Tempestade
Prólogo
Será que eu sou capaz?
De enfrentar o teu amor
Que me traz insegurança
É verdade demais
Será que eu sou capaz?
Veja bem quem eu sou
Com teu amor eu quero que sintas dor
Eu quero ver-te em sangue e ser teu credor
Veja bem quem eu sou
Trouxe flores mortas para ti
Quero rasgar-te e ver o sangue manchar
Toda a pureza que vem do teu olhar
Eu não sei mais sentir
Legião Urbana, A Tempestade
Ainda não era noite. No entanto estava tão sombria quanto a mais negra das noites, as densas nuvens cinzentas que cobriam todo o céu deixavam a terra nas sombras. O aspecto melancólico e sombrio do ar carregado refletia o seu espírito. Seus olhos vazios fitavam o nada, tinha seu corpo esguio açoitado pelo vento forte, os fios lisos e finos agitando-se ao redor do rosto que mais parecia uma máscara branca e inexpressiva. Pareceria mais uma casca sem vida, uma estátua de mármore, não fosse pelo fato de que se movimentava pelo campo. Um fantasma que deslizava sobre a grama, guiado pela corrente de ar que o envolvia.
Olhou para cima, onde uma montanha de pedras avançava para o céu. Começou a escalá-la, sem pressa e nem mesmo se importando quando sua mão ou pé escorregava e escapava, arriscando a cair e arrebentar-se no chão abaixo de si. Em nenhum momento voltou-se para baixo, sempre mirando para cima, obstinado a chegar ao topo. Afinal, Athena o havia tornado um cavaleiro e lhe dera força sobrenatural. Recusava-a agora, assim como se rebelava contra a deusa e suas crenças falsas. Havia voltado a sua humanidade vulnerável e frágil.
Chegou ao seu destino, arrastando-se pelas pedras até estar em terra firme. Ofegava e uma fina camada de suor cobria a pele alva e perfeita. Não importava, na verdade não notava seu esforço humano. Sua mente estava dormente, um sonâmbulo cambaleando entre a consciência e a inconsciência.
Ficou imóvel, fascinado com a paisagem soturna que descortinava na sua frente. O horizonte, onde terminava o céu e começava o mar, ou o contrário, a ambigüidade que enganava seus sentidos. Os raios riscavam esse quadro agitado, de falsa tranqüilidade, o som ensurdecedor dos trovões chegando aos seus ouvidos junto com o das ondas, a ponto de não mais identificar qual era qual.
Deu um passo adiante, e sua visão ficou turva, sentiu tonturas, as pernas bambas. Fechou os olhos e apertou a cabeça com as mãos, respirando fundo, para depois abri-los confiantes. Deu outro passo, mais firme, e mais outro, para a beira do penhasco. Seu coração quase saltou pela sua boca, tamanha a admiração. Como éramos pequenos e fracos diante da natureza destrutiva!
Embaixo de si, a agitação das ondas que a tempestade iminente causava, quebrando violentamente contra as rochas, querendo parti-las em mil pedacinhos, levar aquela massa abaixo. Aquela violência hipnotizava-o, a água revolta em sua fúria. Tremeu. Não, não era medo. Era fascínio, que purificava sua alma e trazia lágrimas aos seus olhos.
A lenda do mergulho.
As pinturas gregas nos sarcófagos antigos. Retratos de belos jovens lançando-se ao mar.
Sacrifício...
Morte... Alívio... Sublimação...
A prática existia na Grécia Antiga, para ser aceito e perdoado pelos deuses, superar o corpo, a carne, a matéria, o mundo humano... o amor mundano.
Ah, aquela água escura parecia tão viva, tão sedutora. Chamava-o para si, ecoava nos seus ouvidos. Era irresistível. Ajoelhou-se e pôs as mãos no chão, inclinando-se mais para a ponta escorregadia. Começara a chover. Muito. Forte. Uma torrente caía sobre o pequeno homem inerte, os cabelos grudando no rosto.
Plínio mencionara nos seus escritos sobre Safo, que se atirara ao mar para superar seu amor por um homem... o amor terreno... a dor que sentia por ele era tanta, que acreditara que o salto aliviaria seu coração.
Seria possível?
Ah como seria bom, não sentir mais aquele aperto, aquela angústia... não mais, nunca mais...
