PRÓLOGO

Ela pensou que havia chegado ao fundo do poço quando foi abandonada no altar aos 22 anos de idade. Toda a situação tinha requintes de crueldade dignos de uma novela, daquelas que o público adora criticar, mas não consegue parar de ver: o amigo de infância por quem ela se dedicou a vida toda simplesmente decidiu fugir do casamento planejado há anos, deixando-a pateticamente esperando por ele na igreja.

Ela virou motivo de piada na cidade. Sua quase-sogra a culpou, alegando que ela devia ter feito algo para afugentar seu precioso filho. Como se a humilhação não fosse suficiente, Yayoi a demitiu e expulsou do hotel onde trabalhava e morava desde que se entendia por gente. Dias, semanas, meses depois, Kyoko descobriu que seu diploma em administração e hotelaria era inútil diante do mercado de trabalho estagnado e, principalmente, diante da força do nome Fuwa a persegui-la e fechar-lhe portas.

Ela não tinha para onde ir. Ela não tinha referências. Ela não tinha amigos nem parentes para apoia-la. Tudo que ela tinha era o Hotel Fuwa e Sho, mas numa só tacada, ela havia perdido ambos.

Kyoko precisou mudar de cidade, começar do zero. Sua conta bancária mal tinha o suficiente. Todo o potencial que ela sabia ter, toda a dedicação que ela empregou nos estudos e nos dias trabalhados incansavelmente estavam se perdendo em estranhos trabalhos de meio período. Até que, certo dia, Kyoko percebeu que cinco anos haviam voado pela janela e tudo que ela havia conquistado eram anos a mais e um pseudo-relacionamento com um colega de trabalho.

Resoluta e desesperada, ela repetiu a velha rotina de folhear os classificados e vasculhar um por um anúncio por anúncio a procura de uma resposta, um sinal, qualquer proposta que lhe indicasse que tempos melhores viriam.

Até que ela viu o inusitado anúncio.

"Castelo Hizuri II procura governanta jovem e solteira. Remunera-se bem. Mais informações, contatar procurador Sawara no local. Às interessadas, um aviso: único residente do castelo é um poltergeist. Não indenizamos"

Yep, era totalmente bizarro e definitivamente suspeito. "Por que uma mulher jovem e solteira? Como assim, um poltergeist? E por que eles já estavam avisando que não pretendiam indenizar?" eram perguntas que qualquer pessoa normal faria, mas Kyoko estava desesperada demais para pensar como uma pessoa normal, então, ela somente se concentrou na promessa de um bom pagamento e na perspectiva de finalmente trabalhar com algo minimamente parecido com o que ela passou a vida treinando para fazer.

Ela já estava no fundo do poço. Não dava para descer mais!

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Certo?

CAPÍTULO 1

"Quantos metros quadrados o castelo possui? Eu pesquisei, mas não consegui encontrar a informação na internet"

"Senhorita, como eu estava dizendo, as manifestações ocorrem porque às vezes o Mestre fica irritado e-"

"A cozinha está funcionando? O fogão é a gás ou à lenha?"

Sawara estava quase arrancando os cabelos com a nova governanta. Ela era qualificada, sem dúvidas. A primeira candidata verdadeiramente apta que ele entrevistava, na verdade. Depois de tantas ocultistas, golpistas, curiosas, estudantes de jornalismo e, mais recentemente, bloggers, ele ficou feliz por finalmente contratar uma pessoa adequada para o serviço.

Porém, o que Kyoko parecia ter de eficiente, ela tinha de enlouquecedora! A mulher estava disposta a ignorar todos os avisos que ele tentava dar sobre o residente com o qual ela teria que conviver. Era difícil para ele, um homem de meia-idade, falar sobre assombrações, quanto mais ter que insistir no assunto porque quem deveria ser o receptor de sua mensagem sempre desviava o tópico da conversa.

Como ele conseguiria adverti-la sobre os hábitos peculiares do Mestre? Como garantir que ela, também, não sairia correndo aos berros no meio da noite?

E o nome dela era Kyoko! Mera coincidência, ou um sinal vindo dos céus?

Ele não se considerava um homem supersticioso, mas algo dentro dele lhe dizia que aquela Kyoko era exatamente o que a propriedade precisava. Com sorte, a presença dela seria suficiente para apaziguar um poltergeist teimoso, que insistia em dificultar a vida dos curadores ao afugentar todas as pessoas, bem-intencionadas ou não, que se aproximavam de seu precioso castelo.

Quando ela disse que queria começar imediatamente, Sawara engasgou na própria saliva. Estava tarde quando eles encerraram a reunião, portanto ele concluiu que ela preferiria passar a noite em um hotel. Como a pessoa normal que era, Sawara não conseguia pensar em nada mais assustador do que dormir sozinho em um local estranho, notoriamente mal-assombrado e sem sequer ter tido a oportunidade de vê-lo à luz do dia, quando tudo parece menos ameaçador. E ele se considerava um homem corajoso!

A única explicação plausível que ele encontrou foi que a jovem diante dele estava sem dinheiro para um quarto, por mais barato que fosse. Afinal, alguém precisaria estar muito quebrado para aceitar aquele emprego, apesar de ter tantas qualificações, e ainda por cima recusar a oportunidade de uma noite decente de sono.

Kyoko, por sua vez, não era normal, definitivamente. Diferentemente das outras mulheres que ele entrevistou, ela não estava em busca de uma experiência assustadora ou de uma história para vender, menos ainda de um trabalho fácil com bom pagamento. Por mais certo que ele estivesse quanto à falta de grana, não foi por este motivo que ela quis passar aquela primeira noite no castelo, e ainda insistiu nisso quando o curador ofereceu a ela outro lugar para dormir, dizendo que poderia acomoda-la na cama extra do quarto da filha, caso ela não se incomodasse com a falta de privacidade.

A verdade era que Kyoko pretendia começar o trabalho o quanto antes, ao raiar do dia. Na mente dela, nada poderia ser mais eficiente do que já despertar no local de trabalho.

Sawara ficou perplexo com a explicação. Ela era um achado, realmente. Se nem ela fosse capaz de colocar o castelo – e seu ocupante – no rumo certo, o curador perderia definitivamente as esperanças.


Ela estava ali para dar a si mesma uma nova chance na vida, não para sentar em volta de uma fogueira e compartilhar histórias de terror.

Terceiro lugar mais mal-assombrado do mundo, que piada!

Kyoko havia usado as três horas de viagem de trem para pesquisar sobre o lugar onde iria viver e trabalhar, mas só encontrou sensacionalismo. Sim, é verdade que houve uma época em que ela acreditou em contos de fadas e milagres, mas isto foi antes da sua eletricidade ser cortada pela primeira vez. Agora, incomodava-a pensar no fantástico e no sobrenatural porque isso a fazia se lembrar de quem ela era e do quão tola ela costumava ser.

Kyoko não tinha culpa pelos sucessivos abandonos que sofreu, mas culpa era exatamente o que ela sentia.

Era uma oportunidade dos sonhos ter um emprego que lhe garantiria não só o próprio sustento, mas também um lugar para viver e a possibilidade de fazer um pé-de-meia. Em alguns anos, ela acreditava ser capaz de economizar o suficiente para abrir seu próprio negócio, talvez até uma pequena pousada.

Seria uma aposentadoria perfeita! Ela já podia ver a si mesma em um aconchegante quintal, tomando sol em uma cadeira de balanço. Ela calçaria pantufas e teria um gato gordo chamado Bigodes em seu colo.

"A vida mais previsível e entediante que se poderia ter. Exceto pelo gato. Seria o máximo ter um gato!"

Ela se forçou a retornar de suas divagações quando avistou a construção ao longe, e ficou aliviada ao perceber que o Castelo Hizuri II somente era um castelo no nome.

"Está mais para um... palácio, não? Talvez até um palacete, se considerarmos o tamanho dos outros palácios construídos na mesma época"

Sawara nunca ficou mais feliz por estar tão longe do castelo. Se o Mestre ouvisse tal comentário, sem dúvidas consideraria uma insolência, e só Deus sabe o que ele faria com a pobre moça.

"Senhorita, eu lhe imploro... o Mestre é muito apegado ao seu castelo. Por favor, não faça ou diga algo que-"

"Não se preocupe, Senhor. Eu não estou decepcionada e peço desculpas se fui rude. Apenas fiquei aliviada por não ter que cuidar de um lugar tão grande quanto eu imaginei"

Após alguns momentos, Sawara sorriu. Kyoko era mesmo um achado, se ela não se abatia diante da tarefa que a aguardava. Aos poucos ele se afeiçoava à jovem, o que começava a deixa-lo apreensivo e desconfortável, vendo a si mesmo como o algoz que conduz a virgem ao altar do sacrifício.

Ele havia simpatizado com Kyoko, era um fato, mas isto não significava que o Mestre a aceitaria. Pelo contrário, a julgar pela rapidez com a qual as últimas governantas partiram, Kuon estava cada vez menos disposto a tolerar qualquer presença em seus domínios.


Ele sentiu a invasão assim que as portas foram abertas. Havia uma estranha conexão entre ele e seu castelo. Era como se a construção fosse uma parte dele, o corpo físico que ele já não habitava há séculos. Quantos, mesmo? Kuon não sabia mais. Depois de quinhentos anos, ele se cansou de contar.

O assoalho de madeira eram seus músculos. Os alicerces, seus ossos. O encanamento, suas veias. Logo, ele era um velho fraco, reumático e cardíaco. Como um morto poderia ser tão doente, ele não saberia explicar.

Kuon sentiu quando o invasor tentou acender a luz e a lâmpada chiou e espocou. Os tolos podiam tentar o quanto quisessem: seu castelo sempre resistiria às modernizações que tentavam forçar sobre ele.

Apesar do breu, o invasor não se deteve e caminhou com passos mais determinados do que ele esperava. Houve um tempo em que ele apreciava estes momentos iniciais de primeiro contato com novas pessoas. Novas mulheres, para ser preciso, mas conforme os séculos passavam e as decepções se acumulavam, a paciência dele com as interferências em seus domínios se tornava mais e mais escassa.

Bem, era sempre intrigante observar os hábitos e as inovações bizarras que as novas governantas traziam com elas. Algumas pareciam criações do próprio diabo, mas outras eram realmente interessantes. No entanto, o interesse durava pouco tempo; geralmente, só até elas mostrarem suas reais intenções.

Então, a única coisa interessante que lhe restava fazer era conferir quanto alto elas conseguiam gritar e quão rápido elas podiam correr.


Àquela hora e naquela escuridão, não seria possível sequer avaliar as condições da construção e relacionar tudo que precisava ser feito para tornar o Castelo Hizuri II um local aberto às visitações, conforme requerido em seu contrato de trabalho. Portanto, Kyoko resignou-se a somente localizar seu quarto, trocar de roupa e ir dormir.

Ela possuía um excelente senso de direção e, confiando nas orientações que Sawara lhe passou e na luz provida por seu telefone celular, ela se encaminhou para o cômodo no piso térreo destinado a todas as governantas. Por que somente mulheres, e solteiras, ela não havia questionado nem para si mesma.

Pelo pouco que ela viu do aposento, Kyoko sorriu. Segundo o curador, ela dormiria ali porque aquele era o único quarto com condições mínimas de habitação, mas para ela, parecia o paraíso.

"Sawara provavelmente ficaria horrorizado se visse o moquifo no qual eu vivia antes de conseguir este emprego..."

Sentindo-se exausta de repente, Kyoko decidiu verificar se a cama era tão confortável quanto parecia. Ela tinha a intenção de dormir somente depois de desfazer a mala e enviar uma mensagem para Hikaru, mas não conseguiu evitar que o sono a dominasse no instante em que se acomodou sobre os lençóis.

Naquela noite, ela dormiu tranquilamente, alheia à presença que a observava com certa perplexidade. Era a primeira vez em sua morte que ele encontrava uma pessoa que não se acautelava contra ele. Geralmente havia alguma combinação entre água benta, rosário, livros de orações e toda sorte de amuletos, preces e rituais antes da invasora se deitar e também em volta da cama. Jamais alguém simplesmente se deitou e dormiu.

Não que tais artifícios funcionassem contra ele, mas ainda assim, era a primeira vez que alguém demonstrava indiferença. Talvez ela desconhecesse a maldição. Talvez ela o subestimasse. Fosse como fosse, Kuon sorriu com a perspectiva de um desafio. Quanto tempo a nova governanta duraria antes de fugir apavorada?

CAPÍTULO 2

Ela acordou bem-disposta e faminta. Devorou o que havia sobrado do lanche da viagem e se preparou para um dia de trabalho árduo. Começou pelos próprios aposentos, já que queria ter um refúgio para quando o dia acabasse e ela precisasse de um mínimo de conforto para seus músculos abusados.

O som de madeira rangendo e da porta do banheiro da suíte se fechando a sobressaltou, mas ela somente deu de ombros e continuou a limpeza.


Ele se lembrava da mulher que perambulava com passos incertos pelos corredores e cômodos, murmurando coisas para uma pequena caixa preta e cinza. Bobagens como "você realmente consegue sentir a maldade exalando das paredes" e "é como um portal para o inferno".

Também houve a mulher que caminhava com uma traquitana nas mãos, e outra que batia objetos contra as paredes tentando achar passagens secretas. Enfim, houve mulheres de todos os tipos e com as mais variadas intenções: vê-lo, contata-lo, bani-lo, rouba-lo... Nenhuma, em séculos de maldição, havia começado o dia fazendo o que a governanta da vez estava fazendo.

Munida com vassoura, esfregão, balde, espanador e panos-de-chão, ela era uma visão e tanto. Usava um macacão velho e surrado, com manchas de tinta salpicadas aqui e ali, mas que nada faziam para esconder ou amenizar a cor predominante da indumentária: um rosa atroz que lhe feriria as retinas, caso ele ainda as tivesse.

"Love Me – serviços de limpeza", dizia a logomarca nas costas. Pelo visto, Sawara havia finalmente contratado uma profissional, o que não agradava Kuon em nada. Se ela fosse tão eficiente quanto parecia, em breve colocaria seu castelo em condições habitáveis. Por sua vez, isso significava visitantes, e tudo que ele queria era ser deixado em paz. Ao menos, a paz possível para alguém amaldiçoado.

Ele passou a manhã toda acompanhando-a e tentando assusta-la, mas exceto pelos sobressaltos comuns após um barulho súbito, ela permaneceu inabalável diante das manifestações que ele provocava.

