Não se esqueça de mim

"O grotesco dos acontecimentos diários

vos esconde a verdadeira infelicidade

das paixões" - Barnave

Nevava num luminoso dia de verão quando Belatriz Black o parou na rua para perguntar como ia o caso Tom Riddle.

Seus cabelos, não mais lisos, tinham voltado a ondear nas pontas como quando ela tinha 15 anos, e ela estava sentada numa cadeira de jardim na frente do Black Esmerald, usando apenas a parte de baixo de um biquíni. A neve caía à direita e à esquerda de sua cadeira, mas sua pele era tocada apenas pelo sol. Seus seios pequenos eram duros, cobertos de gotas de suor, e ele notou que ela tinha mesmo voltado a ter 15 anos. Ele se esforçava o tempo todo para se lembrar de que eram primos e que não devia lhe lançar um olhar cobiçoso.

Um pouco mais adiante, Dorcas estava colocando uma rosa negra no cabelo de Annabeth. Do outro lado da avenida, um bando de cachorros brancos, pequenos e nodosos como punhos, olhava para elas, com baba escorrendo pelos lados das bocas.

"Preciso ir embora", ele falou para Belatriz, mas, quando olhou para trás, Dorcas e Annabeth tinham desaparecido.

"Sente-se", disse ela. "Só por um segundo", e seus olhos de pálpebras caídas se voltaram para baixo.

Então ele se sentou e a neve começou a cair na parte de trás de seu colarinho, gelando sua espinha. Seus dentes batiam quando ele disse: "Pensei que você estava morta."

"Não", disse ela. "Eu só dei uma saidinha."

"Para onde você foi?"

"Para casa. Merda."

"O quê?"

"Esse lugar continua a mesma merda."

Dorcas pôs a cabeça para fora do Black Esmerald. "Você não vem, Sirius?"

"Tenho que ir embora", disse ele, batendo de leve no ombro da Belatriz.

Ela pegou a mão dele e colocou-a sobre o peito nu.

Ele olhou para Dorcas, mas ela pareceu não se importar. Andrômeda estava a seu lado, e as duas sorriam.

Com a mão dele, Belatriz acariciou o próprio mamilo. "Não se esqueça de mim."

Agora a neve caía em seu corpo, amortalhando-o.

"Não vou esquecer. Preciso ir."

"Até."

As pernas de sua cadeira de jardim cederam sob o peso da neve, e, quando ele olhou para trás mal pôde distinguir suas formas sob a pilha de neve macia.

Tonks saiu do bar, pegou a mão dele e deu para o cachorro comer.

Ele ficou olhando seu sangue espumar na boca do cachorro. Ele não sentia dor – era quase agradável.

"Está vendo?", disse Tonks. "Ele gosta de você, Sirius."

Às três da tarde do dia seguinte, Sirius acordou e viu Lupin sentado na ponta da cama, as costas curvadas, os ombros apoiados nos joelhos, tendo uma conversa visual com um pato de pelúcia no chão. Sirius virou os olhos para cima e viu focas de resina penduradas no teto por fios de náilon, e Lílian, que estava ao seu lado com os dedos indicador e médio sobre sua jugular e cheirava a leite quente.

Ele tentou lhe falar que ela estava apertando suas costelas no lado direito, mas só conseguiu produzir gemidos.

"Tudo em ordem", ela disse, dando um sorriso, e tirou a mão. "Lupin, pegue a tipóia dele."

Lupin pegou a tipóia no estrado do berço e a passou para Lílian, que a encaixou com cuidado no braço de Sirius enquanto ele se sentava.

Ele não se lembrava de nada. Ele só sabia que escutara alguém lhe dizer algo sobre estar lendo livros. Mas ele não conseguia ver como ler livros podia explicar o fato dele estar deitado num quarto de bebê com um braço enfaixado, a vista embaçada, dores no corpo e um puta gosto de pilha misturado com sangue na boca.

"Ei, Almofadinhas", disse Lupin, "do que é que você se lembra?"

"De porra nenhuma."

"Ele lembra de ser desbocado", disse Lílian a Lupin. "Memória inconsciente."

Lupin a olhou. Lílian se inclinou sobre Sirius novamente para pegar alguma coisa no criado mudo e ele sentiu o cheiro do leite novamente, tão forte que se não tivesse sido criado na civilização teria avançado nela como um bezerro faminto.

"Que tal um chocolate quente?", ela disse. Lílian às vezes era uma santa.

Ela saiu do quarto. Lupin ficou olhando para a porta aberta e um minuto depois disse: "Lembra de Ted Tonks?"

Sirius fechou os olhos e balançou a cabeça. De uma só fez ele lembrou de tudo, como se o nome Ted Tonks viesse puxando as últimas 72 horas junto.

"Nós estivemos monitorando você."

Sirius abriu os olhos. "Monitorando?"

"Eu estive. Desde o acidente na Skyway." Lupin abaixou a cabeça e coçou a nuca. Quando voltou a se endireitar, Sirius viu suas olheiras, não tão fundas quanto da última vez, sombrearem seus olhos como hematomas azuis. Quando ele sorriu, a ponta dos caninos apareceram debaixo do lábio superior. "Tive de fazer isso. Estava preocupado com você."

"Estava preocupado."

Lupin colocou a mão no bolso do casaco e lhe jogou uma bala de revólver no colo. Sirius a olhou. Estava ligeiramente amassada na ponta. "Nos últimos meses você tem vivido como um alucinado, Almofadinhas. A sua casa está cheia de coisas iguais a essas, e a sua mente está tão confusa que você não consegue dormir. Você ficou acordado durante mais ou menos quatro dias. Foi preciso doparem você por engano para que você dormisse."

"É como Dorcas dizia sobre o sono: as pessoas dão muita importância e ele", Sirius pegou a bala na palma da mão. "E aí você ficou me..." Então a ficha caiu. "Vocês revistaram a minha casa."

"Eles estavam desconfiando de você."

"Uma porra, Aluado!"

"Ascar e Mulkern tinham provas de que você estava mantendo contato com Belatriz Lestrange."

"O que eles tinham era uma droga de fita em que o maníaco do filho do Bartô Crunch me ameaçava e dizia sem mais nem menos o nome dela. Vou lhe dizer o que foi isso: eles não queriam meter o filho do cara na história, era mais fácil engolir a fita, deixar o resto de lado e vir em cima de mim."

"Pode ser, Sirius, mas Mulkern ficou com a dúvida na cabeça. E ponha-se no lugar dele, ele podia ter uma maçã podre no meio do próprio pomar. Ele tinha de conferir."

Sirius balançou a cabeça.

"Bem, a sua sorte é que eu resolvi revistar a sua casa antes que ele tivesse vontade de fazer isso, e entreguei a ele o relatório de tudo o que encontrei lá", Lupin disse. "Quase tudo."

"Quem assinou o relatório?"

"Vance."

"Ela não estava de férias?"

"Isso foi a quase seis meses atrás."

Sirius estava sendo vigiado a quase seis meses. Pessoas entravam e saiam de sua casa sem ele se dar conta, registravam sua vida, preparavam relatórios sobre ela, e ele não tinha percebido. Estava começando a cair em si. Quando uma cobra está sibilando do seu lado por tanto tempo e você não escuta, não é falta de atenção. É indiferença. A grande sorte não era a de Lupin ter revistado sua vida antes de todo mundo, mas sim o fato de que ele ficou pouco mais de cinco meses sem ver Belatriz, mais ou menos o espaço de tempo em que fora posto sob vigília. Durante quase seis meses ele acordara e fora dormir com o cheiro do sangue em suas narinas, toda a comida mastigada por ele naquele período fora degustada enquanto ele calculava o modo mais rápido de chegar a Tom Riddle, ou a qualquer um daqueles outros putos, ele ligava o chuveiro e escutava as risadas de Mulciber e Macnair no chiado da água, o alumínio das torneiras lhe lembravam as lâminas das facas e o metal da máscara de Rodolfo Lestrange.

