Shaka percebeu cedo que cometera um erro em sair do santuário sozinho. Não compreendia o ocidente, ficava perdido e confuso para lidar com as pessoas de l�, além de falar o grego com alguma dificuldade. Mu sempre fazia isso por ele. Agora, contudo, precisaria aprender a fazer as coisas por si próprio. Mu nunca mais estaria ali para ajudá-lo. As palavras que havia dito ecoavam dentro dele como um punhal furando a carne. Nunca tinha desejado de fato que Mu morresse, mas tinha dito aquilo em um momento de raiva. Mu insistira que ele retirasse o que havia dito. Ele, orgulhoso como sempre, negara-lhe o pedido. Se soubesse que era seu último! Uma tolice... uma medição de forças inúteis... talvez Buda o estivesse punindo. Gabou-se de que viveria sem Mu tão bem como com ele. Agora poderia provar . Deu graças ao Buda Iluminado porque quando chegou ao instituto médico para onde haviam levado o corpo de Mu, encontrou Saga lá. Saori o havia mandado, já que ele era sensível e estava acostumado com a cidade.
– Shaka! Aí está você. Pensei que não viesse.
– Onde ele est�?
– Lá dentro. Eles vão liberar o corpo depois da autópsia.
– Autópsia? Isso é necessário?
– Foi um crime. É de praxe.
– Já profanaram ele?
– Não, acho que não.
– Então não vou deixar que façam isso.
– Shaka, o que vai fazer?
– Você vai ver.
Ele desapareceu diante dos seus olhos. Continuou olhando para o vazio lugar onde ele estivera, atrapalhado, por minutos, apavorado com a idéia de que algum transeunte os pegasse no flagra fazendo teletransporte. Preparava-se para ir procurar Shaka, quando o virginiano apareceu na sua frente, com o corpo de Mu em seus braços, todo coberto pelo manto que Shaka tinha trazido enrolado no seu próprio corpo; apenas a enorme cascata de cabelos lavanda se deixava ver sob o manto.
– Vamos, Saga. Eles não devem nos ver.
– O que vai fazer com ele, Shaka?
– O que é certo: vamos cremá-lo, como fazem todos os hindus.
– Podíamos ter esperado...
– Para quê? Para que algum deles o retalhasse como a um porco cevado para escrever na sua prancheta que ele foi assassinado por balas... balas... para isso não precisam profanar o corpo dele. Já sabem como morreu... vamos. Eu mesmo vou limpá-lo, perfumá-lo e vesti-lo para a cerimônia.
– Quer alguém para te ajudar?
– É óbvio que posso fazer isso sozinho. Só peça para que Kiki explique para Saori o que será necessário para a pira de cremação.
Saga não comentou mais nada. Shaka estava resoluto e absurdamente calmo. O loiro indiano encarregou-se de todos os detalhes dos funerais. Ele mesmo banhou, penteou e vestiu o corpo para a cerimônia, com a mais absoluta certeza de que seu Mu já não estava mais ali, aquilo era só um corpo. O fez com a calma, a paciência, o perfeccionismo e o controle de monge que aprendera por anos a fio do próprio Buda. Seu coração ameaçando o colapso foi solenemente ignorado. Era hora de dever, e não de pensar em si.
A cerimônia de cremação foi melancólica e triste. Todos choravam copiosamente, Milo debulhava-se em lágrimas no ombro de um taciturno Camus, de olhos inchados. Mesmo sem querer, uma lágrima furtiva descia do rosto duro e maltratado pela vida de Máscara da Morte. Afrodite, que jamais fora amigo de Mu, estava silencioso e triste – mais do que a ocorrência da morte, a violência o assustara. Era tão estranho morrer na rua, entre os 'comuns'... bala! Nunca pensara nisso.
Kiki estava inconsolável. Agarrado às pernas de Shiryu, ele recusou-se terminantemente a ficar um minuto que fosse ao lado de Shaka, de quem ele guardava uma imensa mágoa, depois de presenciar inúmeras brigas dele com o seu mestre.