Olhando por cima do ombro da invasora, Kuon leu a lista de anotações que ela estava fazendo e se irritou. Muito pior do que a mera limpeza, ela visava a restauração do castelo e isto ele não aceitaria jamais! A nova governanta pretendia adicionar, à punição eterna que ele já cumpria, o dissabor de ter uma horda de estranhos perambulando em seus domínios, perfurando o piso e quebrando paredes, serrando sua carne e martelando seus ossos.

Que o deixassem em paz em seu martírio! Já não era sofrimento o bastante estar preso naquela existência, sem a chance de cumprir um ciclo normal de vida e reencarnar quando fosse o caso?

Em sua última vida, Kuon não teve a oportunidade de ser pai, tio, avô. Ele não ensinou um filho a caçar nem acompanhou uma filha para o altar. Além de ter perdido tantas experiências, por quantas gerações mais ele teria que pagar pelo erro cometido em uma curta existência? Todos que ele conheceu e amou já haviam morrido e vivido muitas vezes; só ele permanecia ali, preso. Condenado.

"Você não ama ninguém, Milorde. Nem a mim, nem a ela. Se o seu castelo é tudo que você consegue amar, fique com ele para sempre, então"


Depois de limpar sua suíte, Kyoko decidiu resolver o quanto antes o problema da iluminação. No sótão, ela encontrou a caixa de luz e o velho gerador de energia. Seria necessário substituir ambos por versões mais modernas. Também seria preciso trocar a fiação de todo o castelo e contratar um serviço de controle de pragas, já que havia sinais de infestações de cupins e de ratos.

Quando ela se preparava para sair do sótão, a porta bateu com violência, deixando-a na mais completa escuridão. Por sorte, ela era uma mulher precavida e havia levado consigo uma lanterna. Assim que a acendeu, manchas escuras começaram a escorrer pelas paredes a partir do teto, em uma cena típica de filmes de terror.

Kyoko nunca sentiu tanto medo na vida. Com ratos e cupins ela podia lidar. Com a falta de aquecimento e de luz ela podia lidar. Porém, infiltrações eram o inferno com esteroides para ela. Bem, pelo menos ela estava conseguindo listar rapidamente todos os problemas do palácio, de tábuas pobres e correntes de ar a pestes e canos quebrados.

Satisfeita por haver progredido tanto em uma manhã, Kyoko decidiu que era hora de limpar a cozinha e verificar do que ela precisava para o pleno funcionamento. Ela estava removendo as cortinas imundas quando ouviu a voz de um garoto.

"Senhorita! Senhorita!"

Olhando para baixo, pela janela, viu um rapaz de cerca de 15 anos acenando do jardim e carregando uma enorme cesta, que provavelmente continha os suprimentos que Sawara havia prometido no dia anterior.

O jovem se recusava a entrar no palácio, então Kyoko o puxou pelo braço afirmando que não o morderia e que estava mesmo precisando de mãos extras. O jovem era conhecido na região como Bo e era basicamente um faz-tudo. Kyoko conhecia bem o tipo: provavelmente vindo de uma família desestruturada, ele fazia o possível para sobreviver por conta própria e fugir das más influências que o cercavam.

Ele se assustava com todo e qualquer barulho que ouvia e parecia em permanente estado de alerta, o que começou a cansa-la e aborrece-la.

"Escuta, Bo. O Castelo Hizuri II nada mais é do que uma casa grande e velha" Em algum lugar, uma porta bateu com mais força do que havia se tornado habitual naquela manhã. Pelas contas de Kyoko, em breve não restariam portas abertas. "Como em qualquer casa velha, há fissuras nas paredes, portas e janelas, então as correntes de ar são frequentes. É o que fecha as portas e derruba coisas" Sons de passos soaram no aposento de cima. "Há sinais de roedores em toda parte. O piso estala e as dobradiças rangem. A madeira empenou em alguns lugares, portanto há desníveis que fazem objetos se moverem sozinhos. Não podemos nos esquecer do encanamento chiando e da caldeira que precisa de manutenção urgente"

Apesar das bizarrices ocorrendo ao redor, a expressão do jovem suavizou lentamente. Não exatamente pela lógica de Kyoko, mas mais pela inabalável coragem que ela demonstrava.

"Como a senhorita não tem medo de ficar sozinha neste lugar?", ele perguntou impressionado.

"Se eu estou sozinha, do que terei medo?", ela respondeu com um sorriso.

Talvez as palavras dela tivessem algum efeito tranquilizador no rapaz, não fosse pela cadeira que se moveu sozinha, lentamente, por vários centímetros, produzindo um som que em muito se parecia com uma zombaria.


Porque Kuon estava, de fato, zombando da nova governanta e de sua audácia em ignora-lo.

Ele esperava ver alguma expressão de choque ou ao menos de curiosidade no rosto dela, mas ela esboçou apenas contrariedade quando Bo soltou o grito que Kuon queria que ela soltasse, e correu desabalado porta afora como Kuon queria que ela fizesse.

Ela era um oponente e tanto. Ele começava a aceitar que precisaria utilizar todos os truques que tinha na manga, se ele pretendia expulsa-la dali o quanto antes.

CAPÍTULO 3

Todos os truques que ele tinha na manga não estavam sendo suficientes, portanto Kuon amargava a humilhação de não ter conseguido incutir medo nela sequer uma vez.

A admiração que ele sentia pela governanta crescia a cada dia e na mesma proporção que a sua exasperação. Será que a mulher não possuía um pingo de senso de autopreservação? Ou seria ela uma lunática? Ele não compreendia como alguém conseguia ignorar objetos caindo sozinhos, portas e janelas batendo, cortinas movendo-se aleatoriamente e sons de passos em cômodos vazios. Para piorar, nem mesmo os sons sinistros que ele provocava de madrugada, que pareciam lamentos e eram altos o bastante para acorda-la, conseguiam amedronta-la.

O máximo que a governanta fazia era enfiar pequenos rolos nos ouvidos e voltar a dormir com um sorriso satisfeito no rosto.

Dias e noites se passaram. Quando Kuon deu por si, aquela estranha mulher havia descoberto todas as passagens e câmaras secretas de seu lar e prisão e quebrado o recorde de permanência em seu castelo, apesar de seus esforços em expulsa-la dali praticamente desde o primeiro dia.


Após três dias sumido, Bo finalmente reapareceu, envergonhado e arrependido por haver fugido e deixado uma mulher à própria sorte. Revirando os olhos para a insinuação do rapaz de que ela não tinha plenas capacidades de se cuidar sozinha, Kyoko aproveitou a oportunidade para torna-lo seu ajudante. Certamente Sawara aprovaria a decisão.

Como Bo ainda demonstrava medo só de olhar para o palácio, ela deu a ele tarefas a serem realizadas do lado de fora, o que a beneficiava sobremaneira: o guri era falante, o que a desconcentrava, e tendia a falar sobre maldições e fantasmas, o que a aborrecia.

Mantê-lo a certa distância enquanto trabalhavam parecia ser a melhor alternativa, portanto ela ficou satisfeita com o arranjo. Kuon, por seu lado, tinha dois novos motivos para se irritar: primeiro, porque a incansável criatura agora contava com ajuda; segundo e mais importante, porque um molecote covarde feito uma galinha conseguia assustar a nova governanta de maneiras que ele mesmo vinha tentando fazer há dias.

Os gritos estridentes que ela soltava quando se surpreendia com o guri a observa-la pelas janelas teria deixado o fantasma orgulhoso de si mesmo, fosse ele o motivo dos gritos.

Mulher irritante e enlouquecedora! A cada dia em que ela se recusava a aceitar que estava sendo assombrada abria um novo rasgo no frágil ego de Kuon.


Trabalhar no exterior do castelo não impedia o rapaz de ver claramente o que se passava no seu interior, fazendo dele testemunha ocular da estranha dinâmica que havia se estabelecido entre Kyoko e o poltergeist de Hizuri II: sempre que a mulher deixava uma porta aberta, ela se fechava sozinha. Longe de se assustar, Kyoko agia como se contasse com tal evento.

Por exemplo, no dia em que ela resolveu limpar o interior dos armários, Bo poderia jurar que o fantasma a estava ajudando como podia, fechando as portas dos armários limpos e abrindo as portas dos armários ainda sujos.

Era fofo, de uma maneira bizarra.

Quando Bo a questionou sobre a ocorrência, Kyoko a atribuiu à instabilidade do assoalho apodrecido e às dobradiças velhas dos armários: conforme ela se deslocava para os lados, o peso de seu corpo desnivelava o chão, inclinando o armário da maneira certa para abrir a porta seguinte e fechar a porta anterior, que ela havia acabado de limpar.

Simples assim.

O garoto não se convenceu com a explicação recebida, mas mesmo assim, aos poucos o medo que ele sentia do castelo e seu poltergeist foi sobrepujado pela curiosidade que ele tinha a respeito da nova governanta e do destemor que ela exibia quanto ao que era, aos olhos dele, óbvias manifestações sobrenaturais de uma entidade maléfica. Que já não era mais maléfica, se ajudava com a faxina.

Após dias de observação, nos quais ele finalmente começou a trabalhar no interior do castelo e a ignorar, seguindo o exemplo da patroa, todas as manifestações que ocorriam, o rapaz concluiu que a única explicação plausível (em sua mente fantasiosa) era que a lenda havia finalmente se cumprido.

Kyoko estava prestes a se descobrir vítima de uma imaginação fértil, o que era irônico de muitas maneiras.


"Senhorita, você é a noiva do fantasma?"

Por muito pouco ela não caiu da enorme escada sobre a qual trabalhava removendo teias de aranha do teto, alheia ao fato de que um certo espírito havia acabado de se materializar aos seus pés e olhava para cima com apreensão, os braços erguidos como se pudesse segura-la no caso de uma queda.

Por que diabos ele se preocupou com ela, Kuon não sabia. Ele tentou se convencer de que o gesto era automático, fruto de mera cortesia. Afinal, seria péssimo se ela caísse, quebrasse o pescoço e se unisse a ele naquela existência amaldiçoada, certo?

Com as palavras do garoto ecoando em seus ouvidos e aumentando a sua inquietação, ele olhou para a invasora com novos olhos. Seria possível que Sawara havia localizado a mulher certa desta vez?

"Noiva, Bo? De um fantasma? Que ideia esdruxula é esta?"

"Bem, a lenda fala sobre o perdão da noiva ou algo assim... e que um dia ela voltaria para o castelo. A senhorita não tem medo deste lugar, então eu pensei que você e o Mestre fossem próximos. E tem a questão do seu nome e-"

Se Kuon ainda tivesse um coração, ele teria falhado uma batida. Após tantos séculos de espera, ele simplesmente havia desistido de reencontra-la e aguardava, se fosse sincero consigo mesmo, que o fim do castelo significasse também o seu fim. O nada era melhor do que aquilo.

No entanto, movido pela sugestão do rapaz, uma incômoda esperança brilhou dentro dele, fazendo-o escrutinar as feições da invasora para encontrar nela alguma semelhança com seu amor perdido, mesmo sabendo que a aparência dela poderia ter mudado drasticamente após tantos séculos.

Kuon percebeu, pela primeira vez, que os olhos eram realmente parecidos. Talvez, se os cabelos da invasora fossem negros e não alaranjados, os olhos dela pareceriam mais claros, como eram os de sua noiva. Além do mais, o que Bo havia falado sobre o nome só poderia significar que-

"Ai, Bo. Você está ouvindo a si mesmo? Lenda. Fantasma. Onde está o sentido nisso tudo? Meu nome! Há centenas, talvez milhares de Kyokos mundo afora!"

Kuon lentamente abaixou os braços enquanto pesava as palavras trocadas. A lógica do garoto fazia sentido, assim como a da invasora. É claro que se ela fosse a mulher destinada a quebrar a maldição, ele ficaria mais do que feliz em tê-la por perto; por outro lado, ele não via como sua frágil, delicada e ingênua amiga de infância poderia algum dia se tornar a destemida tresloucada que ele tentava afugentar diariamente, apenas para fracassar espetacularmente.

Pensando bem, ele também não havia antecipado que sua frágil, delicada e ingênua amiga de infância poderia odiá-lo.

Com as amargas lembranças, a chama da esperança diminuiu rapidamente, deixando para trás a dor da decepção que Kuon acreditava merecer.

"Eu acho que a senhorita poderia ser ela. Afinal, você ignora o Mestre Kuon como se ele já fosse seu marido rabugento"

"O tal Mestre Kuon está morto, Bo. Por isso eu o ignoro. Fantasmas só existem na imaginação das pessoas e eu não tenho tempo a perder com fantasias. Nem você, aliás: aquela ferrugem não vai se remover sozinha, você sabe"

Percebendo que o assunto estava encerrado e que ele havia aborrecido sua patroa, o garoto voltou a se concentrar no trabalho e Kyoko suspirou aliviada: aquela história sobre lendas e noivas a deixava desconfortável e ela atribuía o sentimento à péssima experiência vivida em seu quase-casamento.

Kuon, por sua vez, estava longe de sentir alívio e foi-se dali fervilhando em pensamentos. Há muito tempo ele não pensava nela, a doce donzela que ele magoou o bastante para se tornar sua maldição. E, ainda assim, as lembranças estavam vívidas em sua mente: seus olhos transmitindo dor e decepção e suas palavras certeiras carregadas de ódio.

Ele desperdiçou tempo demais com seu tolo orgulho, apegando-se à convicção de que ela fazia tempestade em copo d'água e que o erro que ele cometeu não fora tão grave assim para justificar o fim do noivado. Principalmente, ele desperdiçou tempo demais ignorando os sentimentos dela e imaginando que ela só precisava de alguns dias para se acalmar e aceitar seu patético pedido de desculpas.

Ele teria a eternidade para se arrepender de suas escolhas.

CAPÍTULO 4

Quando Sawara lhe disse que os serviços que ela havia solicitado foram finalmente aceitos por empresas da região, Kyoko ficou extática. A vida voltava a ser boa, afinal. Os cinco anos de problemas e incertezas foram deixados para trás e substituídos por três semanas de trabalho árduo, porém plenamente recompensador. Diante dela, o futuro voltava a parecer promissor.

A única coisa que ainda a incomodava eram os olhares que ela recebia e os cochichos que ela entreouvia nas poucas vezes em que ia à cidade na velha bicicleta que Bo lhe arranjou, para reuniões como aquela ou para fazer pequenas compras. A situação lembrava demais os meses que se seguiram à humilhante cerimônia de casamento que ela (não) teve, para deixa-la à vontade.

Por outro lado, algumas pessoas gentis lhe sorriam e acenavam para ela. Talvez elas entendessem que a prosperidade de Hizuri II era também a prosperidade delas, já que a inauguração do palácio à visitação atrairia turistas para lá, e não só para os outros castelos da região.