A grande massa de água se elevava, violenta, como se quisesse arrebentar aquela fortaleza e trazê-lo abaixo, para si, para seu mundo silencioso. Ora não era preciso fazer isso, estava prestes a ir até ele, submisso, ébrio.
Ergueu-se na ponta do precipício, adorando o vento que movia ao seu redor, empurrando-o. Deu um salto para frente, levando o corpo a queda livre. Diante de seus olhos, apenas uma massa de cores indistintas, que aos poucos foram tomando formas...
Formas, que conhecia, não lembrava muito ao certo, mas conhecia. Era algo da sua infância, que havia se esquecido por muito tempo.
oOo
O orfanato católico na França, os padres, as crianças vestidas igualmente, num uniforme azul marinho. Camus. O pequeno e solitário, Camus. Sentado sozinho numa sala cheia de móveis sisudos de madeira, diante da parede decorada com candelabros e um imenso quadro de um aristocrata antigo.
A cadeira onde se sentava era grande, as perninhas ficavam suspensas, balançando para frente e para trás. E junto com elas seu corpinho balançava, os braços apoiados nas coxas. O cabelo curto e bem aparado, os olhos indiferentes, a expressão fria. Estranha para um garotinho daquela idade.
Quando a porta se abriu, moveu apenas os olhos para ver o padre que entrava com um casal francês. Mais um deles, já estava cansado daquilo. Mas mesmo assim sorriu tão encantador, que mal parecia o menino de alguns segundos antes. Seu rosto se transformara, parecendo calmo e doce. A mulher suspirou de imediato ao vê-lo, e depois virou para o marido, murmurando um "ele é lindo".
O homem apenas acenou com a cabeça, concordando. Usava um terno preto, elegante. E pelo vestido de seda e as jóias que a esposa usava, deviam ser muito ricos. Ela se aproximou e se ajoelhou diante de Camus, pegando seu rostinho entre as mãos. Parecia tão feliz. Mas o marido permanecia na porta, ao lado do padre, com as mãos nos bolsos, olhando indiferente para a cena a sua frente. Entendeu de imediato, ele fazia aquilo por ela, provavelmente não queria um filho. Pois muito bem, também não queria um pai. Se já não agüentava olhá-lo agora, imagine se fosse morar com eles.
A mulher perguntou-lhe seu nome num tom leve, confortante, acompanhado de um sorriso.
- Camus.
- Que nome lindo...
- Mamãe o deu para mim... - sorriu encantador - antes de ser assassinada.
A mulher tirou a mão de seu rosto, colocando-a em forma de concha na boca, para abafar um som de espanto. Lançou um olhar reprovador para o padre, que pediu desculpas. Olhou satisfeito para o homem de terno, havia quebrado aquela casca intocável. Teve vontade de rir, mas se conteve. Faria isso depois, quando estivesse sozinho.
- Camus, pare de dizer mentiras. - o padre ralhou.
- Mas não é mentira... esteve nos jornais, - olhou para a mulher arregalando os olhinhos azuis - Sabia?
- N-não sabia...
- Ora...- balançou a cabecinha - devia ler mais.
- Por favor, perdoe. São coisas de crianças. Tem de se acostumar, elas têm uma imaginação surpreendente. - o padre interferiu.
- Claro. - o homem concordou.
- Mas é um garoto educado, calmo, gentil. Não terão problemas para cuidar dele.
O que ele estava dizendo? Dando um manual? Não era um objeto. A mulher voltou a sorrir para ele, segurando seus ombros.
- Camus, o que acha de mim?
- Uma moça muito bonita. Que eu adoraria ter como minha mamãe.
Ela se derreteu, suspirando e voltando a encarar o marido, que continuou calado. Estava maravilhada. Era tão doce. Doce, meigo, encantador. Mas com uma pedra de gelo sem vida dentro do peito. Era fácil fingir ser o que os outros queriam que fosse, porque não se importava com eles, não os amava, nem os amaria. E era divertido, vê-los o mimarem, o adorarem. E deixarem ele logo em paz.
Continuou com seus sorrisos e palavras meigas, até que o casal saísse da sala, convencidos a adotarem-no. O padre o mandou ir para o quarto. Assim que se viu sozinho, voltou a expressão de antes, estava aborrecido. Não queria ir, nem ficar. Não queria pais, não queria aquilo.