"Você precisa dar um tempo", disse Lupin.

"Sei disso", Sirius disse, e riu. "Nós não devíamos ter nos metido nessa."

"Como assim?"

"Se tivéssemos recusado o convite de Dumbledore, se ao invés de entrar na Ordem tivéssemos seguido nosso caminho, tudo isso não estaria acontecendo, minha cabeça não estaria... eu não pensaria em...Eles não estão dormindo."

Lupin olhou para a porta por sobre o ombro. Depois voltou a olhar para Sirius.

"Tiago e Lílian", Sirius disse. "Ninguém aqui está conseguindo viver. Nossas vidas se transformaram em medo e tensão. Não era isso que eu queria, não sei o que eu queria, mas não era isso, com certeza. Isso aqui não combina com a gente, Aluado. Os Marotos, não combina com eles."

Lupin pareceu perder a respiração por um segundo. Então arregalou os olhos, coçou a barba e fungou. "Pois é."

Sirius pôs os pés no chão e olhou para o berço. Estava vazio. Por alguma razão aquele berço vazio o frustrou mais do que ele podia ter esperado. Geralmente um berço vazio não o incomodaria tanto, mas naquele momento o vazio era mais um abandono do que a ausência de algo.

"Merda", Sirius disse.

Lílian entrou no quarto com uma xícara fumegante numa das mãos, e o bebê estendido no outro braço, enrolado numa manta de lã. Ela passou a xícara para Sirius, mas ele não a pegou.

Um mês antes ele escutara alguma coisa sobre uma profecia, numa das conversas de mesa redonda no Tap, algo que vazou entre uma caneca de cerveja e outra, já no final da noite, quando todos estavam mais bêbados do que lúcidos, e por isso o boato tinha tanta validade quanto fofoca de jornal sensacionalista. Ele se lembrava vagamente da voz de Pedro reclamando que as pessoas ficavam se embebedando em bares até tarde da noite e começavam a gritar qualquer besteira sobre bebês nascendo no final de julho, revirando os olhos e engrossando a voz, e todos os babacas no bar acreditavam que era uma profecia. Ele criticou a ingenuidade da mídia que induzia as pessoas a crerem em qualquer coisa que fizesse muito estardalhaço, e a essa altura ele se levantou da mesa e foi ao banheiro, e o assunto se desfez em algum ponto entre um bocejo dele e uma outra dose de álcool no copo de Sirius. Alguns dias depois, tendo esquecido completamente o comentário de Pedro, Dumbledore tomou uma atitude suspeita: contratou Sibila Trelawney para dar aula em Hogwarts no cargo de Adivinhação.

"O que você acha disso?", Tiago perguntou a Sirius quando entraram no elevador do Ministério. "Sabe quem é ela?"

"Uma professora de Adivinhação? Turma de 78."

"A mãe dela foi provavelmente a maior picareta da história na arte de Adivinhação", Tiago disse.

"De Embromação."

"Pois é, pra você ter uma idéia. Você acha que Dumbledore não sabia disso?"

"E daí?"

Mas agora Sirius estava adivinhando a dimensão da charada. E daí que Dumbledore não iria contratar uma pessoa que não fosse profissional para ensinar em Hogwarts e isso significava que ela, enfim, não era uma picareta. Isso não teria a menor importância, se não fosse o fato de Belatriz ter lhe alertado – agora ele lembrava perfeitamente – a uns dois dias atrás, para que escondesse os Potter. Na época do boato ele não se deu conta de que o parto de Lílian estava previsto para o final de Julho, e nem que a pessoa que gritara no bar, revirando os olhos, era Sibila Trelawney e ela não estava bêbada.

Pedro estava voltando para casa quando, ao dobrar uma esquina, viu Sirius e outro cara encostados ao porta-malas de um sedã preto, estacionado em frente ao seu prédio. O sedã preto tinha placa oficial e antenas suficientes para fazer transmissões para o planeta Vênus, e Pedro logo percebeu, a uma distância de quinze metros, que o sujeito ao lado de Sirius era Lupin. Eles estavam conversando, Lupin apoiado nos tacões como se estivesse prestes a atacar. Se aquilo não bastasse, o corpo de Sirius, apoiado no carro, projetava uma sombra colossal sobre a calçada, e ele parecia maior e mais denso do que o de costume, o queixo quadrado apontando para cima enquanto olhava para as janelas do prédio.

A mão de Pedro se fechou sobre si mesma dentro do bolso, e em seu peito ele sentiu como se alguém tivesse mergulhado uma faca na água gelada e em seguida encostado a lâmina em seus pulmões. Ele quase parou, os pés querendo se fixar na calçada, mas algo o impelia para a frente, e ele esperava estar dando a impressão de agir normalmente. Sirius voltou a cabeça em sua direção, a princípio com um olhar indiferente, que se animou quando seus olhos cruzaram com os de Pedro.

Os dois sorriram ao mesmo tempo. Pedro deu o seu sorriso mais largo, da mesma forma que Sirius, e Pedro se surpreendeu ao notar que Sirius parecia estar realmente contente em vê-lo.

"Rabicho", disse Sirius, afastando-se do carro com a mão estendida. "Há quanto tempo a gente não se vê?"

Pedro apertou-lhe a mão e se surpreendeu novamente quando Sirius lhe deu um tapinha no ombro.

"Depois daquela noite no Tap", disse Pedro. "Quando foi isso? Há um mês?"

"Sim. Mais ou menos isso."

"E como tem passado, Almofadinhas?" Uma sensação de calor – que o cérebro logo tratou de reprimir – espalhou-se pelo corpo de Pedro.

Mas por quê? Agora restava muito pouca gente dos velhos tempos. As pessoas que ele conhecera em Hogwarts tinham quase todas ido embora para outros estados, na ânsia de ser como todo mundo, formar uma grande comunidade entre os trouxas, viver entre o calor deles e ao mesmo tempo rir do fato de que enquanto se pode aparatar e desaparatar, os trouxas se fechavam em caixinhas sobre rodas e levavam até dias inteiros para ir de um destino a outro.

Não, não restaram muitos, e Pedro sentiu uma mistura de orgulho, de alegria e de tristeza ao apertar a mão de Sirius, lembrando-se do dia em que se transformaram em animagos, e de outros sábados, como aquele, que pareciam anunciar: "Tudo é possível."

"Estou bem", respondeu Sirius.(Ele parecia sincero, mas Pedro teve a impressão de ver uma leve perturbação em seu sorriso.)

Pedro notou que o semblante das pessoas que passavam pela rua se iluminavam ao ouvir a voz de Sirius. Sirius tinha uma voz parecida com a do locutor que anunciava os novos filmes, e um garotinho que ia sendo levado pela mão da mãe ficou radiante ao ouvi-lo. Talvez ele já estivesse contando para si mesmo a história daquele estranho alto e confiante que vira na rua, encostado a um carro preto e grande, perfeito para ser usado em filmes de ação com muito barulho ao fundo.

"Rabicho", disse Sirius. "Você tem um minuto? Queríamos lhe fazer umas perguntinhas, rapidinho."

"Sim, claro. O que é?"

"Naquela noite – acho que foi na noite do Tap – você falou sobre ter escutado sobre uma predição."

Pedro ergueu as sobrancelhas e olhou para Sirius e Lupin. "Você lembra disso?", ele riu. "Como vocês conseguem se lembrar do que eu disse a um mês atrás, tendo nós todos enchido a cara?"

"Isso nunca aconteceu com você?", perguntou Lupin.

"Como assim?"

"Você nunca vomitou lembranças na privada junto com a bílis no dia seguinte?"

Lupin sorriu, e o sorriso dele penetrou na mente de Pedro da mesma forma que os olhos o faziam, como se estivesse vasculhando cada recanto de sua mente.

"Como você ficou sabendo da predição, Rabicho?"

"Escutei por aí", disse Pedro sacudindo os ombros.