O curador também não disfarçava a alegria. Pelos relatos de Bo e pelos boatos que circulavam pela cidade graças ao garoto tagarela, a maldição estava prestes a ser quebrada, o que facilitaria em muito o seu trabalho. O bom homem considerava-se velho demais para precisar lidar com um fantasma temperamental.

"Eu preciso lhe dizer, Senhorita, que estou realmente feliz por havê-la encontrado"

"Ora, e eu estou muito feliz com este emprego, Senhor Sawara"

"Quem poderia imaginar que vocês teriam o mesmo nome? Se eu soubesse, seria pré-requisito para o cargo!" Uma veia pulsou na testa dela. A conversa caminhava rapidamente para um tópico que a incomodava sobremaneira. Será que todos na cidade viviam ao redor de uma maldita lenda? "Jovem, solteira e Kyoko, diria o anúncio no jornal!" O homem gargalhava, alheio à irritação que crescia dentro dela. "Ah sim, eu tenho algo para você!"

Isso a desarmou por completo. Enquanto ela se indagava se seria correto aceitar algo de alguém que já havia lhe dado a chance de uma vida nova, Sawara se levantou de sua mesa e sumiu em um quarto adjacente ao escritório. Retornou segundos depois com um quadro de tamanho modesto, e a julgar pela despreocupação com a qual o curador o manuseava, não passava de-

"É uma réplica, obviamente, porque o castelo não está em condições de receber obras originais. Você sabe a que eu me refiro: mofo, umidade, insetos, o pacote completo. Sem mencionar que o original desta réplica não pertencia a Hizuri II, mas ao Solar Mogami. Aliás, você deveria visita-lo algum dia"

E por que ela haveria de querer a réplica de uma obra pertencente a um Solar que não lhe dizia respeito, era a pergunta que Kyoko se fazia. Até o curador lhe mostrar a pintura, deixando-a frente a frente com um par de olhos verdes.

Ali, Kyoko descobriu que é possível esquecer como se respira. Sawara estava lhe presenteando com um retrato de Kuon, o Mestre de Hizuri II. Inferno, ninguém deveria ser tão bonito. O pintor, quem quer que fosse, não poupou pinceladas para retratar os lábios pecaminosos, o meio-sorriso indecente e os olhos maliciosos.

O tipo de espécime capaz de desvirtuar uma santa. Certamente o tipo de homem que jamais olharia duas vezes para ela, quanto mais daquela maneira.

Quando deu por si, Kyoko estava rindo. Gargalhando, na verdade. Após alguns momentos dando vazão à hilaridade inicial, ela enxugou os cantos dos olhos e voltou a atenção a Sawara, que apenas a observava com certa perplexidade.

"Este é o Mestre de quem o senhor e Bo tanto falam? O proprietário de Hizuri II que supostamente assombra o lugar há séculos?"

Sawara apenas confirmou com a cabeça, atônito. Ele não sabia o que se passava na cabeça de Kyoko.

"Amaldiçoado, de fato. Pobrezinho!"

Ele teria ficado feliz se as palavras fossem sido ditas com sinceridade, porque significaria que ela finalmente havia acreditado na lenda. No entanto, Kyoko não parecia disposta a parar de rir da piada que somente ela entendia.


O curador a levou de volta ao castelo ainda em choque. No porta-malas do carro, a bicicleta de Kyoko e o retrato de Kuon dividiam o espaço. De vez em quando a mulher estranha gargalhava, sobressaltando-o quase tanto quanto as manifestações que ocorriam em Hizuri II.

Era a primeira vez desde a sua morte que Kuon aguardava alguém com tanta ansiedade. As palavras de Bo pareciam ter se entranhado em sua mente, ao ponto de ele achar que enlouqueceria se não descobrisse logo a verdade sobre a invasora: seria ela a reencarnação de sua Kyoko? Poderia ele, finalmente, pedir perdão adequadamente?

Ele acompanhava avidamente cada movimento do carro até ele parar diante do portão e ela aparecer em seu campo de visão. Ela estava sorrindo e seus olhos brilhavam. Por um momento, ele se irritou com o pensamento de que Sawara a estaria cortejando, portanto uma janela se fechou com violência no terceiro andar.

O sorriso dela fraquejou quando ela olhou para cima e pareceu preocupada por um instante, mas logo voltou a sorrir. Então, o sorriso se transformou em riso quando ela olhou para Sawara e percebeu que o homem olhava para a janela com uma expressão apavorada.

"Não se preocupe, senhor. Meu noivo só está irritadiço porque eu demorei demais para retornar"

A frase saiu entrecortada por gargalhadas e estava óbvio que Kyoko somente brincava, mas para Kuon foi o suficiente para que ele sentisse como se tivesse novamente um coração. Algo dentro dele palpitava.

Aquela frase resumia perfeitamente seus séculos de morte.

Envergonhado por ele ter mostrado medo, Sawara a ajudou a guardar a bicicleta e seguiu para a entrada do castelo, embora com passos hesitantes. Sua intenção era ajudar Kyoko a pendurar o quadro que ele carregava. Kuon, no entanto, deixou claro que a ajuda (e a presença) do curador era desnecessária, fechando a porta na cara dele, assustando-o a ponto de quase derrubá-lo.

A palpitação retornou quando Kyoko – ela já não era mais "a nova governanta", menos ainda "a invasora" - riu e disse que ele – ele!- estava apenas tendo um dia difícil.

Quando ela tomou o embrulho dos braços do invasor, atravessou a soleira, despediu-se e fechou a porta, Kuon sentiu como se uma pequena chama dentro dele se acendesse. Ela estava ali, com a testa apoiada contra a porta, e ele podia jurar que conseguia sentir o peso da cabeça dela contra seu peito. Mais especial ainda era aquela estranha sensação morna que se tornava mais nítida a cada segundo, até ele finalmente perceber que era a respiração dela contra a madeira o que ele sentia.

Algo. Ele sentia algo.

Kuon quase choramingou quando ela se afastou abruptamente. O algo foi rápido demais! Para o que aconteceu a seguir, ele definitivamente não estava preparado: Kyoko riu, olhou na direção do átrio, inflou os pulmões e avisou com todo o fôlego que tinha.

"Querido, cheguei!"

CAPÍTULO 5

Kuon não sabia que Kyoko tinha a estranha mania de nomear e conversar com objetos. Quando criança, todos os seus brinquedos, até os jogos de tabuleiro, tinham nomes e personalidades. Conforme ela crescia e trabalhava no Hotel Fuwa, tal mania diminuiu, mas não sumiu por completo. Por exemplo, o enorme relógio carrilhão posicionado na recepção se chamava Sebastian e todos os dias Kyoko falava discretamente com ele.

"Querido, cheguei!"

De repente, após séculos interagindo com as pessoas somente por meio do castelo, Kuon quis falar com alguém.

{Seja bem-vinda de volta}

Infelizmente ela não o escutou. Como de praxe, tudo que ele fazia pertencia a outro plano, o qual não alcançava os vivos: ele nunca fora sentido, visto ou ouvido. Alguns poucos conseguiam pressenti-lo, mas definitivamente este não era o caso de Kyoko.

Kuon se decepcionou, é claro, mas dentro dele persistia a esperança de que ela estava começando a acreditar na lenda, o que tonaria tudo menos complicado dali para a frente. Afinal, pelas reações que estava provocando nele, aquela só poderia ser a Kyoko que ele esperava.

Finalmente!

Após acompanha-la ao salão principal, Kuon a observou desembrulhar e posicionar o quadro que trouxe consigo. Ele mal conseguia acreditar no que estava vendo. Quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele pôs os olhos naquele retrato?

Tantas lembranças.

"Pronto, este é o seu novo lar" {Novo?} Atrás dela, Kuon escarnecia. "Olá, bonitão!"

{Olá, bela dama}

Ela ajeitou mais uma vez o quadro sobre a cornija da lareira e se afastou para verificar o efeito. Apesar de ser óbvio que se tratava de uma obra destinada a um aposento menor, Kyoko não se sentia confortável em leva-la para seu quarto. Portanto, o quadro ficaria ali mesmo. Dane-se a estética.

Kuon, por sua vez, observava-a atentamente à espera de que ela se dirigisse a ele novamente. Ainda que não se considerasse um homem vaidoso, há séculos não via uma mulher olhando-o como homem. Portanto, foi decepcionante quando ela apenas abriu e fechou a boca várias vezes, até virar as costas e seguir para o quarto que ocupava.

O sol ainda ia se por, então era improvável que ela estivesse se recolhendo. Intrigado, ele foi atrás dela e viu quando ela pegou o tal telefone celular e se sentou na cama.

{Tsk, lá vamos nós de novo}

Ele realmente odiava o maldito aparelho. Ela sempre mudava quando o usava. Havia sempre alguns segundos de concentração antes de leva-lo à orelha, quando ela fechava os olhos e respirava fundo. Depois, a voz dela sempre soava diferente, artificial. Os sorrisos sempre eram falsos e ela nunca dizia que estava cansada ou reclamava.

Seja lá quem fosse o tal Hikaru, Kuon o odiava também. Que tipo de homem permitia que uma dama morasse sozinha em um castelo assombrado? O sujeito inútil não sabia coisa alguma sobre o dia-a-dia dela, não só porque ela não contava a ele voluntariamente, mas também porque ele não se interessava o suficiente para perguntar.

Em suma, o tipo de homem que ele foi: mais interessado pelas próprias responsabilidades e planos do que pelos sentimentos e necessidades da mulher que se dedicava integralmente a ele.

"Olá, boa noite. Como foi o seu dia? Hm... sim... sim... sim... puxa vida, que inconveniente!"

Kuon revirou seus fantasmagóricos olhos. Aquela conversa parecia ser mais do mesmo, então ele se acomodou em um canto do quarto e ficou olhando para fora da janela. Alguns instantes depois, contudo, ele percebeu que ela já estava calada há vários segundos, sem os "sim", "nossa!" e "hm" habituais.

"Mas... espere, o que você está dizendo?" Era impressão dele, ou ela estava pálida? "Hikaru, isso foi há cinco anos atrás!" A mão dela começou a tremer e havia algo de errado com sua voz. Seria medo? Incredulidade? "Bem, não é o tipo de coisa que se diga-... não, você não é qualquer um, mas eu não me sentia confortável para-... não, eu definitivamente não sinto mais nada por ele e-... como eu vou saber o motivo para ele me abandonar no altar?"


Kyoko não pretendia ter gritado a última parte, mas aquele assunto em particular ainda a abalava. Especialmente quando o cara que agia como se fosse o namorado dela sem nunca a ter convidado para sair trazia o assunto à tona para acusa-la de ter escondido dele "informações cruciais", como ele classificou seu doloroso passado.

Ela não sabia se deveria rir histericamente ou chorar copiosamente. Ao mesmo tempo, ela queria gritar e xingar o idiota que estava obviamente terminando com ela por telefone, sendo que eles sequer tinham um relacionamento oficial. E ela finalmente entendia a razão: ele queria ter certeza de que ela valia a pena antes de dar o simples o passo de convida-la para sair.

Quem ele pensava que era para fazer a própria pesquisa ao invés de perguntar a ela? Aliás, quando foi a última vez que ele perguntou algo no sentido de conhece-la? Melhor ainda: quando foi a primeira vez que ele fez isso?

Nunca. Ele nunca perguntou sobre seus sonhos ou planos, apenas falou sobre os dele.

Por que ela sempre atraía aquele tipo de babaca?

"Então você vai terminar o que nem começamos porque outro homem decidiu que eu não era boa o bastante para ele. É isso?" Hikaru estava atônito demais para falar. Aquela Kyoko furiosa era uma novidade para ele. "É ISSO?"

Até Kuon, que havia se ajoelhado na frente dela no instante em que ela falou sobre ter sido abandonada no altar, sobressaltou-se. Por um segundo, ele teve medo daquela mulher.

"B-b-b-bem, seu noivo deve ter tido algum motivo para-"

"Seu desprezível pedaço de merda!" Passado o instante inicial de estupefação, Kuon começou a rir. Aquela Kyoko era bem mais interessante que a mulher passiva que ela fingia ser com o idiota ao telefone. "Como você se atreve a me tratar como se eu fosse uma mercadoria defeituosa?"

"Você escondeu algo importante de mim!" Ótimo, agora era o momento da troca de acusações.

"E quando foi que você demonstrou algum interesse na minha vida?"

"Eu... e-eu-"

"Exato, Hikaru! Você, sempre você! Quer saber de uma coisa? Você já disse o que queria. Tenha uma boa vida!"

Kuon não sabia que "tenha uma boa vida" poderia soar como "apodreça e morra", mas foi exatamente assim que ele entendeu.


Ela se sentia tão patética que poderia morrer.

Assim que desligou a ligação na cara do ex-quase-namorado, Kyoko apagou o contato dele e largou o telefone de lado. Então, veio-lhe a vontade de se entupir de sorvete. Só que ela não tinha sorvete. Ou biscoitos. Ou chocolates. Ela só tinha comida saudável e... vinho.

Após pegar o grosso cobertor que ela havia comprado para as noites mais frias e que mais parecia um futon, Kyoko rumou para a cozinha com passos determinados. Kuon, sempre em seu encalço, estava intrigado quanto ao que ela faria a seguir.

Ele a viu pegar não uma, mas duas garrafas. Ok, ela pretendia se embebedar.

Armada com um saca-rolhas, cobertor caro e vinho barato, ela seguiu para o salão principal. Depositou tudo diante da lareira limpa dias antes e tentou acende-la.

Em vão.

A seu lado, Kuon sabia exatamente por que ela estava falhando, mas como poderia dizer a ela? Era óbvio que ela não tinha prática com aquilo, e os longos goles que ela dava direto do gargalo certamente não estavam ajudando.

Então, ela começou a chorar.


Kyoko não sabia por que estava chorando, só sabia que não conseguia parar. Certamente ela não gostava de Hikaru o bastante para sofrer daquela forma, mas parecia que algo se rasgava dentro dela.

Talvez ela não fosse boa o bastante para ninguém. Talvez estivessem todos certos e ela errada.

De repente, acender uma lareira não era só acender uma lareira. A pilha de fósforos usados representava seus sonhos despedaçados. Cada tentativa inútil de transformar a faísca em chama a lembrava de todas as vezes em que ela se dedicou a se adequar às necessidades dos outros, apenas para ser rejeitada de qualquer maneira.