Saori e Seiya estavam ainda perplexos. A verdade é que aquela morte era indigerível. Não era uma morte gloriosa, de um guerreiro em batalha defendendo a justiça e a honra. Era um homem, como todos os outros, fraco e indefeso, pego de surpresa na rua, com um pacote de roupas – roupas de Shaka, claro, porque o jovem cavaleiro de Virgem jamais teria se dado ao trabalho de sair de seu templo para ter suas túnicas mais finas lavadas da maneira correta. Todos os olhos daquele Santuário estavam voltados para ele, que assistia à cremação isolado em um canto, distante de todos. Alguns cavaleiros até gostariam de consolá-lo e de prestar solidariedade, mas tinham medo da reação dele. Ele não havia pedido ajuda, nem esboçado qualquer reação. Milo comentara que ele parecia estar em 'piloto automático'. Talvez estivesse. O senso de missão e a forte religiosidade que pautaram sua vida até o momento ajudaram a anestesiá-lo um pouco da dor de pensar nele sem Mu, mas apenas a pensar no que devia fazer pelo Mu.
Quando o corpo do ariano foi completamente reduzido à cinzas, os mestres brâmanes colocaram as cinzas em uma jarra. Prometeram a Shaka que levariam os restos mortais de Mu para a Índia, para serem atirados ao Ganges. Era assim que Shaka cria que devia ser feito. Despediu-se dos mestres e voltou para Virgem. No caminho, passou por Áries, sem coragem de entrar. Passou direto sem olhar muito. Era ainda cedo, não devia passar das duas da tarde. Entrou em Virgem, a casa atulhada de coisas dos dois. Sentou-se no lugar mais iluminado, do lado de fora da casa, perto de uma árvore pequena, uma oliveira miúda que Mu plantara para que ele pudesse ter sombra para meditar a qualquer hora do dia. Sentou-se lá e tentou meditar, mas cada lufada de vento que soprava o distraía, os ruídos do mundo o distraíam, tudo o distraía.
Acabou por se sentar, sozinho, na entrada de Virgem, nas escadas, de pernas cruzadas, fitando o vazio. Por volta das seis horas ainda estava lá. Preocupado, Camus se aproximou devagar. Viu que Shaka não meditava e que mantinha os olhos muito abertos, fixos no horizonte.
– Shaka... o sol está estalando. O que faz aí?
Shaka apenas lhe voltou os olhos azuis.
– Vai me achar tolo se disser.
– Talvez eu o ache tolo. Mas acho que qualquer um ficaria meio tolo nessas circunstâncias...
– Estava esperando Mu voltar.
– Shaka, sinto muito.
– Aí me dei conta de que ele não vai voltar mais... eu... não sei o que fazer. Era sempre ele que decidia. Vamos nos deitar pontualmente, todos os dias, às nove. Ele vem para cá sempre às três e meia, depois do treinamento. Ele dizia o que íamos fazer: se íamos comer, o que comer, se íamos nos banhar, ou cantar, ou se ele dançava para mim, ou se eu penteava os cabelos dele, ou se cuidávamos das plantas ou mesmo se arrumávamos a casa... às vezes a gente não fazia nada, lia ou meditava. – ele fez uma pausa, e Camus teve a nítida impressão de que ele segurava o choro. – Mas sempre juntos. E ele não vem, Camus! O que eu vou fazer até às nove? Eu não sei.
– Vai ter de se acostumar a tomar esse tipo de decisão diária, Shaka. Ouça: houve um tempo em que vocês estiveram separados... você tomava decisões sozinho, não?
– É... houve esse tempo...
– E então?
– Ainda não sei o que fazer.
– Por que não aparece para jantar comigo e com Milo?
– Não acho que sou uma boa companhia.
– Venha assim mesmo. Lhe fará bem ficar longe desse lugar esta noite. Arranjamos um lugar para você dormir l�, o que acha?