Lupin acariciou o canino direito com a ponta da língua.

Pedro olhou para Sirius.

Sirius disse: "É que estamos desconfiando de que a predição não tivesse sido um boato, entende, Rabicho? Sabe quem a fez?"

"Sim."

"A propósito, você se lembra do que ela falava?"

"Não", disse Pedro. "Mais ou menos. Era sobre um terremoto no mês de julho, não?"

Sirius riu e balançou a cabeça. Lupin fez um ruído abafado que para Pedro lembrou um grunhido rouco.

Pedro recuou alguns passos e a sola de seu tênis topou no meio-fio. "Parece que era isso. Esperem...tinha uma criança no meio?"

"Você sabe que tinha."

"Eu não lembro. Vamos lá, não fui eu quem escutei a predição, foi Argo Filch..."

"Sei. Aí nós vamos perguntar a Argo Filch o que ele escutou e ele vai dizer 'Não fui eu quem escutou, foi a minha tia'", disse Sirius, ainda rindo.

Pedro também riu. "Qual a importância disso?"

"É que o filho de Tiago e Lílian nasceu no final de Julho", disse Lupin como que por acaso, perdido na trajetória lenta que o sol fazia ao descer por detrás dos prédios.

"Mas isso foi porque o cordão umbilical enrolou no pescoço dele" disse Pedro, tentando manter o foco no rosto de Sirius. "Por isso ele nasceu antes."

"Pedro, se lembra para quem foi feita a predição?"

"O quê?"

"Predições são feitas de uma pessoa para outra", disse Sirius. "Essa foi feita de Sibila Trelawney. Para quem?"

"Alvo Dumbledore."

Lupin desceu a vista para Pedro.

"Achei que soubessem disso."

"Não faz sentido", disse Lupin.

Pedro apontou para o outro lado da rua, onde um homem ia andando devagar, fitando os próprios pés. "Estão vendo aquele homem? É Joe Crosby. Na noite passada ele estava naquele bar ali da esquina, os amigos dele tentaram tomar as chaves do carro dele. Ele as atirou num deles. Só porque ele estava com raiva. É uma história engraçada. O sujeito não quer entregar as chaves e então as atira. O que há de incoerente em se fazer uma predição a Dumbledore?"

"Você tem razão, Rabicho", disse Sirius, lhe dando outro tapinha no ombro. "Obrigado pela colaboração."

"Não há de quê."

"A gente podia tomar uma cerveja um dia desses", disse Lupin. Pedro viu seus olhos de lobo brilharem na luz vermelho-sangue da tarde. "Em breve."

"Vai ser um prazer."

"Certo. Até mais, Rabicho."

Eles apertaram-se as mãos.

"Até mais, Almofadinhas."

Eles atravessaram a rua e desceram a avenida, enquanto Pedro continuava parado perto do meio-fio. Sirius fez um aceno por sobre o ombro quando chegou do outro lado, e Pedro acenou de volta, mesmo sabendo que Sirius já não podia vê-lo.

"Você não chegou a achar minha coleção de revistas pornôs, não foi?", disse Sirius.

"Ora, Almofadinhas", Lupin disse, enquanto pegava duas garrafas de Rolling Rock da geladeira. "Você não é dessas coisas."

Então sentaram na mesa da cozinha, ouvindo o barulho do vento assobiando pela fresta da janela. Era quase dez da noite e nenhum dos dois dava sinais de cansaço. Sirius tinha de admitir que eram sujeitos saudáveis. Depois olhou para a garrafa de cerveja em sua mão, e achou que saudável não era bem a palavra.

"Nós vamos morrer de úlcera", disse.

Lupin fez que sim. "Voc vai morrer de úlcera. Eu vou morrer envenenado."

"Álcool também é veneno."

"Mas é um veneno bom. Estou falando de..."

Ele parou de falar porque o som foi ligado de repente na sala. Sirius ficou de pé num salto, enquanto sua fita do Deep Purple começava a rodar no volume máximo dentro do aparelho. Lupin deu a volta na mesa e remexeu as almofadas do sofá, procurando o controle remoto. Sirius preferiu puxar o fio da tomada, caindo de costas na mesinha de centro quando o plug explodiu, espirrando sobre ele uma chuva de faíscas brancas e douradas.

"Onde fica o disjuntor?", perguntou Lupin.

Sirius lhe disse onde ficava. Depois escutou os tics vindo da cozinha enquanto Lupin desligava todos os interruptores da casa. Eram cinco interruptores ao todo, dois para o segundo andar, três para o andar de baixo, e o do aparelho de som ficava no interruptor da sala, e era pouco provável que ocorresse sobretensão de corrente naquele ponto, porque só havia uma tomada para ele. Tirando também o fato de que não estava chovendo e de que ele ainda não estava bêbado, o curto circuito não tinha explicação.

As notas da guitarra ainda estavam ecoando pela casa quando Lupin apontou para o quintal com a varinha. Sirius olhou e viu um dos lados da porta de vidro aberta. Ele estava com uma arma no coldre, a varinha na parte interna do casaco e ainda tinha um canivete suíço no bolso traseiro da calça, mas a visão daquela porta aberta para o quintal escuro o fez ter a mesma sensação de desolamento de quando você joga uma granada no campo do inimigo e descobre que esqueceu de puxar o pino.

Devagar, ele saiu para o quintal. Não havia nada além das roupas estendidas no varal. Ele olhou para os ângulos que se formavam entre os muros e o terreno do vizinho e teve o cuidado de não ser tolo o suficiente para chegar neles de cara, lembrando da última vez que fizera isso e quase tivera a cabeça rachada contra a parede e o rosto deformado pelo cabo de uma metralhadora. Dessa vez ele teve o bom senso de deixar Lupin ir verificar.

Ele foi junto à parede externa da sala, parou na metade do caminho e olhou para o outro lado do quintal. Sirius seguiu seu olhar, mas não viu nada além do vão escuro e do brilho metálico das latas de lixo dentro dele.

"Narcisa", disse Lupin.

"O quê?", Sirius disse.

Lupin não respondeu.

Sirius foi para a esquerda, com a mão dentro do casaco, os dedos sobre a varinha, e deu a volta pela cerca do vizinho, já vendo de longe a cabeça loura de Narcisa. Ela estava abaixada perto da churrasqueira, ainda olhando para o quintal da casa de Sirius, e quando ele atravessou o gramado, diminuindo a distância entre eles, ela correu para dentro da garagem. Enquanto ela ficara abrigada pela sombra da churrasqueira, Lupin caminhou debaixo de um raio de luar em sua direção, e ela não o viu. Lupin não era um homem que se podia considerar pequeno. E se ela se enfiou na garagem não foi por estar fugindo dele. Ela realmente acreditava que a coisa toda só estava acontecendo entre ela e Sirius.

"Eu não sabia que você curtia Deep Purple", disse Sirius, enquanto entrava na garagem, com Lupin logo atrás.

Ela estava encostada à capota traseira do carro, olhando para o lado direito, mas mesmo assim não se perturbou quando eles vieram pelo lado esquerdo.

"Sua casa virou uma feira", ela falou, olhando para Sirius.

"Pois é", disse Sirius. "Você não ficou sabendo?"

Ela deu de ombros. "Eu não posso fazer nada, Sirius."

"Então vamos conversar", ele pegou o revolver na maior calma e encostou o cano na junção entre o maxilar dela e o pescoço. "O que você perdeu na minha casa?"

"O que é isso?"

"Você vai descobrir quando eu usar", ele colocou o dedo dentro do gatilho. "Ou não."

Narcisa ficou olhando para a arma pelo canto dos olhos. Depois olhou para Sirius, e sua fisionomia mudou. "Você é um puta homem, Sirius", disse. "Eu não sei que merda é essa que você está segurando, mas dá vontade de transar com você no ato."

Ela sorriu. Sentou na capota do carro, afastando as pernas e as pressionando ao redor do quadril dele.