Kyoko não saberia dizer por quanto tempo ela se revezou entre chorar, soluçar, riscar um fósforo, assoprar, praguejar e beber, só sabia que a primeira garrafa de vinho e a única caixa de fósforo que tinha estavam quase vazias. Raios, devia ter tanto álcool em seu hálito que era um milagre a lareira não acender só com a proximidade do rosto dela.

Então, ela sentiu algo se mover perto dela, quase como se uma corrente de ar tivesse uma forma definida e maciça, e de alguma forma ela soube que precisava acender o último fósforo.

Bem, o que ela tinha a perder?

Kyoko fez tudo exatamente igual ao que vinha fazendo, à exceção de que, desta vez, ela não teve tempo de assoprar: um sopro vindo sabe-se lá de onde agitou a fuligem de suas tentativas anteriores. Uma, duas, três vezes, até que uma chama começou a crepitar alegremente.


Orgulhoso por haver conseguido ajuda-la de alguma forma, Kuon olhou da chama para Kyoko e surpreendeu-se ao ver que ela olhava diretamente para ele com os olhos arregalados e o queixo caído.

Bem, não para ele, mas para o retrato dele sobre a lareira, o que era quase a mesma coisa.

{Kyoko?}

Mesmo sem conseguir ouvi-lo, ela pareceu despertar de um pensamento constrangedor ao fechar a boca e voltar os olhos para o fogo na lareira. Seu rosto estava corado, mas poderia ser efeito do álcool.

Com aquela mulher ele estava aprendendo a manter a esperança em rédeas curtas, daí seu susto com a única palavra que ela sussurrou.

"Obrigada"


Ela não devia ter bebido tanto, nem tão rapidamente. Certamente seu cérebro embotado pelo álcool estava lhe pregando peças.

Por um instante ela pensou que a tal lenda fosse real!

É, ela havia, definitivamente, encontrado uma forma de cavar mais fundo naquele poço onde ela estava. Aliás, parece que alguém lhe jogou uma escavadeira quando ela gritou por ajuda.

Por outro lado, que mal poderia haver? Na verdade, a cada segundo a ideia lhe parecia mais agradável. Não que tivesse deixado de ser absurda, mas era reconfortante pensar que ela não estava sozinha. Olhando de relance para o retrato sobre ela, Kyoko se engajou no que ela pensou ser um monólogo.

"Você está mesmo aqui?"

Kuon não perdeu tempo em responder.

{Estou}

Ela não o ouvia, mas isso não desencorajou nenhum dos dois.

"Preso neste palácio por séculos a fio, esperando o retorno de uma noiva que tinha o mesmo nome que eu?"

{Sim}

Ele havia desistido de corrigi-la e finalmente admitia que Hizuri II não era um castelo. Aliás, ela era a primeira pessoa a quem ele não poderia negar o direito de chamar seu lar de palácio.

"Bem, obrigada por acender a lareira para mim, milorde"

Pelo tom de voz era óbvio que ela estava brincando, mas Kuon não se importou. Ainda que ela não o escutasse, era reconfortante fingir que conversava com alguém.

{Você é muito bem-vinda, milady}

Ficaram alguns instantes calados e de tempos em tempos ela ria, o que o fazia sorrir. Ele corretamente supunha que aquela conversa não passava de um jogo para ela, algo para distrai-la da frustração que ela sentiu mais cedo e das lágrimas que ela custou tanto a conter, mas para ele, que nunca sequer tentou conversar com alguém desde que morreu, aquela falsa interação era um bálsamo.

"Bem, já que a cidade parece pensar que eu sou a mulher que você espera, permita-me perguntar: o que diabos você fez para merecer a punição eterna? Não, espera! Adivinhar vai ser mais divertido! Hm... Você desflorou a filha de um sacerdote? Ou rejeitou uma bruxa?" Ela riu de novo, mas desta vez com certa amargura. "Sim, sem dúvida alguma você é o tipo de homem que atrai problemas, mas normalmente o problema recai sobre a mulher, não sobre o cara diabolicamente bonito e podre de rico. Caras como você têm a habilidade única de saírem ilesos do caos que provocam na vida alheia"

Ele podia supor que ela falava por experiência própria.

"Você é o predador natural de mulheres como eu. Por isso é tão engraçado que pensem que você poderia me amedrontar, estando morto!" Mais risos. Kuon não compreendia o senso de humor daquela mulher; ele só sabia que não tinha tempo a perder rebatendo as acusações que ela lhe fazia.

Não faria diferença, ainda que ele tentasse. Além do mais, era mais importante se concentrar no que ela, sempre tão reservada, revelava.

"O único jeito de eu ter medo de você seria caso você estivesse vivo, sabe. Eu posso me ver claramente caindo de amores por você e sendo dolorosamente rejeitada. Depois de ter sido usada por anos, é claro!"

Era estranho ouvi-la falar e não saber se ela se referia ao idiota que a abandonou no altar, ao imbecil que a rejeitou naquele mesmo dia ou à vida passada que eles compartilharam. De qualquer forma, a semelhança entre o que ela dizia e o que havia acontecido entre eles era grande demais para ser ignorada e o fazia sentir novamente o remorso, velho companheiro de séculos.

{Eu gostaria de estar vivo só para fazê-la cair de amores por mim novamente, milady. Porém, desta vez eu a trataria corretamente}

Compadecido pelo que parecia ser o carma dela, Kuon colocou uma mão em seu ombro, surpreendendo-se quando ela se retesou como se o tivesse sentido.


Ela havia bebido demais, era a única explicação.

Kyoko se cobriu com o cobertor desde a cabeça, encasulando-se. O cansaço começava a domina-la. Olhando para o retrato de seu companheiro imaginário, uma ideia inusitada lhe ocorreu.

"Você está preso aqui comigo, milorde. Você não pode me abandonar"

{Eu não o faria ainda que pudesse, milady}

"É uma maldição e tanto, essa que o persegue. Em uma escala de zero a dez, você é provavelmente quatorze. E está preso comigo, que consigo chegar a cinco nos meus melhores dias" Kuon não entendeu a referência a números, mas percebeu que não devia ser boa coisa se ela voltou a rir. Ele já havia aprendido que Kyoko sempre destinava as risadas sarcásticas para depreciar a si mesma, o que o incomodava.

"Meu caro, você está mesmo amaldiçoado! Não só você está preso aqui comigo, como ficará por um bom tempo. Afinal, não existe a menor chance de eu ir embora daqui nas próximas décadas. Eu simplesmente não tenho outro lugar para onde ir. Ou seja, estamos ambos presos um com o outro, e a este lugar!"

Aquela coisa dentro dele voltou a palpitar. Kuon finalmente esclarecia uma dúvida que o perseguia desde que aquela mulher entrou em seus domínios. Pelo que disse a seguir, Kyoko parecia ter ouvido os pensamentos dele.

"Você entende agora, milorde? Não importa se você existe ou não, se você é mau ou não, se está me assombrando ou não. A vida fora daqui era bem pior do que qualquer coisa que você possa atirar contra mim, então, faça o seu pior!"

A risada dela foi ligeiramente insana desta vez, o que o desagradou quase tanto quanto o fato de que ela entornou o último gole de vinho depois de erguer a garrafa na direção dele, em um gesto de brinde.

Preocupado com seu estado, já que o corpo dela oscilava de um lado para o outro e sua fala se tornou arrastada, ele derrubou a segunda garrafa e a fez rolar para longe do alcance das mãos de Kyoko.


"Tsk, estraga-prazer!"

{Você já bebeu o suficiente por uma noite, milady}

Ela se deitou lentamente com os olhos fechados. Aquele último gole quase havia voltado. Quando os reabriu, deu de cara com o retrato de Kuon sobre ela.

"Eu tive uma amiga imaginária quando era criança. Eu tive pais imaginários sob a forma dos meus patrões. Certamente meu noivado com Sho foi imaginário. Cacete, até meu namoro com Hikaru foi imaginário!"

Ela parecia realmente surpresa com o que dizia, a voz um sussurro quase inaudível.

{Eu sinto muito}

Ela ficou vários momentos em silêncio contemplativo, sem desgrudar os olhos da imagem que, graças ao torpor alcoólico, parecia flutuar sobre ela.

"Parece que somos feitos um para o outro, afinal. Nós dois estamos fadados a esperar por alguém que dê sentido à nossa questionável existência, e enquanto isso estamos presos a este lugar, impossibilitados de seguir em frente tanto quanto é impossível voltar atrás" A palpitação se tornava mais intensa a cada palavra que ela pronunciava. "Somos dois amaldiçoados, Kuon"

Ela se sentiu muito cansada de repente. Suas pálpebras pesadas se fecharam e ela mergulhou em um sono profundo. Em sua mente, no entanto, pulsava uma inquietante mensagem, dita ela não sabe quando, por uma voz familiar que ela não reconhecia.

{Perdoe-me, Kyoko. É tudo culpa minha}

CAPÍTULO 6

Quando Kyoko começou a ressonar, Kuon permitiu que as lembranças viessem em profusão. Ele não poderia impedi-las por muito mais tempo, já que o quadro sobre a cornija da lareira e a mulher adormecida no chão as evocavam.

Ele não queria ter posado para aquele retrato. Se não fosse pela insistência de sua mãe, argumentando que a gentileza de Kyoko em enviar-lhe um retrato de si mesma deveria ser retribuída, ele teria expulsado a pontapés o pintor enfadonho que o instruía a ficar parado, mesmo que ele tivesse tantos afazeres pendentes.

Kuon estava sempre ocupado naquela época. "Eu vou descansar quando estiver morto", era sua resposta-padrão para quando lhe diziam que ele estava se sobrecarregando sem razão.

Ele não poderia estar mais errado.

Kuon conheceu Kyoko quando eram crianças, em um contato promovido por seus pais com o intuito de aproxima-los. Foi a maneira discreta que os Mogami e os Hizuri encontraram de verificar se seus respectivos herdeiros eram compatíveis o bastante para justificar um acordo, ainda que verbal, de eventual casamento.

Embora a família dela não fosse tão prestigiada quanto a dele, a riqueza que acumulava rapidamente em acertadas transações comerciais a elevava à condição de nobreza e evidenciava as vantagens em unir as duas famílias. Portanto, interessava a ambas que seus jovens herdeiros se casassem.

Assim que foram apresentados e estimulados a brincarem juntos, Kuon compreendeu o que esperavam dele. Ele nunca "brincava", menos ainda com alguém tão jovem, menos ainda com uma menina. Ele somente conhecia charadas, jogos de palavras, xadrez e exercícios físicos, isto é, tudo que estimulasse o raciocínio, a sagacidade, a força, a agilidade e a flexibilidade necessários ao líder que ele estava destinado a ser. Afinal, ele era Kuon Hizuri, a maior promessa do reino.

Kyoko era uma menina doce, gentil e dona de uma imaginação prodigiosa. Com ela, Kuon descobriu as brincadeiras ingênuas que faltavam em seu repertório nem um pouco infantil. Ou seja, foi uma semana na qual ele pôde descansar das intermináveis aulas e dos exaustivos treinos e ser uma criança normal.

Quando se despediram, ela chorou. Para faze-la parar, Kuon deu a ela uma pedra muito bonita que ele havia ganho de seu pai e a promessa de que estariam sempre juntos, mesmo separados.

Ele não teria como saber a repercussão que tal promessa teria para os dois.

Do contato com Kyoko, o menino Kuon concluiu que não seria nada mal se casar com aquela jovem. No entanto, Kyoko ainda era mais uma responsabilidade prematuramente apresentada a ele. Não a noiva que ele escolheu, mas o enlace conveniente que favoreceria as duas famílias. Da mesma maneira, a semana que passaram juntos foi tão díspar do seu cotidiano que aos poucos se revestiu de características oníricas, ao ponto de ele atribuir os detalhes mais preciosos de suas enevoadas recordações à fadiga e à confusão de sua mente infantil.

Anos se passaram e a imagem da menina adorável se apagou por completo, assim como aquela semana compartilhada. Ambos eram um fragmento de sua vida destinado a desaparecer, esmagado sob o peso das responsabilidades assumidas e, principalmente, da expectativa que ele precisava atender.

Seu apurado senso do dever o fez amadurecer e endurecer rápido demais.

Certo dia, sua mãe o surpreendeu com a notícia de que ele havia recebido um retrato de Kyoko. Ao seu redor, todos pareciam radiantes e impressionados pelo que diziam ser um presente de muita consideração e delicadeza, então ele se esforçou para sorrir educadamente antes de se retirar do aposento para ir receber o artista que trazia o quadro.

Por dentro, contudo, ele estava desgostoso e aborrecido. O que ele menos precisava no momento era que o recordassem que ele tinha mais obrigações além daquelas que ele dava tudo de si para cumprir diariamente. Em sua mente, Kyoko estava exigindo atenção e elogios com aquele presente supostamente despretensioso, além de lembra-lo que ela havia completado quinze anos e estava, portanto, em idade de se casar.

Sem se dar conta, Kuon substituiu a Kyoko inocente da infância por uma imagem embaçada de mais uma donzela fútil e mimada que ele precisava galantear pelo bem da dinâmica social da corte. A época em que ele a olhou com carinho e se imaginou diante da criatura mais adorável do mundo pertencia a outra vida, uma que ele já se questionava se havia existido.

Apesar de ter sido ele o mentor da promessa que fizeram um para o outro, Kuon não teve a curiosidade de estudar como as feições dela haviam amadurecido. Kyoko pertencia ao seu passado e, ainda que ela estivesse destinada a se tornar o seu futuro, ele não pretendia inclui-la em seu presente enquanto pudesse evitar. Afinal, uma esposa nada mais era que mais uma responsabilidade.

Tudo que importava a ele era o trabalho. Igualar-se a seu pai. Ser aceito por seus pares. Em sua trajetória, várias foram as amantes, que mais serviram ao propósito de alivia-lo da tensão para ajudá-lo a permanecer focado que qualquer outra coisa. Em momento algum ele pensou em como sua jovem prometida se sentiria caso descobrisse suas práticas indiscrições.

Kyoko começou a lhe escrever regularmente pouco tempo depois de ter recebido o quadro para o qual ele se sentiu compelido a posar. Kuon ainda se lembrava da frustração que o acometeu ao perceber que sua previsão se tornava realidade: incentivada pela reciprocidade do presente que ela lhe enviou, agora ela tentava estreitar o laço entre eles com cartas sem sentido.

Maravilha. Mais uma obrigação em seu rol interminável de tarefas.