Sentou num canto, escondido nas sombras. Alguns meninos passaram afobados por lá, encolheu-se mais, não queria ser encontrado. Mas foi. Um loiro corria atrasado, parando ao ver seu pé ali.
- Camus?
- Hum?
- Camus! Vem rápido! Tem um circo russo na cidade, deixaram que fôssemos assistir a apresentação!
- Mas eu...
- Vem logo, seu lerdo!
O puxou pela mão, saindo correndo. Tentou se livrar, mas logo se viu diante dos outros meninos e dos padres. Tarde demais, já iam colocando a mão nas suas costas para guiá-lo junto com os outros. Não conteve uma exclamação ao ver um imenso castelo listrado de vermelho e azul que erguia a sua frente, imponente. Entraram por uma porta que era mais um rasgo no toldo gigante.
Espremeram-se nas primeiras fileiras, esbaforidos. Riam freneticamente, falavam todos ao mesmo tempo, apontando para lá e para cá, impressionados com o que viam. Um palhaço, um domador de leões, o comedor de fogo, os animais... Mas isso tudo não o impressionou tanto quanto os humanos que pulavam lá em cima, de balanço em balanço, nunca perdendo o equilíbrio, a concentração.
Formas etéreas suspensas no ar, graciosas, pareciam até pássaros. Não eram humanos, nem qualquer coisa natural. De corpos magros e delicados, pareciam não pesar nada, muito leves, como se a gravidade fosse uma força insignificante para eles. A desafiava, soltavam das barras, dando giros, piruetas no alto, para depois segurarem novamente, enganando-a. Rindo dela e de tudo que ela representava. As amarras, o tormento de ser confinado a permanecer no chão firme.
Penas flutuando no ar, rastros de luz riscando a atmosfera, danças aéreas, perfeitas. Nenhum erro, nenhum descuido. Desafiavam a morte, zombavam dela, estavam totalmente à mercê dela. Os rostos empoados excessivamente de propósito, dando um aspecto de estátuas móveis, de fantasmas sem expressão.
O pequeno Camus ficava boquiaberto, de cabeça erguida, acompanhando-os com o olhar, sem perder um detalhe sequer daquela coreografia mortal. Um deles saltou, soltando a barra e dando vários rodopios no ar. Seu coração quase saiu pela sua boca, ele ia cair. Mas uma cama de redes grande o segurou, impedindo-o de estatelar no chão. Levantou-se e ergueu os braços agradecendo a platéia, que os saldava com palmas e assobios.
Camus não se movia. Olhava-o fascinado, os enormes olhos fixos no centro da arena. O artista dava voltas, se equilibrando na rede, balançando as mãos para as pessoas, até que olhou diretamente para ele, uma máscara branca, e lhe sorriu. Só daí Camus soltou o ar que prendia nos pulmões, o padre chegou até a ficar preocupado vendo-o ficar roxo. O espetáculo havia acabado.
As crianças pulavam eufóricas ao seu lado, sentia-se sufocado com toda aquela agitação. Queriam conhecer os circenses, ver os animais nas jaulas. Insistiram tanto, que os padres logo aceitaram, um deles foi pedir para o dono do circo que deixassem que fossem aos camarins. Meio perdido, foi sendo arrastado pela turba infantil a qual fazia parte.
Do lado de fora do imenso toldo, haviam alguns trailers pintados, onde eles se preparavam para a apresentação. Ao virem o leão na jaula, correram alegres para lá. Camus ficou para trás, olhou em volta e tomou um susto. O homem que vira se jogar nas redes o contemplava, sentado numa caixa de madeira, ainda fantasiado. Sorriu e se levantou, aproximando-se do garoto. Tinha o mesmo corpo fino que vira ali em cima, andava com elegância.
Agachou-se para ficar na altura dos seus olhos, afagou sua cabeça gentilmente. Falou. Tinha um sotaque muito carregado da língua russa, Camus não entendeu o que dizia, nem tentava, só o olhava mover os lábios.
- Perdeu-se dos seus pais?