"Eu só estava fazendo o meu trabalho."

"É uma bonita frase burguesa", Sirius olhou por cima do ombro dela e viu os olhos de Lupin na escuridão. "O que minha casa tem a ver com seu trabalho?"

"Por que é que você nunca se casou?"

"Porque sou jovem demais para morrer."

Ela sorriu. "Ah, sim", disse, pegando a mão dele, a que não estava pressionando o revolver contra seu pescoço, e a colocando sobre sua coxa direita, logo abaixo da costura da saia. "Eu fiquei o dia inteiro na sua casa."

Foi a vez de Sirius sorrir. Ele gostava de sua casa, mas sabia que ela não era o tipo de casa que oferecesse entretenimento 24 horas. O que quer que Narcisa tivesse ido procurar, ele tinha escondido muito bem.

Narcisa moveu a perna e o músculo de sua coxa ondulou sobre a mão dele. "Foi um dia proveitoso."

"Achou o que queria?"

"Estava em todos os lugares", ela falou, "É uma coisa que vai estar pra sempre na sua casa, por todos os lugares."

Ele odiava charadas. Acionou o gatilho. Mas não tinha muito sentido botar medo em Narcisa, porque ela nem sabia o que era pólvora. Fosse como fosse, o barulho do gatilho sendo acionado a fez começar a suar; as gotas brotaram em sua garganta e umedeceram os cabelos prateados em suas têmporas.

Ele a olhou nos olhos. Narcisa não estava com medo. Era outra coisa, mas não era medo. E depois, ele pensou, eles eram primos, apesar de tudo. Ela sabia que ele usaria aquela arma no máximo para lhe fazer cócegas. Quando se está com medo, todos os músculos do corpo se injetam e enrijecem, e ela não estava tensa; o músculo de sua coxa estava macio como um pedaço de carne fresca. Quando se está com medo as pupilas dilatam, as dela estavam normais, e as pálpebras estavam retesadas, e não contraídas, a respiração estava lenta, e não acelerada.

Ela inclinou a cabeça para o lado, ignorando a arma, e encostou o nariz na jugular de Sirius. O segurou pelo cós da calça e o puxou contra si mesma. Ele sentiu os músculos poderosos da virilha dela palpitarem contra sua perna. Ela farejou desde a garganta até a base dos cabelos dele, e murmurou alguma coisa pelo caminho que Sirius não compreendeu, mas de alguma forma lhe pareceu engraçado.

Ele procurou os olhos de Lupin na escuridão, mas ele não estava mais lá.

Sirius recolocou a arma novamente entre eles, sem entender porra nenhuma do que estava acontecendo, foi então que Narcisa levou os dedos dele até a própria boca e murmurou "Remo", de olhos fechados.

E Lupin rosnou ao seu lado antes que Sirius tivesse tido tempo de dizer "Merda".

"Veja o sutiã dela, Almofadinhas", ele falou.

"O quê?"

Narcisa abriu os olhos.

"O elástico do sutiã", disse Lupin devagar, "Não olhe para mim."

Sirius não se mexeu.

"Tire a merda da roupa dela e olhe no elástico do sutiã!"

Narcisa inclinou a cabeça para a frente e aspirou a gola da camisa de Sirius. Ele sabia que ela estava sentindo o cheiro de Lupin, mas como não o podia ver, imaginava que o cheiro estivesse na camisa dele. Ela ergueu os olhos e Sirius viu dentro deles a perspicácia do amor: ela sabia que Lupin estava ali.

"Com licença", Sirius disse, e enfiou a mão por debaixo da blusa dela, enquanto mantinha o revolver pressionado na garganta dela, a encarando. Ela estava usando uma blusa de fibra fina que vestia folgada ao redor do corpo, mas ele não contava com a segunda pele. A maldita segunda pele.

"Nem pense nisso", Sirius disse, quando ela ameaçou reagir.

Ele encontrou o fecho do sutiã, e depois a regulagem da alça, e seus dedos sentiram algo além de pele ali. Narcisa encostou o queixo no ombro de Sirius e disse: "Vocês lobos não sabem guardar segredo." Sirius ouviu Lupin responder em algum lugar perto de seu ombro esquerdo: "Mas nós temos boa memória." Ele retirou a mão e amassou entre os dedos o que tinha encontrado. Na escuridão da garagem não dava para saber o que era, mas parecia tecido.

"Como você sabia que ela tinha escondido no elástico do sutiã?"

"Porque", Lupin disse no obscuro da escada "era onde ela costumava colocar a chave do quarto."

Sirius esticou as pernas na mesinha de centro e ficou olhando para o quadradinho de tecido. Media algo em torno de vinte centímetros de diâmetro e fora recortado de um lençol tão antigo que ele havia esquecido que existia. Pertencera a um dos primeiros jogos de cama que ele comprara assim que adquiriu aquela casa, e isso fora a quase oito anos atrás. Na época ele tinha dezessete anos e entendia tanto de decoração quanto entedia de reatores nucleares. Com o tempo fora adquirindo senso o suficiente para não comprar tapetes vermelhos quando as toalhas fossem amarelas, ou forrar os travesseiros com fronhas de jogos diferentes, o que dava ao quarto o mesmo ar confuso de um quarto de puta. Mas no primeiro ano que morou naquela casa ele entregara a decoração à Deus. Do mesmo modo que deixara de lado as roupas sujas e a louça acumulada na pia, a limpeza dos ladrilhos do banheiro e a contagem da comida na dispensa, porque nessa época o dinheiro de Alfardo ainda permitia ligar para o serviço doméstico e pedir uma diarista a cada fim-de-semana, e essa foi a única preocupação que ele teve nesse período obsceno que foi sua vida. Um ano.

Foi quando Belatriz começou a aparecer nos fins-de-semana que ele parou de chamar as diaristas. Ela vinha geralmente sem avisar, foragida das excursões à Hogsmeade, só com a roupa do corpo, e eles passavam o dia todo jogados no sofá da sala bebendo licor de pêssego, falando sobre as praias no litoral do México, dos preços das passagens de trem para atravessar a Europa, a qualidade do leite nos chocolates suíços em comparação com os da Inglaterra, da posição das constelações dos signos no céu. No início parecia a perda de tempo maior conversar essas coisas quando podiam estar fazendo amor, mas Belatriz era fria para essas coisas, parecia que o simples fato de estarem juntos já era transcendental a ponto de suplantar qualquer necessidade física nela. E havia também o mal estar de sua primeira vez, que ela fingia não importar muito, mas que com um pouco de boa vontade e influências freudianas percebia-se que não conseguira superar.

Nos dias que não eram sábado ou domingo, Sirius perdia todas as noções que pudesse ter sobre civilização. Passava várias noites sem dormir, rodando pela cidadezinha, topando com maltrapilhos e estrangeiros perdidos que só passavam por Cotswolds porque tinham comprado o guia do ano anterior com o nome da estrada errada, entrava em igrejas vazias e ficava escutando o estalo dos bancos, imaginando que as Imagens dos Santos pudessem ter algum significado além do estético, e até voltar para casa já tinha feito paradas desde a loja de conveniência no final da rua até a casa de Massagem atrás do canal. Nessa época ele se acostumou a ver Cotswolds pelas sombras da noite, e decorou cada ângulo fundo da cidade. Viveu tanto de noite que de manhã, quando chegava em casa, os olhos ardendo de cansaço e sono, encontrava a cozinha vazia e a sala cintilando com a enorme quantidade de copos espalhados pelos móveis e pelo chão, e se perguntava até onde podia chegar a irrealidade de sua vida.