Várias vezes ele pensou em se casar de uma vez para terminar com aquele problema. Seria um a menos. No entanto, Kuon não conseguia se visualizar convivendo com uma jovem mimada que poderia quebrar se o ouvisse praguejar e que estava acostumada a riquezas e festas, enquanto ele precisava se concentrar nos problemas ocorrendo nas fronteiras.

Sem mencionar que Kuon, quatro anos mais velho que ela e acostumado à comodidade das mulheres desinibidas com as quais dividia a cama, não estava com pressa de assumir a responsabilidade do matrimônio com uma donzela recatada.

Por fim, ele decidiu que seria melhor para todos se as cartas fossem respondidas, e de preferência com o zelo e a delicadeza que ele se sentia incapaz de ofertar.

Kuon não saberia dizer com que frequência seu secretário escrevia para ela, mas sem se dar conta, dois anos haviam se passado. Ou seja, Kyoko passou dois anos acreditando que as palavras atenciosas que ela lia saíam de seu coração, sendo que ele mesmo se perguntava se ele ainda tinha um coração depois de tudo que presenciou enquanto crescia.

Por fim, seu árduo trabalho foi recompensado. Em retribuição pelos serviços prestados ao soberano, Kuon foi agraciado com um palácio e terras. Finalmente ele se libertava da sombra de seu pai e se tornava mais do que um herdeiro. Por outro lado, junto com as posses vieram novas responsabilidades, sendo a primeira delas a tarefa de erguer mais um imponente castelo a guarnecer o leste do reino junto com Hizuri e Takarada.

Apesar de contar com o apoio de todos que o cercavam, Kuon se sentia só e cansado. O prêmio recebido pelo soberano estava longe de ser um bálsamo a conforta-lo por todos os sacrifícios que ele fez. Ao contrário, era mais uma responsabilidade para seus ombros carregarem. Pesava sobre eles até mesmo o fato de que ninguém duvidou de sua capacidade de transformar o palácio em castelo, apelidando-o de "Castelo Hizuri II" como incentivo e demonstração da confiança que depositavam nele.

Em suma, se ele já era um homem ocupado antes, agora suas obrigações o impediam de dormir. Tão concentrado Kuon estava com suas tarefas que ele não percebeu que as cartas de Kyoko haviam parado. Aliás, o único momento em que ele se lembrava dela era quando, após desperdiçar horas com planos mirabolantes, ele sempre concluía que se casar com ela era a única maneira de conseguir os recursos que precisava.

Quem o alertou para a interrupção das cartas foi seu secretário. Dias depois, o motivo ficou claro: um naufrágio havia vitimado toda a família Mogami, à exceção de Kyoko, que havia permanecido no Solar Mogami com uma prima de outra família.

Ele lamentou por ela, claro que sim. Certamente ela precisava de amparo, apoio, cuidados. Portanto, ninguém melhor que seu secretário para redigir a missiva que consolaria seu coração enlutado.

Kuon simplesmente não se imaginava capaz de oferecer o que uma donzela frágil necessitava em um momento como aquele. Além do mais, sua mente se ocupava com outro problema: da noite para o dia, sua dama prometida se tornou não só a dona de um polpudo dote, como também a herdeira mais cobiçada da região.

Não dava mais para adiar. Era chegada a hora de selar o matrimônio, que precisaria do consentimento do soberano em razão do falecimento de todos os homens da família. Nesse meio tempo, seria prudente mandar busca-la para afasta-la dos pretendentes.

Kuon pensou que estava com sorte quando ela surgiu com sua aia. Parecia ter adivinhado o que ele pretendia.

A festa de noivado ocorreu no mesmo dia em que o soberano autorizou o enlace. Alguém poderia pensar que Kuon era um homem apaixonado, pela rapidez com a qual tudo estava ocorrendo, mas bastaria um curioso para perceber que ele evitava sua noiva ao máximo. Ela, por sua vez, parecia alheia à indiferença dele ao sorrir satisfeita por estar prestes a se tornar uma Hizuri e senhora daquele castelo.

Que nunca chegaria a ser um castelo.

A festa de noivado estava quase no fim quando seu secretário solicitou uma audiência com ele. Em seu escritório, uma jovem visivelmente transtornada e com as roupas sujas da viagem o aguardava.

Ele jamais se esqueceria das palavras que ela lhe disse, menos ainda das lágrimas que vertiam dos olhos dourados como o mel. Kuon fora estúpido o bastante para colocar o anel com o brasão de sua família no dedo da prima errada, e ele sequer saberia dizer se a própria Kyoko não estivesse diante dele, com a pedra que ele havia dado a ela em despedida em sua mão.

O retrato que ela lhe deu quase três anos antes permanecia guardado no fundo de um depósito em Hizuri I.

A reação de Kyoko às palavras dele o tomou de surpresa. Kuon realmente imaginava que explicar a situação e pedir desculpas seria o bastante. Afinal, eles não se viam há mais de uma década e ela e a prima guardavam certa semelhança física. Ademais, a mulher havia se apresentado como Kyoko Mogami, e não como Kimiko Morizumi, e não passou pela cabeça de Kuon que a aia que a acompanhava estaria em conluio com a jovem.

Kyoko, contudo, estava magoada e deixou isso claro. Diferentemente dele, que não guardava rancor – nem saberia como fazê-lo, porque ele simplesmente não tinha tempo a perder alimentando mágoa de alguém – ela se sentiu traída e humilhada a ponto de terminar o noivado e prometer que avisaria o soberano sobre a conduta de seu pretendente.

Ela jamais se casaria com ele. Ele jamais colocaria as mãos na herança de sua família. "Boa sorte em transformar Hizuri II em um castelo com o dote de Kimiko, milorde".

Em algum lugar de seu orgulho ferido, Kuon se surpreendeu com a perspicácia dela. Depois, ele sentiu uma pontada de vergonha por ter tido suas intenções tão claramente descobertas. Contudo, o que ele mais sentiu foi raiva.

Ele não a havia tratado com toda a consideração, a ponto de procurar uma pessoa mais adequada para responder suas cartas?

Ele não havia desperdiçado horas aturando o maldito pintor para dar a ela um retrato seu?

Ele já não havia se explicado e se desculpado?

O que mais ela queria dele?

Pressentindo os ânimos acirrados, seu secretário recomendou aos dois que descansassem àquela noite e conversassem na manhã seguinte, quando os pensamentos estivessem mais claros e os sentimentos, menos intensos.

Não adiantou. Kyoko recusou-se a permanecer mais um segundo naquele palácio e Kuon, provocado pelas palavras dela, não tentou impedi-la, acreditando que se tratava de um blefe. Ele teria tempo de sobra para se lembrar das últimas palavras que trocaram, as delas repletas de mágoa, as dele carregadas de ironia.

"Eu jamais retornarei a este palácio, milorde"

"Pois eu lhe digo que aguardarei o seu retorno, milady"

Na manhã seguinte, ele descobriu que ela realmente havia partido à noite. Era perigoso e ele sabia, portanto foi a primeira vez que ele se arrependeu pela forma como tratou uma mulher. Certamente não fora desta maneira que seus pais o criaram para ser.

Kimiko, por sua vez, teve a cara-de-pau de permanecer em seus domínios. Por mais que chorar e pedir perdão surtissem efeito com ele, Kuon estava aborrecido demais para ignorar quão ridícula a festa de noivado havia sido graças às maquinações daquela jovem. Após tanto empenho em construir uma imagem pública perfeita, ele enfrentava o constrangimento por ter apresentado a dama errada como noiva. Para piorar, aquilo poderia ter arruinado suas chances com Kyoko. Sem mencionar que ele sabia bem diferenciar lágrimas falsas de lágrimas reais, e aquelas eram óbvias encenações.

Já as de Kyoko, ele lutava para esquecer. Algo nelas dizia a ele que havia bem mais do que contrariedade, raiva ou humilhação em suas origens. Kyoko realmente sofria; ele só não atinava o motivo.

Em seu último argumento, Kimiko ponderou que seria melhor ele garantir o dote dela, ainda que consideravelmente menor, do que continuar perseguindo inutilmente a herança de Kyoko.

Kuon foi irredutível. Kimiko ficou furiosa.

Ela partiu no mesmo dia sem dizer uma palavra. Dias depois, quando Kuon finalmente compreendeu que Kyoko não retornaria por conta própria e que ele teria que ir busca-la, ele foi surpreendido com o regresso de Kimiko, dizendo-se herdeira da fortuna Mogami. Segundo Kimiko, Kyoko havia tirado a própria vida.

Incrédulo, ele tentou desvencilhar-se de Kimiko e partir para o Solar Mogami. Certamente encontraria Kyoko ainda furiosa com ele, mas ele daria um jeito de se desculpar, nem que ele precisasse seduzi-la. Ela estava viva, com certeza. Bem o bastante para gritar com ele de novo e talvez até tentar expulsa-lo usando seus pequenos punhos.

Pensando bem, ele gostava daquela Kyoko esquentadinha.

Ou talvez ela ainda estivesse triste e chorasse novamente, tanto fazia. Ela poderia chorar e gritar com ele; ela poderia insulta-lo e chamar Hizuri II de palácio o quanto ela quisesse. Ela poderia escrever milhares de cartas ao soberano afirmando quão desprezível ele era e o quanto ela o odiava.

Desde que ele a encontrasse viva e bem.

Contudo, Kimiko não saía da frente dele, repetindo que a herança pertencia a ela.

E se pertencesse?, perguntava-lhe uma voz em sua cabeça. Ela já tinha o anel, e estava ali, praticamente implorando que ele a desposasse. Não seria a solução de seus problemas?

O pranto de Kyoko, contudo, não lhe saía da cabeça.

Em algum momento, enquanto ele tentava se livrar da mulher que havia se agarrado as suas roupas, Kuon perdeu a paciência e disse que a herança não fazia a menor diferença. Independentemente de quão rica Kimiko fosse, ele jamais se casaria com ela.

Ele não viu o punhal. Tudo que Kuon enxergava era a saída, que o levaria ao estábulo, onde estaria seu cavalo, que ele montaria para percorrer o caminho que o separava do Solar Mogami o mais rápido que seu fiel garanhão conseguisse leva-lo. Lá, ele a encontraria viva e bem. Triste, furiosa ou conformada, não fazia a menor diferença. Viva já era bom o bastante.

O ferimento foi no ombro. Profundo, mas não fatal. Antes que ele pudesse reagir, seus homens, atraídos pela gritaria da jovem, já a haviam imobilizado e alguém cuidava do seu sangramento. Do chão, Kimiko ria histericamente e repetia que os dois jamais ficariam juntos. Que a estúpida Kyoko sequer conseguiu reagir quando ela e sua aia a drogaram e arremessaram do alto do Solar.

Ali Kuon soube o que era o terror. Ele poderia ter dúvidas quanto ao suposto suicídio, mas Kimiko agora confessava homicídio e isto soava terrivelmente como algo que ela faria. Partir para o Solar era a prioridade, portanto ele ignorou todos conselhos sobre esperar a mínima cicatrização do ferimento e seguiu viagem antes mesmo que o sangramento estancasse.

Dias depois, ele descobriria que o retrato dele estava pendurado em um lugar de honra nos aposentos de Kyoko, de onde ela não o tirou apesar de estar tão magoada com ele. Assim, Kuon podia ver a si mesmo pelo canto do olho enquanto velava por ela, seu corpo sem vida sobre a cama. A imagem era tão surreal quanto haviam se tornado as lembranças que ele tinha da semana que compartilharam na infância.

Tarde demais, Kuon se viu tomado pela vontade premente de trazer o retrato de Kyoko, que ainda estava em um depósito de Hizuri I, para Hizuri II e pendura-lo em seu quarto. Não, não em seu quarto, mas em seu escritório, onde ele passava mais tempo. Ele também quis descobrir onde seu secretário havia guardado todas as cartas que ela lhe escreveu e ler uma por uma, e até responde-las, também uma por uma. Por fim, ele se arrependeu por não a ter visitado quando seus pais morreram, por ter permitido que a raiva e o orgulho lhe subissem à cabeça e também por não ter memorizado todos os traços do rosto dela quando teve a chance de incluir as bochechas coradas e os olhos reluzentes na imagem.

Quando retornou a Hizuri II, Kuon descobriu que até um ferimento não fatal pode tornar-se mortal se não tratado adequadamente. A infecção já havia se alastrado. Ele sequer teve tempo de mandar buscar o retrato de Kyoko antes que a febre lhe roubasse a consciência.

Pior do que a infecção a lhe percorrer o corpo, contudo, era o veneno que corroía sua alma. Desde que Kimiko lhe contou sobre a morte de Kyoko, Kuon sentiu a fisgada da culpa, que somente se intensificou conforme ele velava por ela e identificava, em detalhes, quão importante ele era para ela: as estranhas calosidades e ranhuras em sua mão direita, que depois ele percebeu se tratarem de pequenas cicatrizes provocadas pela fina lateral da pedra que ele lhe deu; as cartas que ele supostamente lhe escreveu, guardadas em uma caixa de seda em formato de coração sob a cama; a posição de seu retrato, visível de qualquer ponto do quarto; e as várias páginas em seu diário, dedicadas a basicamente desabafar quão inadequada ela se sentia em relação a ele.

Isto foi o que mais doeu. Ler que ela, longe de querer apressar o casamento, sentia-se insegura quanto a ser digna dele e temia que ele se sentisse pressionado pela promessa infantil que fizeram. Assim, o retrato foi a maneira que ela encontrou de dizer "esta sou eu, tudo bem se você desistir". Depois, o alívio e a euforia expressos no papel quando ela recebeu o retrato dele. "Ele me aceitou como eu sou. Ele ainda me quer. Kimiko estava errada, Kuon não vai desistir de mim só porque eu não sou bonita como as outras"

Ele não queria que ela soubesse que existiam as outras, como também não queria que ela se questionasse a respeito dos sentimentos dele por ela. Aliás, ele nem sequer imaginava que os sentimentos dele eram importantes para ela.

"Eu queria conseguir perguntar o que há de errado. Milorde é sempre gentil, mas também é frio e impessoal. Eu consigo imagina-lo diante de mim, dizendo-me o que suas cartas transmitem, mas por algum motivo eu não consigo sentir emoção alguma"

Sim, foi exatamente assim que ele instruiu seu secretário a responder.

No final das contas, Kuon concluiu que seu julgamento sobre ela não poderia estar mais errado. A menina adorável que ele conheceu havia se tornado uma jovem compassiva, humilde e solitária. Riquíssima, é verdade, mas Kyoko daria toda a fortuna da família para ter os pais por perto, e não viajando o mundo em transações comerciais. Do contato nocivo com a invejosa Kimiko, que supostamente fazia companhia à prima abastada, Kyoko obteve apenas uma imagem depreciativa de si mesma.