Não respondeu. Estreitou os grandes olhos, analisando a pele do seu rosto. Ele suava, e a tinta acabara se desprendendo um pouco. Sem pensar, passou o dedo na sua bochecha, deixando uma marca no lugar. Ficou observando sua digital branca, esfregando um dedo no outro, sentindo a consistência. O homem ficou meio sem graça, não parecia interessado no que falava. Com a ponta dos dedos, ergueu o rostinho, chamando sua atenção. O menino o olhou e sorriu, formando covinhas nos cantos da boca.
- Oui?
Riu, sua voz soou juvenil. Apesar de ser alto, era bem jovem, a idade adequada para fazer tais números no ar, já que tinham de ter corpos magros e leves. Talvez quando se tornasse adulto e ganhasse massa muscular, não poderia mais fazê-lo com tanta facilidade e graça.
E o menino na sua frente parecia mais um anjo, um querubim, tão frágil e encantador lhe parecia. Seu rosto o agradava, conseguira distingui-lo entre tantos rostos infantis na platéia. Surpreendera-se consigo mesmo ao encarar a criança que o olhava fixo, impressionada. Pegou na sua mãozinha, puxando-a levemente, chamando-o para dar um passeio pelo arredor.
Apontou pra um dos trailers, apontando depois para seu próprio peito. Era o camarim deles. Bateu na porta, recebendo permissão para entrar. Todos eles ainda vestidos, rindo e conversando animados. Não os reconheceu, não eram os mesmos bonecos elegantes que vira bailar no ar. Fechou a cara, sentindo-se incomodado com os olhares que se viraram para ele. As mulheres haviam soltado o cabelo, desmanchando o coque apertado no alto da cabeça, e tiraram o branco do rosto. Não gostou, pareciam... humanas.
Seus corpos eram mais volumosos do que pareciam no teto, seus seios maiores. Ao vê-lo, ficaram agitadas, gritando juntas o quanto era lindo. Suas vozes histéricas soaram nos seus ouvidos, irritando-o. Mas ele não era o mestre em agradar? Sorriu e deixou-se ser pego de colo em colo e ser acariciado. Outros garotos como aquele que segurava sua mão fumavam num canto do trailer.
O rapaz russo pegou-o, tirando de uma loira, que protestou. Foi até uma penteadeira com espelho, cheio de apetrechos estranhos, pincéis, potes. Sentou-o nas suas pernas, de frente para a superfície refletora, e pode se ver, com as faces coradas pelos apertões das mulheres. Pegou um pote e o abriu, passando algodão na substância cremosa. Depois passou no rostinho de Camus, tornando-o branco, assim como o seu. Com um pincel passado em outro pote, pintou seus lábios, fazendo-os um botão vermelho.
Virou-o novamente para o espelho, mostrando o que havia feito. Camus arregalou os olhos enormes, debruçando-se na penteadeira, para ver mais de perto. Era isso... queria ficar ali...queria ser aquilo.
Nada de orfanato, nada de casa, nada de pais. Não precisava disso, precisava daquilo que via na sua frente, daquilo que vira há pouco. Aquela magia.
Um padre bateu na porta do camarim móvel, corou ao ver as moças e desviou o olhar, pedindo desculpas. Chamou Camus, era hora de ir embora. Desapontado, puxou a camisa do jovem artista, se recusando a ir. Se desmanchava em lágrimas, o que era estranho, nunca o vira se afetar daquele modo. Sem jeito, o rapaz tentava ampará-lo, dizendo que podia vir vê-los até que o circo fosse embora da cidade.
Embora. A menção da palavra o fez se desesperar ainda mais, se agarrando no pescoço dele. O padre perdeu a paciência e praticamente o arrancou dos seus braços. Viu desolado o levarem esperneando e erguendo seus bracinhos para ele.
Com umas palmadas, o fizeram se juntar as outras crianças, passando-lhe um sermão sobre o fato de ter se separado dos demais. Esfregava as pálpebras, enxugando as lágrimas e borrando a maquiagem recém feita.
No orfanato, um noviço tirava suas roupas e passava a camisola pela sua cabeça. Ainda fungava e fazia beicinho. Haviam lavado seu rosto, tirando a máscara por completo. Mesmo assim, parecia mais uma boneca, imóvel, deixando-se ser manipulada. Quando terminou de trocá-lo, pôs as mãos sobre os ombrinhos, olhando-o nos olhos.