– Acho que, se você não se ofender, prefiro ficar aqui.
– Shaka, você tem certeza?
– Sim, ficarei melhor aqui.
– Mas a casa está cheia de... coisas...
– Coisas dele?
– É... não lhe dói ficar assim, cercado das coisas dele?
– As coisas de Mu são minha coisas Camus... temos o mesmo tamanho, eu visto as roupas dele e ele veste... vestia as minhas. Usamos os mesmos colares e pulseiras, as mesmas sandálias, os mesmos enfeites de cabelo... ouvimos as mesmas músicas... lemos os mesmos livros... só me encarnando em outro corpo e vivendo outra vida eu poderia não estar cercado de coisas dele...
Atarantado, Camus o ouviu. Bateu de leve no ombro de Shaka.
– Se precisar de nós, estamos aqui.
– Obrigado.
Camus mandou um menino do santuário dar uma olhadinha mais tarde e a resposta foi a mesma às sete, às nove, à meia-noite: Shaka continuou sentado na mesma posição, olhando para o vazio, sem saber o que fazer de sua vida e das longas horas do dia sem Mu.
- X -
– Milo, Milo... não fale assim...
– É verdade! Ele não se importa! Foi o responsável pela morte de Mu sim!
– Isso é cruel e mentiroso. Foi um acidente.
– Não foi! Não foi! Você viu ele? Ele nem chorou!
– Não subestime a dor de Shaka, Milo. Só porque ele não reagiu como você esperava. Ele está sofrendo.
– Pouco, muito pouco! Mu fazia tudo por ele! Tudo! Todos nós sabemos que até para poupar aquele ego do tamanho de um mamute o Mu recusou o convite da Saori para ser Grande Mestre!
– Mu fez porque quis, Milo.
– Porque ele amava aquele desgraçado. Sem ele nunca ter feito por merecer!
– Como sabe? Eles eram felizes!
– Não eram! Brigavam sempre, ele nem era homem para Mu!
– Isso não é da nossa conta!
– É da minha conta porque ele era meu amigo! E está morto!
– Ele amava Shaka e ia ficar louco se soubesse que alguém tenta fazer aquele homem sofrer mais do que ele já está sofrendo, Milo! Ponha isso na sua cabecinha de caroço de amendoim!
– CAMUS!
– Mon Petit, deixe Shaka em paz...
– Se é que ele vai ter paz algum dia...
– Pois é, nisso você tem razão. Se algum dia ele puder voltar a ter paz...
- X -
O dia amanheceu razoavelmente ensolarado. Camus descia com Milo de Aquário, vinham conversando, ainda trajando o luto do dia anterior. Quando iam chegando a Virgem, Camus fez uma série de advertências a Milo sobre o que ele não devia fazer ou dizer para Shaka.
Camus, penalizado, encontrou Shaka na exata mesma posição da tarde do dia anterior.
– Olhe para isso, Milo. Ele está aí desde de ontem. Nem sei o que dizer para ele.
– Diga para ele: MORRRRRRRRRA.
– Milo você nunca foi ruim desse jeito. Não me faça ter nojo de você.
– Camus, eu...
– Sabe que poucas coisas me revoltam na vida como injustiça e crueldade. Nunca fui amigo ou aprovei as atitudes de Shaka por isso. Mas eu não precisei mover um músculo para ver a vida envergá-lo no seu orgulho. Agora ele está ali, caído e só e não cabe a nós um julgamento.
– Desculpe, querido, você tem razão.
– Você é bom demais para isso, ouviu, Milo? Deixe os sentimentos mesquinhos para a gentinha daqui. Já vai haver muita gente odiando Shaka, não vá se juntar a eles.
– Não, pode deixar. Vamos lá.
Camus aproximou-se.
– Shaka... porque não entra e tenta dormir um pouco?
– Mas é de dia.
– Mas você não dormiu.
– Não, mas...
– Então... – olhou para as pernas do virginiano. Ele tinha mudado de posição em algum momento, sentando-se sobre uma das pernas. O sangue parou de correr e a perna de Shaka estava começando a ficar roxa. – Sente-se bem?