Então, num desses fins-de-semana sobrenaturais, Belatriz resolveu não ir embora. Ela passou uma semana enfiada na casa de Sirius, e no quinto dia de amor enfurecido e obstinado, ele se viu morando num lugar hediondo e caótico que há muito tinha convertido à condição de motel. Ele chegou a imaginar se não estavam indo longe demais, até ter certeza de que estavam quando começou a encontrar pedaços de sanduíches mordidos deixados no degrau da escada por alguém que se encontrara ocupado demais para terminar de comê-lo, e a vomitar em intervalos de cinco em cinco horas, quando então acreditou que fosse morrer de úlcera. À essa altura eles já tinham deixado marcas pela casa inteira e ela toda já tinha aquela fragrância tépida de sexo que permanece mais na memória do que na realidade, e até hoje Sirius lembrava da mistura do cheiro do suor de Belatriz combinado ao aromatizante de sândalo quando descia as escadas e olhava para a sala ou para o quarto. Ele lembrava do calor do estômago dela, e do modo como ela entrava pela porta da frente, usando o uniforme da escola, a metade da perna aparecendo entre a saia e a meia, e andava pela casa o procurando, falando do último sonho que tivera através do sumo de uma maçã que tivesse pegado na fruteira.

Nessa época não havia nada que os incomodasse. Nessa época eles dormiam sobre lençóis que não tinham a menor preocupação em estar harmonizando entre si, se beijavam entre colheres de sorvete e tomavam banho com shampoos que cheiravam a mel e leite. Vestiam calças rasgadas, desabotoadas, com o cós tão frouxo e puído que escorregavam pela cintura e ficavam um nível abaixo da barra da cueca. Penteavam os cabelos um com a mão um do outro, saiam descalços para ir até a praça e molhar os pés na grama úmida de orvalho, enquanto o vento quente da primavera esquentava-lhe as costas. Marcavam-se com sucções nos rituais que eram suas lânguidas carícias e esperavam em segredo que alguém estivesse, em algum lugar, tendo esperança e bom senso por eles. Nessa época o mundo podia acabar, eles não iam se perturbar, porque eles não estavam no mundo.

Sirius piscou várias vezes e parou de olhar o pedaço de pano. Olhou para o teto.

"Estava em todos os lugares", Narcisa falara. "É uma coisa que vai estar pra sempre na sua casa, por todos os lugares."

E ia mesmo. Aquele pequeno pedaço de pano era mais que um retalho de lençol. Ele continha, entranhado em suas fibras de algodão, a mistura de amor que ficara guardada por oito anos num armário abafado no quartinho dos fundos, quando Sirius tentou extirpar todas as lembranças de Belatriz quando ela deixou, de uma hora para outra, de visitá-lo. Ele não tivera coragem de tomar atitudes mais drásticas, porque naquele tempo ele tinha quase dezoito anos mas ainda era ingênuo o suficiente para não desconfiar que palavras como "fim" e "morte" existiam para além do plano da imaterialidade. Por isso ele ensacara todos os lençóis e toalhas da casa e as enfiara no fundo de sua memória.

Mas ele já não tinha mais dezessete anos e precisava com urgência tomar aquela atitude drástica que ele não tomara quando deveria, porque se não fosse a bela complacência da sorte, aquele pedaço de pano poderia parar em mãos erradas, como certamente estava destinado a ser desde que fora separado de seu todo.

Você precisa tomar mais cuidado, Sirius pensou. Narcisa queria fazer esse pedaço de pano chegar até a Ordem.

Pelo que parecia, Rodolfo Lestrange não ia esquecer dele tão cedo.

Do outro lado da cidade, Tiago ligou para o telefone celular de Andrômeda pela quinta vez em uma hora. Ouviu a gravação pela quinta vez em uma hora. Já pedira ao Departamento de Comunicações do Ministério que a localizasse, mas seu celular estava fora de área ou bloqueado, de modo que nem o sistema GPS trouxa nem o rastreamento mágico deles conseguia encontrá-la. Pelo sim, pelo não, ele tentou a casa dela outra vez. A mesma merda.

Eram quase duas da manhã agora. Pelas suas estimativas, estavam dois dias atrasados, talvez mais. Era para o caso já estar fechado e resolvido, com todos os pinos em seus lugares, mas não. Enfiou outro chiclete na boca e começou a mastigar. Graças a Deus, não gostava de nicotina.

O celular tocou. Ele o agarrou no mesmo instante.

"Potter."

"Pontas, aqui é Mulkern"

"Sim?"

"Estou retornando sua ligação."

"Preciso de mais tempo."

Chuvisco na linha.

"Pegamos Belatriz Lestrange", Tiago disse, "Foi difícil, mas conseguimos. Perdemos uns cinqüenta homens nessa brincadeira..."

"Eu sei", Mulkern interrompeu. Parecia estar rasgando um charuto com os caninos. "Ela está aqui."

Tiago franziu as sobrancelhas.

"Moody e Gideão a trouxeram para cá", Mulkern continuou, e depois disse devagar: "Merda".

"Já entrarem em contato com Dumbledore?"

"Eu não posso simplesmente avisar Alvo disso. Ele precisa ver, merda. Todo mundo precisa ver. Essa mulher é um demônio, Potter. É uma maldição."

Tiago sentiu as têmporas latejarem e as coçou. "Sei disso."

"Não, você não sabe. Ninguém sabe até estar trancado com ela sozinho numa sala. Ela mata você, meu amigo. Não uma morte qualquer, mas uma morte mental. Ela distorce toda a sua mente até que você esteja pirado o suficiente para não reagir. Isso se ela estiver num dia bom."

"Vi o que ela fez com os aurores na sala daquela casa", disse Tiago.

A resposta demorou para vir do outro lado. Quando Moody começou a falar, sua voz se confundiu no começo com o chiado da linha. "Acabei de sair da sala de interrogatório. Ela matou mais alguns aqui, antes de desabar de vez. Demos cinco doses, Potter, mais três e seria como por um dragão para dormir. Eu estive com ela, e foi a coisa mais...irreal que eu já vivi. Você olha para ela, tenta achar alguma culpa nos olhos dela, nos gestos, algo que a revele, qualquer merda, e tudo que você vê é uma coisa que não existe. Não é o nada, é apenas algo que não conhecemos. Já olhou para uma criança de cinco anos, Potter?"

"Já."

"É exatamente isso. O olhar de uma criança de cinco anos quando acabou de acordar e está assistindo ao desenho animado na televisão. Distante de você e do que quer que esteja acontecendo na casa. Nada a faz piscar, nada importa. E então..."

"Sei, escute, Mulkern, está vendo? É absurdo especular uma relação entre ela e Sirius."

Mulkern bufou. "Não estou vendo nada, Potter. Isso não vem ao caso."

"Não vejo hora melhor para isso vir ao caso. Você é um general, faz parte da sua natureza desconfiar. Mas imaginar algo entre Sirius e Belatriz Lestrange é delirar."

"Delirar", disse Mulkern. "É. Delirar."

A conversa terminou ali. Os dois se despediram com palavras murmuradas, Tiago desligou o celular, o colocou sobre a mesinha de centro em sua frente e o olhou. Tinha opiniões formadas sobre a tecnologia dos trouxas, em geral eram opiniões imparciais, mas aquele pequeno aparelho era o cúmulo do egocentrismo humano. É algo que se usa para diminuir distâncias e facilitar o cotidiano – diziam os cínicos – e para Tiago era desculpa esfarrapada. Isso podia ter sido a intenção a princípio, mas depois as pessoas começaram a gostar do fato de que podiam dizer coisas importantes por telefone, como se desculpar com alguém, ou desmanchar relacionamentos, ou rastrear dados, e o simples fato de falar com a pessoa sem ter ela ou os olhos dela para o intimidar fazia do telefone uma invenção tão confortável e indispensável quanto a invenção dos absorventes higiênicos. Facilitava, sim, mas não era o cotidiano. Era a sobrevivência humana com sua própria espécie.

Tiago riu. Talvez um dia comprasse um celular. Aquele fora cedido pelo ministério caso fosse preciso lidar com trouxas. Quando não estava lidando com trouxas, ele o usava como peso de papel.

Enquanto estava olhando para ele, o celular tocou.