- Mas que coisa feia, chorando no meio de toda aquela gente. Você não é disso, Camus. Nunca foi. - suspirou - Amanhã um lindo casal vai te levar para uma casa de verdade, já imaginou se eles o vissem esperneando daquele jeito?
- Não me importo...
- Ah, se importa sim.
Passou as mãos por debaixo dos seus braços, levantando-o e deitando na cama, para então cobri-lo. Afastou a franja farta da testa lisa, depositando um beijo. Camus permaneceu de olhos abertos, vendo o noviço sair do dormitório, todos os garotos ali dormiam, cansados com toda a agitação do dia.
Não tinha um pingo de sono. Haviam lhe tirado de lá, do único lugar onde se sentira bem em toda sua curta vida. Como ousavam? O padre havia dito que lar era onde nos sentíamos felizes. Se a sensação que tivera olhando-os no alto fosse felicidade, ali era seu lar. Não se sentira assim com aqueles dois adultos de manhã, não sentira nada, como era com todas as coisas que fazia, via ou ouvia.
Claro que não teriam problemas em cuidar dele, nem o sentiriam. Ficaria num canto, quieto, aceitando tudo que mandavam sem pestanejar, movendo-se como uma marionete sem vida. Não era assim naquele orfanato? Não era por isso que era adorado? Era hora de se revoltar, pela primeira vez queria algo, e conseguiria isso.
Sua cama ficava do lado da imensa janela, que era um retângulo alongado, com um arco em cima. As pesadas cortinas escuras estavam abertas, o quarto era iluminado pela lua cheia. Estava sem sono, agitado demais. Tirou as cobertas de cima de si e se pôs de pé na cama, a fim de alcançar o parapeito da janela. Abriu-a, adorando o ar frio que adentrou o quarto, alguns garotos se encolheram debaixo dos cobertores, inconscientes.
Vasculhou a área do pátio coberto pelas trevas com o olhar, notou um movimento perto do portão. Um rapaz saiu de trás do muro, surgindo diante de si, acenando ao reconhecer o garoto. Não havia como identificá-lo, estava bem diferente do ser que encontrara no circo. Mas seu instinto dizia que o conhecia. Trazia uma mala grande e fez sinal para que fosse até ele.
Camus olhou meio desconfiado, mas depois fechou a janela e desceu da cama. Estava curioso por demais. Descalço, andou silenciosamente pelos corredores, todos dormiam. Abriu com todo cuidado a porta principal do orfanato, o padre só se dava ao trabalho de trancar os portões do pátio e jardins. Aproximou-se do portão, curioso com o sorriso do rapaz.
Este tirou um grampo, ou uma espécie de arame e enfiou na fechadura, remexendo. Enquanto isso, dizia a Camus no seu francês precário que ia para o circo, para sempre. Ia com ele. Contava as maravilhas do seu país natal, dos truques que ia lhe ensinar. Finalmente abrira as grades, olhou para o menino, sorrindo e estendendo a mão.
- Você quer vir comigo?
A resposta não veio, nenhuma palavra. Os grandes olhos o fitavam inexpressivos, vazios, sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Após longos segundos, o menino ergueu os braços para si, levantando um pouco a barra da camisola branca. O suficiente para se entenderem, por gestos. O pegou no colo, passando as pernas pelo seu quadril. Era bem leve, como só poderia ser, uma criatura frágil que poderia se quebrar ao menor descuido. Enlaçou seu pescoço e escondeu o rosto no seu peito, sem olhar para o edifício que deixava. O jovem russo passou um braço nas costas dele, e carregou na outra uma mala grande.
Ia voltar para casa, não podia voltar par o circo, não com aquela criança junto. Iriam mandá-lo devolver aos padres, e isso não queria, uma vez que começara ia terminar o que estava fazendo. O pior era que teria de viajar clandestinamente, pular de um trem de carga. Ora, já havia feito isso antes, não vivia ele próprio fugindo? O problema era fazer o mesmo, com um menino de seis anos no colo...