Ela imaginava que só tinha ele ao lado dela. "Estaremos sempre juntos, mesmo separados", foi a promessa à qual ela se apegou. Nunca lhe ocorreu escolher qualquer outro, portanto, Kyoko permaneceu esperando por ele, certa de que ele realizaria todas as promessas feitas nas cartas que ele assinou sem escrever. Às vezes, sem ler.

Quando a foice da morte o ceifou, os pensamentos recorrentes de culpa e remorso não cessaram. Eventualmente, Kuon percebeu que já não habitava o mundo dos vivos e que não conseguia deixar seu castelo por mais que tentasse.

Com o tempo, a lenda sobre uma maldição que somente seria quebrada com o retorno da noiva foi transmitida através das gerações e ele pôde apenas observar como os relatos se tornavam menos precisos, até o ponto em que a maldição começou a incluir todas as tragédias que ocorreram na região naquela época.

Se ao menos o druida tivesse lhe explicado o que ele precisava fazer, ao invés de se limitar a estabelecer aquelas condições ridículas para a contratação de governantas, Kuon saberia como proceder e talvez não tivesse passado tantos séculos preso aquele palácio.

Que nunca se tornaria um castelo.

CAPÍTULO 7

No dia seguinte, uma tímida batida na porta sobressaltou Kuon. Ele sempre conseguiu pressentir invasores a metros de distância, portanto foi com estranheza que ele somente notou a chegada do garoto pelo seu ritual matinal de sempre: duas batidas curtas, a porta se abrindo lentamente e um "perdoe-me pela intrusão, Mestre Kuon" sussurrado, era como Bo havia se acostumado a começar o dia de trabalho.

{Pode entrar, guri. Mas não faça barulho, porque a senhora-}

Antes que ele conseguisse concluir sua (inútil) advertência, os olhos do garoto já haviam captado a figura descabelada e encasulada no chão, a garrafa vazia ao lado da lareira e a garrafa fechada fora de alcance. Com o cenho franzido, Bo deixou o pesado cesto que carregava cair com um baque.

O som, amplificado pelo ambiente espaçoso e vazio, reverberou pelas paredes e, principalmente, na cabeça latejante de Kyoko.

{Ouch. Isso foi cruel...}

Um gemido doloroso e um sorriso satisfeito foram as provas que Kuon precisava para saber que Kyoko estava com uma ressaca fenomenal e que, por algum motivo, Bo estava aborrecido com ela.


Como qualquer pessoa que acorda sob os efeitos de uma ressaca, Kyoko odiou a si mesma por haver bebido tanto, especialmente na véspera de um dia de trabalho. No entanto, pior do que a enxaqueca e o enjoo foi ter que lidar com o humor cáustico de Bo, que além de quase não lhe falar o dia todo ainda lhe destinou vários olhares reprovadores.

Bem, pelo menos o palácio permaneceu abençoadamente silencioso, sem os usuais ruídos que, naquele dia, soariam como marteladas em seu cérebro. Aliás, esta não foi a única diferença percebida tanto por Kyoko quanto por Bo: o ar estava mais leve, os ambientes pareciam mais claros e ela estava sorrindo mais e ruborizando feito uma adolescente tola toda vez que avistava um certo retrato.


Dois dias depois

Sawara mal podia se conter entre a expectativa e o medo que sentia. Aquele era o primeiro dia de revitalização do Castelo e, pelos seus cálculos, os restauradores já estavam trabalhando há algumas horas. Será que o poltergeist estava permitindo que o serviço fosse executado?

Ansioso demais para esperar pelo relatório de Kyoko no fim do dia, Sawara foi pessoalmente verificar a situação, que já no portão de entrada parecia tenebrosa.

"Um demônio, isso sim!"

"Não estamos sendo pagos para isso!"

Conforme o curador adentrava o castelo, mais e mais comentários deixavam clara a insatisfação dos restauradores, até que ele finalmente localizou, em um dos quartos do primeiro andar, a pessoa que ele procurava.

Invisível ao lado dela, um certo fantasma sorridente analisava atentamente a zona de guerra.


"Ei! O que você pensa que está fazendo com essa marreta? Isto é uma restauração, não uma demolição!"

{Isso mesmo, milady. Mostre a eles quem está no comando aqui}

De início, Kuon se preocupou com a perspectiva de ser restaurado, o que seria algo similar a uma tortura e das mais cruéis. No entanto, algo estava acontecendo desde a noite em que ele "conversou" com Kyoko: logo na manhã seguinte, ele não percebeu a presença de Bo antes do garoto se anunciar e o mesmo se repetiu desde então. Até os trabalhadores atarefados, indo e vindo em seus domínios, não o estavam incomodando como aconteceria anteriormente. Ou seja, ele se sentia menos conectado a Hizuri II a cada minuto.

O mesmo não poderia ser dito sobre sua recém-descoberta conexão com Kyoko. Aliás, era exatamente o contrário: a conexão entre eles estava aumentando exponencialmente, ao ponto de ele prever que em breve sentiria apenas o toque e a presença dela.

O único palpite que fazia sentido, considerando que ele permanecia um fantasma incapaz de deixar o plano intermediário entre o mundo dos vivos e o dos mortos, era o de que ele estava substituindo o elo com o castelo por um elo com Kyoko. Apesar de não ser totalmente favorável à ideia de parar de assombrar um lugar se o preço a pagar era assombrar uma pessoa, mudança era mudança e após tantos séculos na mesma situação, algo diferente estava finalmente acontecendo.

"Estaremos sempre juntos". Ao que tudo indicava, alguma promessa ele iria cumprir, afinal. Além do mais, o enfraquecimento de seu elo com Hizuri II transformou um evento certamente excruciante na situação mais hilariante de sua vida (morte inclusa).

Kuon acompanhava Kyoko aonde ela ia, supervisionando os trabalhos em andamento e instruindo os funcionários como se ela pudesse estar em todos os lugares ao mesmo tempo e conhecesse o ofício de cada um deles.

A cada cuidadosa remoção, ela entoava "calma, devagar, cuidado", o que quase enlouquecia os trabalhadores e divertia Kuon sobremaneira. Cada precisa substituição era acompanhada por ela com o fôlego preso e os ombros tensionados. Durante as alterações mais drásticas, ela se agarrava apreensiva a alguma parede ou porta e Kuon se sentia abraçado, reconfortado, como se ele fosse uma criancinha que ela consolava durante o curativo de um ferimento mais grave.

O toque dela era o único que importava. O mero roçar de sua mão possuía mais intensidade do que as perfurações e as marteladas, que pareciam meros comichões em sua "pele".

Deliciado, ele testemunhou o apego de Kyoko por aquele lugar. A confissão embriagada que ela havia feito dias antes esclarecia a razão: ela também não tinha para onde ir. Aquele era o lar dela tanto quanto havia sido o lar dele, antes de ela surgir e substitui-lo, e Kyoko não pretendia permitir que aqueles invasores, apesar de profissionais, agissem com menos do que o máximo de zelo com cada tábua, painel e cano que encontravam.

Os comentários que Kuon ouvia só aumentavam sua diversão.

"O problema não era um poltergeist? Onde está o poltergeist? Alguém traga o maldito poltergeist de volta!"

"Eu enfrentaria o poltergeist a qualquer dia, mas essa governanta..."

{Senhores, bem-vindos ao inferno!}

Eventualmente Sawara apareceu no cômodo em que estavam, mais uma pessoa cuja chegada Kuon não sentiu. O curador estava atônito por verificar como a governanta que ele havia contratado parecia uma fuinha revoltada enquanto disparava instruções, recomendações e ameaças aos quatro ventos.

"Um machado? Sério? Bote essa coisa no chão se não quiser que eu o use em você!"

Ela era tão adorável, que Kuon não resistiu à tentação de sussurrar-lhe uma provocação ao ouvido. Aliás, este havia se tornado seu hobby favorito desde que ele percebeu os pequenos arquejos e arrepios que ela tentava conter e o rubor que ela tentava esconder quando ele era mais atrevido.

{Oh, é tão excitante quando você os ameaça com amputação!}


Ela foi percorrida por um calafrio que nada tinha a ver com a temperatura ambiente. Aquela sensação estava se tornando cada vez mais frequente desde que ela pôs os olhos no maldito retrato. Claro, o defunto era bonito o bastante para mexer com os nervos de qualquer pessoa, mas aquilo já estava ridículo.

Kyoko não conseguia parar de pensar nele. Era uma obsessão que crescia a cada minuto e que ela tentou rechaçar várias vezes: ela tentou não falar com ele, ela tentou não olhar para o retrato dele, ela tentou não pensar no episódio da lareira e ela tentou não fantasiar que ele estava ali, olhando para ela, sussurrando lascívias em seu ouvido que a faziam ter toda a sorte de reações constrangedoras.

Em vão. A partir do momento em que ela cogitou a veracidade da lenda pela primeira vez, mais vezes se seguiram e, com elas, mais sensações estranhas. Era como se a sua mente estivesse se convencendo da existência de algo e, por conseguinte, conjurando este mesmo algo: bastou ela considerar a possibilidade de estar sendo seguida pelo fantasma de Kuon para que ela começasse a sentir uma presença constante a se mover perto dela, acompanhando-a e fazendo-a experimentar sensações que ela não tinha há muito tempo.

Se é que ela já teve algum dia. Em suas recordações, nada fora tão intenso ou perturbador quanto o que ela estava sentindo agora. Seu desejo platônico por um homem que viveu muitos séculos antes dela extrapolava o que ela julgava saudável, mesmo para uma imaginação tão fértil quanto a dela costumava ser. Aliás, preocupava-a que ela estivesse novamente se deixando levar por fantasias. Em sua experiência, isso sempre resultava em desastre.

Por outro lado, ela estava tão... feliz! Talvez aquele tipo de contentamento exigisse mesmo uma dose de loucura para existir. Ela só sabia que ela não se sentia feliz assim quando agia e pensava de maneira absolutamente racional. Seus momentos mais felizes sempre foram cercados de fantasia, afinal de contas.

Naquele momento, como em outros, ela poderia jurar que tinha ocorrido uma mudança no ambiente similar a uma mudança de humor. Ela passou o dia sentindo alguém se divertindo, e agora ela sentia uma malícia que a inquietava e a fazia perscrutar discretamente os homens presentes para verificar se algum deles a olhava de maneira indecente.

Foi quando ela avistou Sawara, perplexo, observando-a da porta.


Era assustador, de verdade. O curador poderia jurar que os trabalhadores estavam reclamando do poltergeist!

Antes que ele pudesse se recobrar da perplexidade e perguntar a ela sobre o andamento da restauração, Sawara foi surpreendido pela pergunta dela a respeito de Bo, ainda emburrado por algum motivo desconhecido. No entanto, quando ela explicou a situação, ele compreendeu imediatamente qual era o problema.

"Oh, entendo. Aquele menino realmente odeia álcool. Não é para menos, se a mãe dele morreu em um acidente de carro provocado por um motorista bêbado" Kyoko se recriminou imediatamente por ter permitido que o garoto a visse naquele estado. "Bem, não só pelo acidente em si, mas também porque é uma cidade muito pequena, que tem apenas um cirurgião, e ele estava ocupado em outra cirurgia de emergência quando a mãe dele chegou ao hospital. O atendimento dela demorou mais do que deveria para acontecer"

Kyoko já estava quase se debulhando em lágrimas. Sawara, distraído, não notou.

"Por isso o garoto trabalha tanto: ele quer se tornar médico para evitar que coisas assim aconteçam de novo. Sem mencionar que..."

"...Sem mencionar o que?"

"Sem mencionar que ele e o pai, que era o ex-marido da mãe, não se dão bem. Bo não vê a hora de poder viver sozinho e por conta própria"

Kyoko se empertigou imediatamente. Sim, ela podia compreender perfeitamente a necessidade premente de sair de perto de alguém e o desespero por não ter recursos suficientes para tanto, já que ela passou por situação parecida com Yayoi.

Naquele momento, ela fez um juramento silencioso de dar tudo de si para fazer de Hizuri II um sucesso. Ela podia ver os turistas vindo do mundo todo para visita-lo, trazendo dinheiro, gerando novos empregos, criando mais oportunidades para Bo. A cidade floresceria como deveria ter acontecido, se não fosse a estúpida ideia de que o palácio era mal-assombrado.

Afinal, Kuon não é um poltergeist: Kuon é seu lindo, charmoso e pecaminoso noivo imaginário.

CAPÍTULO 8

No dia seguinte, Kyoko descobriu que estava proibida de se aproximar dos trabalhadores, medida que Sawara foi chantageado a adotar.

Ele não gostou de dar aquela ordem. Ainda que ele entendesse que o comportamento de Kyoko estava incomodando os restauradores, ela era uma funcionária exemplar que só estava prezando pela qualidade da restauração. Aliás, se não fosse por ela aquela restauração sequer estaria ocorrendo. Por outro lado, ele não poderia ignorar sua obrigação como curador, portanto, ele por fim acatou a exigência imposta pelos restauradores para prosseguirem com o serviço e a avisou de que ela deveria manter distância doravante.

Kyoko não gostou de ser banida para a área externa do palácio e para o aposento que ela ocupava porque isso a limitava em suas tarefas. Ora, nem mesmo nos dias de folga ela ficava à toa, já que a definição de descanso para ela envolvia ouvir música... enquanto trabalhava. Logo, aquela quarentena à qual ela foi forçada parecia uma punição cruel.

Sem alternativa, Kyoko começou o dia adiantando pequenas tarefas na cidade e, quando nada mais havia a fazer lá, ela retornou para o palácio. Ela até tentou espiar o trabalho em andamento algumas vezes, mas logo era flagrada por alguém e mandada de volta para seu quarto como se fosse uma criança de castigo.


Kuon sentiu falta dela pela manhã quase como se lhe faltasse um pedaço. Ele até pensou em se distrair apavorando os funcionários, o que também serviria para puni-los pelas reclamações que se atreveram a fazer contra sua adorável dama, mas mudou de ideia assim que concluiu que isso poderia trazer problemas para ela. Assim, ele decidiu que atormentaria apenas o atual curador. Só um pouquinho.

Sem mencionar que ele não iria mais se opor se era do agrado dela que a restauração ocorresse. Afinal, ela merecia um lugar seguro e confortável para viver, o que ele estava disposto a prover de qualquer forma, mesmo se envolvesse sofrer a dor excruciante que ele sentiria caso ainda estivesse ligado ao castelo como antes.