"Alô", disse, e foi ignorado por uma gravação que pedia para que ele esperasse a chamada ser completada, como se ele fosse dizer "alô" para desligar em seguida.

Quando a chamada completou, Andrômeda disse: "Tiago?"

"Você desligou seu celular?"

"Eu não tenho mais celular", ela disse, a ligação estava horrível. Tiago foi para a janela tentar melhorar o sinal. Enquanto andava a voz de Andrômeda oscilou na linha: Ted...esquecido...falar comigo?"

"Como você soube que eu estava ligando para você?"

"Você...es..."

"Andrômeda, como você soube que eu estava ligando para você?"

"Você estava?"

"Porque me ligou?"

"Eu estava...dormir, mas me...na cabeça...", a ligação caiu.

Tiago a retornou. Enquanto o celular discava, ele viu o número. Ela estava ligando de um telefone público. Porque ela havia feito isso? Porque não tinha simplesmente tentado usar a lareira ou aparatar?

"A ligação caiu."

"Eu sei", ela disse, "Escute, Tiago, eu tenho pensado muito em uma coisa. Uma coisa que só começou a fazer sentido agora."

"Hum."

"Quando éramos crianças, eu e minhas irmãs, costumávamos desenhar nossos sonhos. Mamãe ficava com todos eles, ela gostava, eram coloridos, ela dizia que tínhamos sonhos bonitos. Mas Belatriz sempre desenhava a mesma coisa, até os cinco anos de idade ela só conseguia desenhar uma única coisa, até mamãe desconfiar que ela não desenhava seus sonhos, ou ao menos não somente eles."

"Hum."

"Ela desenhava um olho. No começo era uma coisa mal rabiscada, sem forma, achávamos que era um redemoinho, mas com o tempo percebemos que era um olho. Ela pintava linhas azuis dentro do olho quando lhe davam lápis de cor, mas em geral era um olho em branco."

"Você disse até os cinco anos..."

"Sim, depois ela parou de desenhar."

"O olho?"

"Não, ela nunca mais desenhou nada."

Tiago passou a mão atrás da cabeça. "E porque isso só fez sentido agora?"

"Gostaria que você olhasse os desenhos. Vou deixá-los no Ministério amanhã. Você vai entender."

"Vou mesmo?"

"Vai. É muito óbvio."

"E você não sabia que eu estava ligando?"

Ela riu. Tiago achou aquele riso estranho, ligeiramente sedutor. Ele já tinha escutado Andrômeda rir outras vezes, e não era assim. Talvez fosse distorção da ligação outra vez.

"Já ouviu falar que mulheres são intuitivas?", ela disse. "Preciso desligar. Vou tentar dormir. Passo no Ministério amanhã. Boa noite, Tiago."

Tiago desligou e ficou olhando para o céu. Sem estrelas, escuro e simples como um desenho infantil.

Sirius avisaria à Lílian para saírem de casa – pararia numa das salas da escola,veria se tinha uma lareira para uso público. Deixaria uma mensagem para ela, usando o código de emergência da equipe. Foi até o final do corredor do primeiro andar, que não tinha segurança alguma – ou seja, Hogwarts à noite era vigiada por um homem senil e uma gata igualmente remota, mas que de qualquer forma não podiam prestar atenção em mais de um andar ao mesmo tempo – e acionou a lareira. Não era necessário senha, claro. Em qualquer outra escola acessar uma lareira pública exigia precauções, mas Hogwarts ainda era Hogwarts. Não que eles confiassem particularmente nas pessoas. Mas eram detalhes, e ele os evitavam. Era a melhor escola da Inglaterra? Não, de acordo com todos os critérios. Mas, segundo qualquer critério que fosse, era a mais saudável intelectualmente.

Um código que ele nunca imaginara usar era o "expresso da meia-noite". Significava: um dos integrantes da Ordem está sendo alvo de Magia adversa e que este deve sair de circulação imediatamente, onde quer que calhasse de estar.

Quando ela visse a mensagem, ia ficar confusa, mas faria o necessário. Ele disse o código. Depois acrescentou: "Fale com F." Havia uma nova vida garantida, dado os acontecimentos recentes. Fudge compreendia muito bem o funcionamento das coisas ultimamente. Daria aos Potter um bom lar.

Sirius apagou a lareira e saiu da sala. Pelo visto, ia demorara para encontrar os Potter outra vez, ouvir notícias deles, não saberia que rumo a vida deles iria tomar. Mas trabalhar em completa escuridão era a natureza do jogo. Às vezes, havia vultos ao seu lado; às vezes você estava sozinho.

Saiu pelo corredor térreo na direção do pátio, onde ficava a fonte de mármore. Ao lado da fonte estava a árvore sob a qual ele beijara Connie Bell. E a mais ou menos uns dez metros, o banco no qual ele vira Tiago e Lílian sentados, estudando para a última prova de seus anos escolares.

Sirius sentou-se no banco e sentiu o desânimo que sempre sentia quando estava verdadeiramente sozinho. Mas daquela vez, diferente das outras, esse desânimo era mais agudo. O céu liso acima de sua cabeça, os corredores escuros e vazios o rodeando, a fonte desligada como se estivesse morta, irradiando a luminosidade alva do mármore molhado – tudo fazia parte de um passado que ele não lembrava mais como era. A maciez natural da pele de uma garota, o abraço delas, as palavras delicadas que elas escreviam em seu caderno, nos livros, ou que, numa tarde mais particular, rabiscavam em sua própria pele, e a espontaneidade com que os fatos aconteciam, mesmo os menos importantes, ele não lembrava nada disso. Todo o passado agora lhe parecia incrível demais para ter existido. Porque agora ele estava avisando a seus amigos que deixassem uma vida totalmente construída para irem viver outra, e isso não era espontâneo. Porque a mulher que ele amava às vezes cheirava a sangue, e a maciez de sua pele não era natural, era mais como uma necessidade que doía, e porque beijar não era algo que ele fazia com tranqüilidade, porque agora era sagrado. As palavras que ele lia não eram doces, eram ameaças, despedidas regadas de sangue, cartas perdidas numa confusão de ódio, obsessão, crueldade. Por tudo isso, aquele desânimo não era apenas um desânimo.

Fosse como fosse, ele não ia ficar ali sentado lamentando o passado ou o presente. Não tinha ido até lá para isso.

Com muita disposição – afinal era o que ele estava aprendendo a ter desde que Dorcas deixara de ter por ele – Sirius se levantou e entrou de novo nos corredores, subiu a escada principal, chegou no segundo andar e foi então que viu um vulto atravessar seu caminho aos tropeços. Ele se virou, procurando o vulto, e viu não só uma mas duas garotas. Elas se assustaram com ele e uma agarrou o braço da outra, e Sirius fingiu que não tinha visto que ambas vestiam apenas camisolas diáfanas e que tanto uma quanto a outra já deviam estar terminando a escola naquele ano.

"Boa noite", Sirius disse, "Para onde estão indo?"

"Para a torre da Sonserina", disse uma delas, mais pela pressão do susto que por vontade própria.

"Tentem a passagem atrás do armário de vassouras", Sirius murmurou. Depois lembrou que havia quatro armários de vassouras. "O do terceiro andar."

Elas anuíram em conjunto.

"Putz", disse a outra de repente. "Ele é um professor, Ked."

"Eu não sou professor."

A garota piscou. "Ah, é claro. Não teríamos tanta sorte."

Sirius sorriu. Tinha vezes, raras vezes, que sentia vontade de voltar à escola. De verdade.

"Foi uma ótima atitude."

Sirius concordou.

"Uma atitude precipitada, mas eu não teria pensado em coisa melhor. O código de emergência, expresso da meia-noite?" Dumbledore riu devagar. "Ah, é verdade, nunca me ocorre que vocês ainda possam agir de vez em quando como Marotos."

"A gente tenta. Nunca é como antes, mas a gente tenta", disse Sirius, cruzando as mãos sobre o ventre e deslizando um pouco mais na cadeira. "Mas voltando ao assunto, porque nenhuma providência foi tomada antes?"