Atravessou ruas desertas na calada da noite, sob a lua cheia, que testemunhava seu crime inocente. Chegaram à estação de trem pelos trilhos, procurava um vagão de carga aberto, olhava para os lados, temeroso de que alguém os visse. Camus dormia em seus braços, alheio, com a cabeça encostada no seu ombro. As pernas descobertas estavam geladas, precisava aquecê-lo urgentemente, mas primeiro precisavam de abrigo para a noite. Sorriu aliviado ao encontrar um vagão entreaberto, pulou para dentro, haviam sacas de sementes empilhadas, haveriam de servir como cama. Seria uma longa viagem, a comida que conseguira roubar era pouca, pois sua idéia de fuga fora repentina.
Repentina, mas valiosa, pensou assim que o acomodou entre suas pernas, estendendo uma manta sobre o pequeno ser que encolhia junto a si. Quem largaria uma criança linda daquelas? E ia realizar seu sonho de se tornar um atleta olímpico na sua terra, e ia criá-lo com todo amor que faltara a ele.
Mas nada era tão simples como parecia. A viagem foi terrível, Camus cansava-se facilmente e por muitas vezes ficava indiferente e emburrado, provavelmente com raiva dele por fazê-lo passar por aquela situação. Ao chegarem, ainda tiveram de andar e se virarem com caronas, até que alcançassem Moscou, a fria e comunista capital. Duas crianças perdidas na cidade coberta de gelo, fora um dia inteiro para conseguir abrigo. Não gostara do dono da pensão, o olhava de uma forma estranha, ambiciosa, sabia muito bem o que queria, quantas vezes teve de enfrentar aquilo. Dormiram, e no dia seguinte, levou Camus consigo para procurar emprego.
Conseguira um serviço numa fábrica, e sempre visitava os ginásios, mostrando suas habilidades. E não importava quanto tempo já estivessem juntos, Camus não falava nem se interessava muito pelas coisas ou por ele. Era um boneco que levava para lá e para cá, tentando agradá-lo, fazê-lo rir, mas era difícil. Se fechava numa concha, taciturno. Um dia conseguira uma entrevista com um dos melhores treinadores que havia na cidade, era um estrangeiro francês. Arrumou o menino com as melhores roupas que comprara com seu pouco dinheiro, olhava-o distraído enquanto o fazia.
No ginásio, jovens vestidos de roupas justas saltavam de camas elásticas, exercitando-se. Os enormes olhos de Camus brilharam, a mesma expressão excitada que o fascinara quando o encontrou, no circo. Deixou-o num canto, indo para a entrevista, vestido apropriadamente. Encontrou um homem maduro, parecia ter uns quarenta anos, apenas alguns fios brancos na cabeleira negra e curta. Era alto, de ombros fortes e largos, mas elegante. Tinha um olhar sério, uma voz grossa e forte, que o fez estremecer.
Mostrou curiosidade para com o menino que trouxera, mentiu que era seu irmão menor. Fez uma cara incrédula e se afastou dele, indo agachar-se na frente do menino. Não se importou em dar-lhe um sorriso ou abrandar a voz, e autoritário perguntou-lhe algo em russo. Camus apenas piscou os grandes olhos azuis confusos em resposta, olhou de esguelha para o rapaz e depois perguntou algo em francês. E o menino respondeu imediatamente, com um perfeito sotaque. Fora descoberto, estremeceu quando o homem se levantou e lhe lançou um olhar aterrador.
Mas para sua surpresa, foi aceito na equipe.
No entanto, a curiosidade que o treinador mostrava para com Camus era estranha demais. Ele não falava com ninguém, não olhava para ninguém, mas para aquele homem ele atendia. Agradava-o, e gradativamente ia perdendo seu "irmãozinho" para ele. Até que o treinador foi embora... e Camus também.
Nenhum adeus.
Numa manhã, percebeu a cama vazia, mas ainda quente, entre os vestígios da noite anterior. Esfregou os olhos, não era novidade, o treinador sempre deixava sua cama antes do amanhecer. Levantou-se para se banhar e fazer o café da manhã, e então chamar aquele por quem tinha feito tudo desde que saíra da França. Estava ansioso pelo sorrisinho doce, quando colocaria o prato de bolo na sua frente, um luxo naquela terra infértil.
Estacou.
Camus tinha as perninhas balançando sentado na cama desfeita, vestido para sair. Cantarolava uma música infantil em francês. Do seu lado, o treinador fechava uma mala de porte médio, com as coisas do menino. Estava vestido formalmente, de terno e gravata, executava a tarefa indiferente a sua surpresa e confusão.