Agora que ela havia finalmente voltado para casa (porque aquela era a casa dela, a casa deles), Kuon se entretinha vendo-a caminhar de um lado para o outro, reorganizando pertences pela enésima vez e removendo partículas de poeira inexistentes. Kyoko ruborizava de vez em quando por conta das sensações que ele provocava nela, sem saber que ele se deleitava com o beicinho que ela fazia sempre que lembrava que não podia deixar o quarto.


As marteladas animadas que ela ouvia em nada contribuíam para seu estado de nervos. Os restauradores pareciam determinados a aproveitar a ausência dela para adiantar o serviço, o que em muito a preocupava. Ela temia examinar o trabalho ao fim do dia e perceber que eles não foram cuidadosos em preservar aquela construção secular tão bela, sólida, robusta, vigorosa, sexy e-

Hein?

"Meu Deus, Kyoko! Quando foi que você se tornou uma pervertida?"

{Oh?}


Mais gratificante do que vê-la (e fazê-la) corar era ouvir os pensamentos que ela deixava escapar por não conseguir enxerga-lo. Afinal, as pessoas sempre ficam mais à vontade quando não veem alguém por perto. Contudo, o deleite não parava por aí: sempre que ela se descuidava revelando mais do que gostaria, os indícios de seu arrependimento ficavam claros, portanto, ela dava a Kuon algumas preciosas informações...

Por exemplo, naquele momento ela tinha os olhos arregalados enquanto cobria a boca com as mãos. Por que aquele sobressalto por haver falado o que não pretendia, se ela pensasse estar sozinha?

{Você não me engana mais, milady. Você consegue me sentir, não consegue? Você sabe que eu estou aqui!}

Mesmo sem ver o sorriso ferino de Kuon, Kyoko se contraiu.

{Desde quando, eu me pergunto...}

Kyoko não sabia que Kuon caminhava lentamente até ela, mas isso não a impediu de se sentir acuada.

{Parece que a conexão não é unilateral, afinal de contas}


Não trabalhar estava sendo péssimo para ela, e não só porque era difícil lidar com o medo do que estavam fazendo com o palácio dela: não ter com o que ocupar sua mente, que invariavelmente vagava para Kuon, a estava enlouquecendo!

Ela conseguia sentir, naquele momento, que havia alguém perto dela. Sempre que fechava os olhos, Kyoko sentia a presença distinta que só poderia pertencer a um homem alto pelas dimensões do "corpo". Quando ela se concentrava naquela forma, conseguia captar uma emanação parecida com o calor corporal, exceto que não havia calor. Era como se aquilo, fosse o que fosse, também emanasse uma energia, só que não do tipo térmica.

Era alguma outra coisa; algo que ela fantasiava como sendo Kuon, o homem do retrato sobre a cornija da lareira. Seu noivo imaginário, o companheiro para o qual ela dizia todo o tipo de amenidades sem saber que era prontamente respondida.

Ela atribuiu o fato de que ele agia como um homem sensual à sua solidão e necessidades negligenciadas, sendo que as reações de seu corpo eram provas de sua carência física. Sim, ele era o rosto de suas fantasias eróticas reprimidas, e a cada segundo que ela o sentia se tornava mais difícil esconder isso dele.


{Você está tendo pensamentos pervertidos a meu respeito, milady?}

Kuon já havia produzido vários efeitos em Kyoko, mas nunca tão intensos quanto agora. Ele chegou tão perto, que conseguia ver sua pele arrepiada. Seus pelinhos na nuca eriçados. A respiração entrecortada saindo em pequenos arquejos pelos lábios entreabertos.

O rubor ele veria a metros de distância.

Ele se abaixou em direção ao pescoço dela como se estivesse em transe. Por um segundo, ele poderia jurar que captou uma fragrância, uma memória de jasmim e laranja.

Ele não tinha células olfativas. Raios, ele não tinha sequer um nariz. Mesmo assim, nada o deteria de tentar senti-la, já que era óbvio que ela o estava sentindo: sua pequena e trêmula mão subiu rápida ao pescoço e um calafrio a percorreu.

Ela gemeu. Ele sorriu.

Kyoko entreabriu os olhos e pareceu foca-los no rosto dele, sobressaltando-o: ela havia conseguido adivinhar a posição de sua cabeça, ligeiramente inclinada por ter se aproximado do pescoço dela. Ele pensou que morreria, caso já não estivesse morto, no instante em que ela tentou tocar-lhe o rosto.

{Kyoko, você... você consegue me ver?}

Nem ver, nem ouvir, e a resposta à pergunta dele ficou óbvia quando ela fechou os olhos e continuou a tatear o vazio com uma expressão de enlevada concentração.


Ela tinha uma imaginação prodigiosa, se conseguia conjurar uma diferença entre o nada e o rosto de seu noivo imaginário. Sem o sentido da visão a estragar sua fantasia ao gritar "não há nada aí!", ela definitivamente conseguia sentir algo. Alguém.

Ela o imaginava com um sorriso triste mesmo sem saber o motivo, mas que logo se tornou faminto quando ela umedeceu os lábios subitamente ressecados. Era estranho como toda a umidade de seu corpo parecia ter se concentrado em outro lugar. Ela "o" sentiu se mover para mais perto dela, a presença "dele" tão nítida e imponente que ela só pôde se mover junto com "ele". A cada passo que "ele" dava para a frente, ela respondia dando um passo para trás, até que ela ficou encurralada entre "ele" e a porta do quarto.

{Agora eu a tenho exatamente onde eu a quero, milady}

Com mãos trêmulas e os olhos ainda fechados, ela percorreu o contorno de seus braços até os ombros, o pescoço e novamente o rosto. Ela gostaria de poder sentir as tranças que ela viu no retrato, presas pelo que pareciam ser fios de couro em contraste com o dourado do cabelo. Aquelas tranças faziam maravilhas ao destacar o queixo que ela percorria com os dedos, antes de desce-los para o peito. Ali, as mãos dela se demoraram um pouco mais, em busca de calor e de batimentos cardíacos, mas não foi em suas mãos que ela captou tais sinais.

Foi em suas costas. "Ele" estava diante dela, subjugando-a e acolhendo-a ao mesmo tempo, suas grandes mãos a envolve-la pelos quadris, mas "ele" também estava atrás dela, a aquece-la quase como se a abraçasse, uma vibração ritmada vinda da madeira da porta que a fazia imaginar um coração.

Lentamente, as mãos dela desceram em direção ao abdômen, o que acelerou a vibração em suas costas. Ela sorriria sadicamente por estar torturando-o daquela forma, se não fosse pelo fato de que as mãos dele tinham uma lentidão semelhante ao vagar dos quadris para o centro do seu corpo, onde ela mais o queria.

{Dois podem jogar esse jogo, milady}

Ela o sentia inquieto e ofegante, ou talvez fosse ela mesma em tal estado, até que os batimentos se tornaram altos e nítidos e ela pensou ter ganho aquela batalha.

Só que não.

Toc-toc-toc. "Senhorita? Senhorita Kyoko?"

{Mas que filho da-}

Kyoko praticamente pulou quando as agradáveis vibrações em suas costas se tornaram batidas insistentes na porta na qual ela se escorava, seguidas pelo chamado de um dos restauradores querendo lhe falar.

Que jeito de encerrar a melhor e mais vívida fantasia erótica de sua vida...

Alheia ao fato de que Kuon praguejava e amaldiçoava o homem que havia interrompido o único interlúdio sensual que ele teve em séculos, mas sentindo a contrariedade e a frustração que emanavam do ambiente, Kyoko abriu rapidamente a porta para se livrar logo do pobre homem que parecia prestes a enfrentar todo o descontentamento de seu noivo imaginário.

"Sim? Pois não?"

"Er... eu... nós... digo, os homens, nós..."

A antena de Kyoko captou quando a insatisfação foi substituída por uma ira sanguinária, o que a fez estremecer sem querer.

{Seu maldito! Como se atreve a olhar assim para ela?}

O funcionário, alheio ao perigo que estava correndo, concentrava-se apenas na mulher diante dele, inesperadamente sedutora com a respiração ofegante e as pupilas dilatadas, e por um segundo ele olhou brevemente para o interior do quarto para identificar quem seria o amante que a havia deixado naquele estado de excitação.


"Algum problema, senhor?"

Kyoko só pensava em despachar o homem dali o mais rápido possível. Hizuri II já tinha problemas demais sem ser palco do homicídio que parecia prestes a acontecer, por algum motivo.

"Hã... sim. Nós terminamos por hoje e... se a senhorita... é senhorita, não é?"

{Não para você!}

"Sim! Sim, mas o que isso tem a ver com-"

"Ah, nada. Só... curiosidade. Bem, terminamos o serviço por hoje. Este andar já tem eletricidade e água quente, então-"

"O quê?"

Certamente ela havia entendido errado.

"Eu disse que este andar já tem eletricidade e água quente, portanto-"

O resto ela não ouviu. Ela só conseguia pensar que finalmente conseguiria tomar banho quente sem precisar aquecer a água no enorme fogão a lenha e carregar baldes e mais baldes até a banheira.

Sem se conter de tanta felicidade, ela fez uma enorme reverência ao restaurador, agradeceu profundamente e se desculpou profusamente por haver importunado o trabalho deles no dia anterior, reconhecimento que ela repetiria na manhã seguinte diante de todos os trabalhadores antes do expediente deles recomeçar.

Kuon, por sua vez, sentiu todo o amargor do ciúme. Havia muito pouco que ele poderia fazer por ela, então ele se sentiu incompetente e desnecessário. O trabalhador havia se transformado em uma criatura balbuciante diante de Kyoko e Kuon não poderia culpa-lo por estar encantado. Ele também ficaria enfeitiçado se fosse o destinatário de sentimentos tão puros de gratidão e arrependimento.

Certo de que ele nunca teria tanta importância para ela, Kuon foi se amuar no sótão do castelo, alheio ao fato de que havia deixado Kyoko sentindo-se sozinha e completamente confusa pela sucessão de sensações que ele havia conseguido provocar nela em tão pouco tempo.

CAPÍTULO 9

Após minuciosa inspeção, Kyoko concluiu que os restauradores haviam feito um ótimo trabalho. Aliás, ela percorreu toda a parte segura do palácio dizendo a si mesma que estava apenas verificando a reforma realizada, o que não explicava por que ela também vasculhou os demais andares a despeito de toda a restauração feita até então se restringir ao primeiro andar.

Ela não queria admitir que estava procurando por ele.

Kyoko ficou alguns bons minutos encarando o retrato de Kuon. Talvez isso a ajudasse a invoca-lo, caso ele existisse, ou cria-lo, caso não. Em vão. Por mais que tentasse, ela não conseguia sentir a presença dele como se acostumara a sentir.

Se ele era real ou imaginário, ela ainda tinha dúvidas. Enquanto existisse um fiapo de racionalidade lhe dizendo que tudo aquilo era absurdo, fruto de uma imaginação fértil combinada à solidão e ao esgotamento emocional de uma vida inteira de relacionamentos tóxicos, Kyoko relutaria em aceitar que estava vivendo na companhia de um fantasma.

Além do mais, havia o medo. Medo de se apegar novamente a algo que não existia. Medo de ter encontrado uma maneira de descer ainda mais baixo: após tantas experiências fracassadas com sentimentos fictícios de pessoas reais, agora ela caminhava a passos largos para se apegar aos sentimentos duvidosos de uma pessoa fictícia.

Por outro lado, pode-se dizer que a dúvida por si só já era um passo gigantesco que ela dava em direção à aceitação, considerando-se que alguns dias antes ela riria ou se irritaria só de ouvir menção ao fantasma daquele palácio.

Decidida a descansar após aquele dia estressante, ela retornou frustrada para o quarto por não mais sentir a presença reconfortante (e, às vezes, sensual) de Kuon. Aliás, nem mesmo os sentimentos desconfortáveis de outrora ela permanecia sentindo. De alguma forma, era como se o ambiente estivesse tão morto quanto no primeiro dia em que ela pisou em Hizuri II, o que a inquietava e a fazia ansiar pelo aconchego de um banho quente antes de dormir.


Kuon soube que a conexão entre ele e Kyoko havia diminuído pela maneira como a sentiu caminhar pelo castelo. Diferentemente de antes, a sensação agora era quase invasiva e desconfortável.

Maravilha. O dia seguinte seria realmente interessante, se ele pudesse sentir cada martelada e machadada dos restauradores.

Absorto na agonia da antecipação, Kuon não percebeu que ela perambulava exatamente pelos lugares onde ela pôde senti-lo, tentando senti-lo novamente. Ele só se concentrava no desconforto de estar novamente conectado ao castelo e na frustração que o acometia.

A noiva prometida havia retornado. O que mais precisava acontecer para que ele se libertasse? O Druida não havia explicado. Aliás, o Druida parecia se divertir em não explicar coisa alguma, o que sempre o irritava quando eles estavam vivos.

Ainda perdido em pensamentos, Kuon percebeu vagamente quando ela abriu o registro de água para encher a banheira do quarto de banho. Sim, os trabalhadores haviam providenciado para que ela tivesse luz e água quente. Agora, ela poderia desfrutar do conforto que outros homens haviam garantido para ela.

O amargor estava de volta com força total.


Kyoko ficou satisfeita ao confirmar que o restaurador falara a verdade: ela finalmente tinha água quente!

Ela abriu um largo sorriso e começou a se despir, antecipando o prazer de um banho relaxante ao mínimo esforço de girar uma válvula, mas parou enquanto desabotoava a blusa por se lembrar de que poderia estar sendo observada.

Não era a primeira vez que ela se preocupava com isso. Se Kuon fosse real, ele já teria tido inúmeras oportunidades de vê-la em situações embaraçosas: tomando banho, trocando de roupa, usando a privada... No entanto, nessas horas ela nunca conseguiu senti-lo. Pelo menos não como ela estava acostumada a senti-lo em outras circunstâncias.

Das duas, uma: ou ele era cortês o bastante para não invadir sua privacidade, ou ele disfarçava sua presença para poder observa-la sem ser pressentido, o que fazia dele um pervertido.

Ideia que, percebeu ela, não a desagradava tanto quanto ela julgava apropriado.

Claro que existia a possibilidade de ele ser um mero fruto de sua imaginação fértil e carente. Neste caso, faria sentido que ele sumisse justamente quando ela não queria que ele a visse, porque sua própria mente cuidaria de bani-lo.