"Providências foram tomadas", disse Dumbledore. E ele estava sério. Significava que a conversa finalmente ia começar a ficar interessante. "Mas sem barulho."

"Eles estão correndo risco de vida."

"Todos nós estamos. E nesse caso só quem precisa saber que alguma atitude foi e está sendo tomada são os Potter e mais ninguém, Black. Em vista disso não mandei mensagens, porque mensagens podem ser interceptadas, inclusive acabei de cancelar a sua. Fudge ou qualquer um do Ministério não precisa entrar nisso. As providências que tomei foram as que Fudge tomaria, você sabe porque, Black?"

Sirius fez que sim, puto. Se Dorcas estivesse ali ela teria dado palmadinhas em seu joelho e lhe provocado. "Mimado", ela teria dito, "Que cara mais feia. Só porque estragaram seus planos." E ela nunca ia deixar de estar certa.

"Mas eu estava esperando que um de vocês tomasse uma atitude", Dumbledore retomou o discurso. Sirius se perguntou se teria de bater palmas no final. "Afinal, são seus amigos..."

"Você ficou esperando que tomássemos uma atitude", Sirius se inclinou para frente e o encarou, "Sempre sabe de tudo. Não é?"

Dumbledore ergueu uma sobrancelha. Na escuridão de sua sala oval, seus olhos azuis pareciam vidro fumê. Seus dedos tamborilaram no tampo da mesa, como se ele estivesse meditando, e sua boca se curvou numa careta de avaliação. Então ele abriu uma das gavetas de sua cabeceira e pôs sobre a mesa um envelope de papel timbrado e um embrulho disforme que parecia já ter sido aberto e fechado várias vezes. Ele pegou primeiro o envelope, o abriu e passou o conteúdo a Sirius.

Sirius o leu e imaginou se seria seguro estar empalidecendo naquele momento.

Antes que pudesse se decidir, Dumbledore disse: "Não concordo com essa atitude de Moody e Gideão. Mandei que suspendessem o interrogatório e a deixassem lúcida. Mas se ela ficar lúcida, irá para julgamento."

Ele empurrou o embrulho na direção de Sirius lentamente, o olhando por sobre os óculos de meia-lua, e com dois dedos o abriu parcialmente.

Sirius viu uma massa negra brilhando dentro da escuridão do embrulho, e levou algum tempo para reconhecer aquilo. Precisou retirar completamente o papel e pegar aquilo nas mãos. Aquilo era o cabelo de Belatriz.

"Você não se lembra, mas ela foi pega naquela noite. Moody e Gideão a levaram para o Ministério e a doparam, porque ela estava matando muita gente. Calculo que a perda de aurores tenha sido de 30 no total", ele fez uma pausa, "Querem chegar a Voldemort através dela. No entanto, é evidente que uma pessoa não pode falar se estiver desacordada, então tentaram ler a mente dela, e outra vez não obtiveram resultados. Então fizeram o caminho inverso, cortaram o cabelo de Belatriz Lestrange e o enviaram ao esposo. Queriam que ele saísse da toca, mas ele não saiu, apenas nos enviou de volta a isca, e eu disse a eles que era uma sorte ser apenas cabelo e não uma dinamite."

Sirius deixou as mechas de cabelo irem deslizando entre seus dedos, macias, mas não mais mornas, agora que estavam longe do contato com o corpo dela. Teve ímpetos de aspirar o cheiro do cabelo, mas não ia se entregar, Dumbledore podia estar blefando.

"É uma besteira o que eles estão fazendo. Mas se não for assim, ela irá presa. Está ouvindo, Black?"

"E porque não a prendem?"

"Porque não há provas de que ela esteja ligada a Voldemort."

"Provas", Sirius largou o cabelo sobre a mesa novamente. Por alguns segundos ficou observando o barbante gordo que o amarrava. Eles não tinham sido generosos, todo o cabelo de Belatriz estava ali, e pela simetria das pontas, havia sido cortado num único golpe de espada.

Sirius voltou a se encostar na cadeira. "O que vocês querem, Dumbledore? Vocês querem pegar Tom Riddle. Se ele for pego, seus seguidores não vão valer mais nada, você sabe disso, todo mundo no Ministério sabe disso. Já tentaram chegar até ele usando Belatriz Lestrange e não conseguiram. Façam o que deve ser feito e continuem."

Dumbledore pareceu não ter escutado. "Ainda temos mais uma chance", disse.

"Chance de quê?"

"De persuadir Belatriz Lestrange."

"Sim, digam a ela que da próxima vez vão lhe cortar fora os cílios. Pode ser que ela diga alguma coisa."

"Você vai se encontrar com Belatriz Lestrange", disse Dumbledore sem levantar os olhos, enquanto guardava os papéis que Sirius tinha deixado de lado.

"Vou?"

"O Departamento vai monitorar toda a conversa."

Sirius sentou-se na cadeira de frente para Mulkern, tendo entre eles uma mesa de cerejeira escura do tamanho de seu apartamento. Ascar sentou-se à esquerda de Mulkern. Meia dúzia de generais ocupavam o resto da mesa, a maioria murmurando entre si. Mulkern e Ascar não estavam conversando. Estavam o olhando. Alec, chefe do Departamento, na outra ponta da mesa, tinha uma penseira à sua frente, um aparelho que Sirius desconhecia e outra coisa que parecia um alicate especial.

Ele levantou e foi na direção de Sirius. "O que você e Bartô Junior andaram conversando?"

"Política, a cotação do iene, coisas assim."

Ele pôs a mão no encosto da cadeira de Sirius e aproximou tanto o corpo que Sirius sentiu o cheiro de menta em sua boca. "Diga-me sobre o que conversaram, senhor Black."

"O quê você acha que conversamos de tão especial, Alec? Ele me disse para ficar fora da investigação."

"O mesmo que Tom Riddle."

"Não, Tom Riddle não disse isso."

"Gravamos a conversa de vocês na casa dos Potter."

"Ele não disse isso", Sirius repetiu, "Ele não está preocupado com o que estamos fazendo ou deixando de fazer."

"Bartô Junior está foragido", disse Ascar como nota.

Sirius olhou para Mulkern. Mulkern sorriu. Alec não tinha perguntado sobre Belatriz. Significava que a fita com a gravação da ligação de Bartô Junior não tinha chego nas mãos dele. E também significava que Mulkern, apesar de tudo, ainda confiava em Sirius.

"E aí você desligou o telefone."

"Na ocasião, me pareceu que era a resposta adequada."

"Porque seu nome volta e meia aparece na minha sala?"

"Não tenho a menor idéia."

"Por que Belatriz Lestrange quer falar apenas com você e com mais ninguém?"

"Também não sei."

Ele bateu com a mão nas costas da cadeira, começou a dar a volta à mesa, parou atrás de Mulkern e Ascar, pôs as mãos nos bolsos. Dava a impressão de estar sem dormir há uma semana.

"Preciso de respostas, senhor Black."

"Sinto muito, não as tenho. Enviei a Mulkern a cópia do meu arquivo sobre esse caso. Mandamos as fotos encontradas na casadas vitimas. Contei a vocês tudo o que me lembro sobre meu encontro com Belatriz Lestrange naquela noite. À parte isso, estou tão por fora quanto vocês."

Ele tirou uma mão do bolso e esfregou a nuca. "O que você, Mulciber, Jamie Parkers, Smith Parkers, Bartô Junior, Belatriz Lestrange e Tom Riddle têm em comum?"

"É uma adivinhação?"

"Responda à pergunta."

"Puta que pariu. Eu. Não. Sei", disse Sirius levantando as mãos. "Ficou claro?"

"Você tem que nos ajudar nesse caso, senhor Black."

"E eu estou tentando, Alec, mas seu método de atuação é tão sutil quanto o de um agiota. Se você me irritar, vou ter que me esforçar para conter a raiva, e não vou poder ajudar em nada porque não consigo pensar."