– Sim.
– Levante-se então.
Quando ele se ergueu, a perna deve ter começado a formigar, porque ele perdeu o equilíbrio e quase caiu.
– Minha perna está...
– Formigando. Ficou muito tempo em uma posição desconfortável, venha... por que não dorme na cama? Eu sei que prefere a esteira, mas só por hoje...
– É, pode ser.
Camus entrou, segurando o braço de Shaka levemente. Atrás deles, Milo só olhava. A casa de Virgem estava impecavelmente arrumada, a cama posta com mantas hindus e sarongues que enfeitavam tudo, desde mesinhas até partes das paredes. Camus sentou Shaka na cama e o deixou l�, sentado. Achou que seria mais seguro fazer com que ele deitasse. Tinha quase certeza de que ele ficaria na posição em que o deixasse.
– Deite-se, Shaka.
Shaka deitou-se, sem mexer na manta. Comentou, sem olhar nos olhos deles.
– Mu trocou a manta anteontem. Dormimos aqui dia sim, dia não. Aliás, quando Mu volta?
Milo perdeu a cor. Camus olhou para ele como se pedisse socorro: o que ia dizer? Por fim, respondeu.
– Shaka... ele não vai voltar. Ele morreu, lembra-se?
– Ah, sim... isso explica porque não veio ontem.
– Tem certeza de que vai ficar bem?
– Sim, o que de pior poderia me acontecer agora?
Havia uma tranqüilidade sábia e mórbida naquelas palavras que arrepiou Milo. O escorpiano saiu da casa o mais rápido que pode, deixou Camus para trás.
– Por que saiu daquele jeito?
– Por que? Porque eu não tenho estômago para isso.
– Entende agora de que tipo de sofrimento eu te falei? Só porque ele não está chorando e arrancando os cabelos não quer dizer que não esteja sentindo a morte de Mu...
– Viu os olhos dele, Camus? Ele estava l�, mas parecia que não estava...
– Vai demorar um pouco até ele se acostumar com a perda. Mas a vida continua.
– Camus... não te assusta o jeito dele? Seria tão melhor se ele gritasse! Se tivesse se jogado em cima do corpo de Mu aos gritos de "quero ir com ele! Quero morrer também!". Seria... não sei... explosivo, mas seria de uma vez só... uma descarga assim como... uma tosse forte barulhenta para expelir o catarro e limpar os pulmões! Mas ele não geme! Ele está muito, muito calmo... tenho medo de que ele faça algo idiota, Camyu...
– Disso eu não tenho medo. Shaka nunca vai fazer isso que você pensou. Mas acho que pode fazer ainda pior...
– Pior do que se matar? O que pode ser pior do que isso?
– Se matar em vida: ou seja, se enlouquecer. Meu medo é de que ele fique louco pela dor. Já está meio atordoado, não percebeu?
– Me deu arrepios! Quando ele perguntou por Mu...
– Ontem ele me disse a mesma coisa: que estava esperando Mu voltar. Não dei atenção porque era natural depois do dia de pesadelos que tivemos, mas hoje ele fez a mesma pergunta...
– Ele não dormiu, Camyu... está zonzo. Se Zeus quiser ele dorme e amanhã vai estar menos maluquinho...
– Ah, Milo... ah, Milo... isso não devia estar acontecendo...
– Eu sei... você não tem a sensação de que isso é um sonho mal?
– Eu rezo para que seja.
- X -
Comentários: Bom, aí está mais uma fic com meus adorados. Só posso prometer que ela será curta, em três capítulos – que já estão prontas. Para quem, como eu, ama ver o virginiano e o ariano juntos, este é um desafio a nossa imaginação. Como seria ávida de Shaka sem Mu? O orgulhoso e mimado indiano se gabou de viver bem sem seu carneirinho. Vejamos se nos próximos dois capítulos ele se sairá bem em seu intento.