Tomou a mala nas mãos, se dirigindo para a porta, ficando de frente para o rapaz desfeito. Encarou-o, um sorriso sarcástico insinuou-se no canto dos lábios rudes. Chamou Camus sem se virar para ele, e o menino pulou da cama, dando passos como pequenos pulinhos, balançando os braços e a cabeça.
Parou na frente do garoto mais velho, sorrindo e estreitando os olhos. Pediu que se agachasse e passou a mão na sua cabeça, cantarolando "seja um bom menino, seja um bom menino" em língua francesa. Passou por ele, seguindo o homem alto. Chamou por Camus, choramingando, sentindo as lágrimas se insinuarem nos olhos. Chamou de novo.
Nenhuma resposta, nenhum som da voz infantil. Virou-se para a entrada, ninguém. Correu para a rua do jeito que estava, vendo-os se afastarem. Um homem grande demais, e um pequeno garoto.
oOo
Abriu os olhos. Descobriu-se ainda em queda, seu corpo mergulhou nas águas revoltas. Afundou mais e mais, não se moveu, não nadou para a superfície em busca de ar. Ficou inerte, deixando que uma força o puxasse para o fundo.
Era tão bom, tão silencioso, calmo... Sentia que aos poucos o ar faltava-lhe nos pulmões, enchendo-se de água. A visão estava turva, descobriu-se perdendo os sentidos. Pouco a pouco, sufocando-se.
Quando foi que tudo aquilo começara? Quando aquela dor horrível tomou-lhe seu coração, torturando-o e tornado-se algo que nunca queria ser?
Foi como se a pedra de gelo que havia em seu peito houvesse se aquecido e derretido, tomando outra forma, criando carne, sangue, que pulsasse... lentamente... até que lhe fora arrancado sem perdão. Podia vê-lo pulsando na mão de alguém, escorrendo pelos dedos longos, tingindo a pele de escarlate vivo. O segurava com cuidado, contra o peito. Não havia crueldade naquele gesto, nem um traço de maldade. Mas uma ternura.
"Você é meu..."
O vulto levou o coração pulsante aos lábios, lentamente, e o beijou, manchando a pele imaculada.
"Sempre foi meu...". A voz ecoou, seguida de uma risada característica dele, sarcástica, desafiante.
Gosto amargo na boca... sangue... o próprio sangue... Uma revolta agitou-se dentro de si, ultrajado com aquele fantasma que o assombrava. Aquilo não podia ter acontecido, não estava acontecendo!
Um toque sutil na face o fez perceber que estivera de olhos cerrados, e abriu-os pesadamente. Mas antes de fazê-lo, sentiu lábios macios comprimirem os seus, forçando-o a entreabri-los. Uma língua serpenteou no seu interior, e voltou a respirar. Sentiu o ar perdido retornar-lhe aos pulmões, num sopro fraco e contínuo.
Viu bem próximo de si um belo rosto, bronzeado e infantil, emoldurado pelos cachos compridos e vastos que flutuavam ao redor da cabeça. Macios, escuros, que teve vontade de tocar, sentir a textura que conhecia muito bem. O par de grandes olhos amendoados piscou várias vezes, encantadores e azuis. Um sorriso gentil adornou o rosto redondo, antes de presenteá-lo com mais um beijo. Doce, intenso e terno, mas não selvagem e cheio de fome como costumavam ser. Afastou-se o suficiente para perder-se nos seus olhos.
"Porque machuca tanto... Porque dói tanto... O que fez comigo?"
Não lhe respondeu, ainda que as frases fluíssem mentalmente, acreditava que ele podia ouvi-las. Apenas pegou suas mãos, enlaçando seus dedos nos seus, puxando-o insistentemente para baixo, para mais perto das profundezas do mar. Voltava a perder os sentidos, a água entrando pelas vias respiratórias, afundando. Conseguia apenas focalizar o ser na sua frente, sorridente, e bastava para si. Conduzindo-o para o silêncio...
Para o fim... O seu fim.
E aceitou-o submisso.
"Você é meu..."
Era sua morte.
CONTINUA...
Novembro/2002
De novo a paralisia do amor toma conta de mim,
Esta coisa doce-amarga, irresistível, insinuante
Safo