Alec foi para o outro extremo da sala. A parede do fundo media dez metros, isto é, toda a largura da sala, e o pé-direito tinha três metros e meio. Alec puxou um a cortina que a escondia, e então Sirius viu um painel de cortiça que ocupava noventa por cento da parede.

Fotografias e croquis das cenas dos assassinatos, placas e análises espectrais e listas de indícios e provas estavam pregados na cortiça com percevejos ou pendurados com fios finos. Sirius levantou-se e foi andando devagar ao longo da mesa, esforçando-se para apreender o conjunto daqueles elementos.

Atrás dele, Mulkern dizia: "Já interrogamos todos os envolvidos que sabíamos ter alguma relação com esses casos, Sirius. Interrogamos também todas as pessoas que conheciam Jamie Parkers e todas as outras vitimas, inclusive você, que trabalhava junto com Dorcas Meadowes... e nada. Nada de nada. Não conseguimos chegar na ligação de Tom Riddle com elas."

"Não tinham linhagem pura", disse Sirius, e apontou a lista de nomes encontrada na casa de Tom Riddle, tão antiga que era um dos itens mais altos no quadro.

"Nem todos. Meadowes tinha sangue puro. Se ele não se preocupa em estarmos o procurando, não teria porque matá-la."

Havia fotos de todas as vítimas, duas mostrando-as ainda vivas, várias tiradas depois de mortas. Pámela Stokes parecia ter uns trinta anos de idade. Numa das fotos ela estava com os olhos semicerrados por causa do sol, a mão levantada na altura da testa, o sorriso iluminando um rosto bastante comum.

"O que sabemos sobre ela?"

"Vendedora da Anne Klein", disse Ascar. "Na última vez foi vista, duas noites atrás, estava saindo do Mercury Bar, na na Boylston Street."

"Sozinha?", Sirius perguntou.

Mulkern balançou a cabeça. "Comum sujeito de boné de beisebol, óculos escuros e cavanhaque."

"O cara estava de óculos escuros num bar, e ninguém estranhou?"

"Você já esteve no Mercury?", perguntou Ascar. "É cheio de esnobes très chics. Todos usam óculos escuros dentro do bar."

"Então aí temos nosso assassino", disse Sirius apontando para a foto que mostrava uma moça jovem encostada no ombro de Mulciber, num lugar escuro. Uma foto tirada sem muitas preocupações, o flash estourou e deixou ambos brancos como fantasmas, olhos vermelhos como coelhos.

"Ou pelo menos um deles", disse Ascar.

"Vocês tem certeza de que foram dois?"

"Estamos trabalhando a partir dessa hipótese. Pámela foi morta por dois homens, não há dúvida."

"Como sabe disso?"

"Ela os arranhou", disse Mulkern. "Há dois tipos diferentes de sangue em suas unhas."

"As famílias de todas as vítimas receberam fotos delas antes dos assassinatos?"

"Sim", disse Ascar. "É talvez a única característica de seu modus operandi. Cinco das dezenove vítimas foram encontradas em lugares distantes daqueles em que foram mortas. Smith Parkers foi encontrado em Dorchester, Stimovich em Squantum e os restos de Pámela Stokes em Lincoln..."

Sob a fileira das vítimas recentes, havia fotos com a indicação "Vítimas de 1974". O rosto juvenil de Régulo, com um ar ligeiramente insolente, parecia olhar para Sirius. Embora ele não tivesse pensado nele nos últimos meses, teve de repente a impressão de sentir o cheiro do xampu Piña Colada que ele usava no cabelo e se lembrou que todos zombavam dele por causa disso.

"Vocês investigaram a existência de pontos comuns entre as vítimas?"

"Sim", disse Alec.

"E então?"

"Descobrimos dois", disse Alec. "A mãe de Jamie Parkers e o pai de Pamela Stokes cresceram em Dorchester."

"E o outro?"

"Jamie Parkers e Pámela Stokes usavam o mesmo perfume."

"Qual?"

"Segundo análises laboratoriais trouxas, Halston para mulheres."

Sirius se virou e olhou diretamente para Mulkern. Mulkern acenou com um gesto vago de cabeça e disse: "Sim, Dorcas também usava."

"Análises laboratoriais", Sirius repetiu, observando as fotos de Evan Rosier, Rabastan Rouse, Antonio Dolohov, Augusto Avery, Belatriz Lestrange. Havia duas de cada um. Uma recente, outra tirada há pelo menos dez anos atrás.

"Vocês têm alguma idéia do motivo desses crimes?", Sirius perguntou, olhando para Ascar. Este desviou os olhos e fitou Mulkern, e Mulkern passou a bola para Alec.

"Alec", disse Sirius. "Vocês descobriram alguma coisa?"

"Sim. Sobre a mãe de Tom Riddle", disse ele finalmente.

"O que tem ela?"

"De vez em quando ela dava consultoria, como psiquiatra, em processos criminais."

"E daí?"

"Daí que ela traçou um perfil psicológico do próprio filho quando este estava na idade de quinze anos. Ela fez um relatório como se estivesse julgando um criminoso e refutando definitivamente o suposto argumento de defesa, que alegava insanidade. A Sra. Riddle, senhor Black, imaginou o próprio filho indo para a prisão."

O Nível Final, como era chamado o lugar onde os suspeitos ficavam para interrogatório e averiguação, era um andar isolado, iluminado por archotes de chamas azuis que faziam com que qualquer olho aberto brilhasse no escuro como bolas de néon. Nele só se podia entrar com permissão do Departamento ou com via de conduta assinada pelo presidente do Ministério. Sirius tinha tudo isso e mais alguma coisa, mas ainda sim foi parado na entrado do corredor.

O homem leu sua permissão devagar como se a vida fosse eterna. "É casado, senhor Black?"

"Não."

"Tem filhos?"

"Não, e você?"

O homem fez que sim. "Dois. Isso ajuda."

"Ajuda em quê?"

Ele fez um gesto em direção às paredes. "Ajuda a suportar este lugar. É bom poder voltar para casa, ficar junto dos filhos e sentir cheiro de gente limpa." Ele olhou para Sirius e em seguida desviou o olhar.

"Não tenho dúvida."

"Seu trabalho", disse ele, "deve pôr você em contato com tudo o que há de ruim na natureza humana."

"Depende do caso."

"Há quanto tempo trabalha nisso?"

"Pouco mais que dois anos."

"Mas ainda é jovem."

"Sim."

"Pretende continuar nele a vida toda?", perguntou ele lançando-o aquele olhar furtivo.

"Ainda não sei. E você?"

"Acredito que sim", disse ele bem devagar enquanto o guiava pelo corredor. "Acredito que sim", repetiu num tom lúgubre.

"Fale-me sobre a moça", Sirius pediu.

"Na verdade, ela é um enigma", principiou ele. "É de família rica, recebeu boa educação, não sofreu maus-tratos nem teve traumas de infância. Tampouco apresentou sinais precoces de qualquer disfunção mental. Pelo que sabemos, ela não torturava animais, não tinha obsessões mórbidas nem mostrava comportamento anormal. Era uma aluna brilhante e muito popular..."

"Quem disse?"

"Pesquisamos, senhor Black..."

"Estudei com ela. Ela não era popular."

O homem parou em frente a uma sala com porta de alumínio. Havia um quadrado de vidro na parte superior da porta que permitia ver o que estava acontecendo dentro da sala, mas Sirius não viu nada por que estava escuro.

"Certo", disse o homem, "mas alguma coisa deve ter acontecido." Ele abriu a porta e nenhum dos dois disse mais uma palavra.

Como vocês devem ter notado, esse capítulo teve algo de AU. Na verdade foi um erro que eu cometi enquanto escrevia sobre a mãe de Tom Riddle, mas achei que ficou bom demais para tirar ou modificar. Acabou virando um AU.

Esta fanfic contém trechos das obras de Dennis Lehane.