Em meio as suas reflexões, Kyoko admitiu finalmente que queria que ele fosse real. Ela desejava que houvesse um homem como aquele do retrato a espia-la e a deseja-la, ou então sendo cavalheiro o bastante para respeitar sua privacidade, mesmo sendo invisível. Assim, no vapor que começava a preencher o quarto de banho, ela continuou a se despir, mas desta vez o fez lentamente, deliberadamente, esforçando-se para não pensar que ela deveria parecer ridícula por tentar ser sexy quando era uma mulher tão pouco atraente.

Quando ficou nua, Kyoko estremeceu e entrou na banheira tentando se concentrar em sua fantasia e não no pesar que sentia por não identificar a presença de seu noivo imaginário. Ela deixou escapar um suspiro satisfeito que soou quase pecaminoso quando mergulhou até os ombros na água quente e a fez recordar as avassaladoras e prazerosas sensações de sua fantasia prévia, quando fora capaz de sentir Kuon com impressionante nitidez.


Durante os séculos, ele flagrou as assustadiças governantas em diversos estágios de nudez (e apelando para os mais bizarros meios de evitar que ele visse seus corpos), mas para ele o corpo feminino adquiriu um significado diferente após sua morte. Quando se é um espírito, atormentado ou não, um corpo é um corpo: algo material, pertencente a um plano inalcançável, e notoriamente frágil e em constante perecimento, especialmente quando comparado a uma alma imortal.

Por fim, ele percebeu que simplesmente não se importava com um corpo. Vê-las nuas ou não, não havia diferença. Até Kyoko surgir em seu caminho.

Desde que a aceitou como sua noiva, o interesse por ela cresceu paulatinamente, ao ponto de Kuon precisar se controlar para respeitar sua privacidade. Ele ansiava por um contato íntimo que a nudez proporcionaria naturalmente, portanto, não era por cortesia, menos ainda por desinteresse que ele se mantinha distante de Kyoko enquanto ela tomava banho. Ao contrário, naquele momento poucas coisas o fariam mais feliz.

E mais miserável ao mesmo tempo.

Na verdade, o que impedia Kuon de segui-la no banho ou de permanecer no quarto enquanto ela trocava de roupa era seu senso de autoproteção, afinal, por que ele haveria de querer se torturar vendo-a, quando ele não poderia toca-la?

Melhor não.

Ele se enveredava mais uma vez pela alameda da autocomiseração, quando ouviu o primeiro suspiro. Ótimo, ele testemunharia em primeira mão toda a satisfação que ela sentia por um conforto que somente ele não poderia prover.

Momentos depois, mais alguns suspiros, seguidos de um gemido que o fez franzir a testa.

{Não... isso não pode estar acontecendo!}.

Nenhuma governanta havia feito aquilo em seus domínios. Primeiro, porque nenhuma ficou tempo suficiente para aquilo se tornar uma necessidade; segundo, porque elas sempre tiveram medo demais para pensar naquilo.

Kuon estava perplexo, mas não pelo ineditismo da situação: o que o estarrecia era descobrir a que nível de crueldade aquela maldição era capaz de chegar.

Por fim, um choramingo o fez ter certeza de que a vida havia encontrado uma nova maneira de atormenta-lo na morte. Fazia séculos que ele não ouvia aquele som, mas Kuon foi capaz de reconhece-lo imediatamente.

{Mulher cruel! Eu posso ouvi-la, sabia?}

Gritar toda a sua frustração e tapar os ouvidos não adiantaria e Kuon o sabia bem. Afinal, ele estava novamente conectado ao castelo, o que o tornava onisciente de tudo que acontecia ali dentro. No entanto, isso não o impediu de tentar impedir que os adoráveis sons penetrassem sua mente.

Ela estava se tocando, disso ele tinha certeza. Não havia ninguém mais no castelo, porque desta vez ele sentiria um invasor. Logo, sua Kyoko estava decididamente se dando prazer, algo que ela não fez desde que chegou a Hizuri II, outra certeza que ele tinha.

'Por que agora?', era a pergunta que o atormentava. Em seu raciocínio depressivo, ela estava finalmente à vontade porque ele a havia deixado em paz e relaxada pelos confortos trazidos com a reforma para a qual ele não só não contribuiu, como passou séculos evitando que ocorresse.

Até ela gemer a única palavra que ele não esperava ouvir de seus lábios.

"Kuon..."


Ela estava inquieta e pensar nele só aumentava sua inquietação. Ela se sentia poderosa e sexy imaginando-o ali, escondido a observa-la, e lembrar-se da fantasia rudemente interrompida só piorava as coisas. Então, antes que pudesse controlar os próprios desejos, ela recorreu à autossatisfação.

Kyoko não tinha um bom relacionamento com o próprio corpo, mas às vezes a carência e o estresse se tornavam insuportáveis e ela se sentia compelida a extravasar. Naquele momento, ela tentava dar vazão ao desejo acumulado pelo noivo imaginário que ela não mais sentia, o que a entristecia e a fazia oscilar entre o desejo e a tristeza, dificultando a tarefa de extrair prazer de uma atividade solitária.

Então, ela fechou os olhos e se lembrou de sua bela imagem. Aquilo definitivamente ajudou. Quando ela se lembrou do contorno impressionante de seu corpo, uma fisgada de prazer a fez gemer o nome dele.

No segundo seguinte, lá estava ele, sua presença imponente a preencher todo o espaço vazio do quarto de banho.


Ele não podia crer no que estava vendo, embora seus olhos apenas confirmassem sua suposição.

Ele era um homem amaldiçoado, não era? Condenado a permanecer naquele castelo que nunca deixaria de ser um palácio por toda a eternidade, a menos que... ele não sabia o que. Então, porque ele se sentia como um filho da puta sortudo naquele momento?

Ela estava tão linda. Tão perfeita em seu pudor de cobrir os seios com um braço enquanto a outra mão permanecia em seu sexo, escondendo-o de seus olhos vorazes e estimulando-os (sexo e olhos) ao mesmo tempo.

Ela decididamente sabia que ele estava ali.

{Por que você está se escondendo de mim? Não foi você que me chamou aqui?}

Ela gemeu mais uma vez, mas desta vez de frustração. Ele se aproximou e se abaixou ao lado dela.

{Há muito pouco que você pode fazer com as pernas fechadas desse jeito}

Ela sentiu o sussurro dele e estremeceu.

{Não se contenha porque eu estou aqui. Minha intenção é ajudar, Milady}

Ela pareceu entender, porque afastou os joelhos um pouco mais e ampliou o movimento da mão com a qual se tocava. Encorajado pelo que interpretou ser um gesto de aceitação, ele apoiou a mão sobre a dela, sorrindo quando percebeu que conseguia provocar ondulações na água.

{Você está pensando em mim, Kyoko?}

"Ngh"

{Pensando no que fizemos mais cedo?}

"Ah!"

{Diga meu nome outra vez, Milady}

"Kuon!"

Ela não precisou ouvir o comando para atendê-lo. Em sua mente, só havia uma pessoa.


Ela estava se sentindo tonta e febril. Kyoko teria se preocupado, se não soubesse que aquilo se devia à excitação que sentia, e não a alguma doença.

Ele estava realmente ali, a diferença entre o antes e o depois de sua presença tão gritante quanto se ela pudesse vê-lo e ouvi-lo.

Ela já não conseguia mais se conter. Em um momento, ela se agarrava à modéstia; em outro, ela estava gloriosamente exposta, uma perna balançando para fora da banheira, a outra perna tão afastada quanto possível e as mãos apertando as bordas da banheira como se a vida dela dependesse disso.

As mãos.

As mãos.

Espera um segundo.

Ela captava lances confusos de tudo, sua mente e corpo em frenesi, mas algumas coisas se tornaram distinguíveis de tão inusitadas: primeiro, havia algo similar a uma respiração ofegante em sua orelha esquerda, sem dúvida vinda de Kuon, agora atrás dela. Segundo, ela não estava mais se tocando, mas algo estava. Ou melhor, alguém fazia a água ondular da maneira certa e no lugar certo para-

Ela gozou gritando o nome dele, os espasmos tão fortes que seu corpo se debateu na água e a fez espirrar no chão. Pela reverberação às suas costas, como se fosse o rosnado baixo de uma fera, era como se ele tivesse gozado também.

Kyoko não sabia que Kuon, de fato, havia sentido algo. A conexão entre eles não só fora restabelecida, como também se fortaleceu graças ao fato de que ela finalmente acreditava na existência dele. Afinal, a prova incontestável ainda lhe percorria o corpo.

Nem mesmo ela conseguiria encontrar uma explicação racional para aquele orgasmo. Portanto, Kyoko finalmente aceitou que o fantasma de Hizuri II era tão real quanto a câimbra que ela começava a sentir na perna ainda pendurada na borda da banheira.

CAPÍTULO 10

Algo havia mudado drasticamente, ele podia sentir. Desde o estranho enlevo que acompanhou o primeiro orgasmo dela, Kuon soube que não estava mais sozinho. A cada êxtase que se seguiu nos dias seguintes, ele percebeu que era como se a alma dela se desprendesse do corpo por um segundo, no qual ambos compartilhavam o mesmo plano imaterial e podiam verdadeiramente se tocar.

Kyoko, por sua vez, também não era mais a mesma. Aproveitando que a restauração em andamento não a permitiria fazer muita coisa, ela criou coragem para enfrentar a sessão de ocultismo da biblioteca local e se surpreendeu ao descobrir que a área destinada ao tema era a maior de todas.

Kuon a observou imergir nos livros sobre espíritos com o afinco que a caracterizava, mesmo que os dois soubessem que aquilo que acontecia entre eles não tinha precedentes. Logo, nenhum livro revelaria como proceder na situação em que os dois estavam.

"Bem, ao que parece você está preso"

{Sim}

"Todos os livros dizem mais ou menos a mesma coisa: um espírito só não faz a passagem quando ele se prende a algo. Pode ser uma pessoa ou linhagem, um objeto ou uma ideia"

{Faz sentido. Eu consigo me prender ao castelo e a você}

"Você sabe por que permanece aqui? Digo, aí?"

{Não}

"Há algo que eu possa fazer para ajuda-lo?"

{Sim}

"Você sabe o que?"

{Não}

"A lenda fala de uma maldição que será quebrada com o retorno da noiva prometida. Bem, ou essa noiva não sou eu, ou eu estou fazendo alguma coisa errada"

Até então, a ideia de Kyoko para que eles pudessem conversar estava funcionando bem: um toque para "sim", dois toques para "não" e três toques para "talvez". Tudo o mais que Kuon queria dizer, fazia-o por meio de seus sentimentos e intenções.

Longe de se contrariar com tal estratégia de comunicação, Kyoko finalmente se sentia em perfeita sintonia com alguém e livre da ansiedade que costumava acompanha-la durante a interação com outras pessoas. Sendo alguém ávido por agradar, ela sempre sofreu as agruras de tentar decifrar o enigma ambulante que são as pessoas, principalmente quando se tratava de discernir onde estava a verdade no que elas diziam e faziam.

Por outro lado, com Kuon era tudo muito simples: ela sabia quando ele estava feliz, irritado, decepcionado, confuso, amargurado e excitado. Não havia dissimulações ou falsas intenções a considerar. Ou seja, Kuon era mais real do que Sho e Hikaru jamais foram.

Kyoko sabia que ele se aborrecia com os restauradores, que ele ria das travessuras de Bo, que ele adorava provoca-la e vê-la ruborizar e que ele ansiava pelo fim do expediente, quando os dois afundariam na banheira.

"Eu sou mesmo uma pessoa horrível!"

Os pensamentos dela a levavam novamente para aquele lugar, onde ela se indagava se queria que ele se libertasse. Se ele fosse embora, ela ficaria completamente sozinha.

Kuon sabia bem o que a atormentava por causa do elo que os unia. Ela queria o bem dele e se esforçava diariamente para que ele conseguisse se libertar, disso ele tinha certeza, mas ela também ficava angustiada ao pensar que poderiam se separar, o que o enternecia.

Ele queria que houvesse uma forma de dizer a ela de quantas maneiras ela o havia transformado. Ela havia voltado para ele, isto era tudo que importava. Nem mesmo quebrar a maldição era uma prioridade diante da chance de estar com ela. Aliás, também o atormentava a ideia de que eles iriam se separar caso ele se desprendesse daquele plano intermediário. Mesmo se conseguisse reencarnar imediatamente, eles teriam vinte e oito anos de diferença em idade.

Por outro lado, Kuon sabia que havia toda uma vida que ele jamais poderia proporcionar a ela. Filhos, para começar. Pensando assim, não seria melhor se ele fosse embora de uma vez, antes que ela se apegasse ainda mais a ele?

Semanas depois

A restauração entrava em sua etapa final, o que frustrava Kyoko. Os dias em que ela poderia passar horas na biblioteca da cidade ou pesquisando em seu quarto com Kuon estavam no fim, e a sensação que ela tinha era a de que ela nada mais fez além de andar em círculos.

Foi quando ela recebeu a visita de Sawara e o segundo presente inesperado.

"Senhorita, bom dia! Eu tenho uma coisa para você!"

Ela estremeceu involuntariamente e ruborizou. Da outra vez que ele disse isso, ela começou um relacionamento platônico que rapidamente evoluiu para um romance tórrido com um fantasma.

{Guarde esses pensamentos para mais tarde, Milady, para que eu possa fazer bom uso deles}

Estava difícil interagir com quem quer que fosse. Kuon havia adotado o hábito de provoca-la de todas as maneiras sensuais que ele conseguia divisar sempre que ela parava de trabalhar para dar atenção a alguém. A única exceção que ele fazia era quando ela falava com Bo, que parecia tê-la finalmente perdoado pelo episódio da bebedeira.

Não era por maldade que Kuon deixava Kyoko em situações embaraçosas: era porque ele adorava quando ela lhe sussurrava repreensões.

"Pare com isso, Kuon!"

"Hm? A senhorita disse alguma coisa?"

"Não! Nada! O que o senhor dizia?"

"Ah, sim!"

Sawara estendeu para Kyoko uma pequena caixa de madeira e levantou a tampa. Seu conteúdo fez Kuon dar um passo involuntário para trás.

"Uau, é linda!"

{E traz péssimas lembranças}

"Sim, e pertenceu a Kyoko Mogami! Dizem que esta pedra é mágica..."

Primeiro, ela ficou intrigada. Era a segunda vez que Sawara dava a ela algo que pertenceu à finada Kyoko, mas desta vez não se tratava de uma réplica. Depois, ela quase revelou quão aflorada estava a sua tendência para acreditar em magia, cortesia de Kuon.

"Então eu não posso aceita-la, senhor. Aliás, eu jamais aceitaria um presente como esse de um homem que não fosse meu pai ou meu marido"

{Sábia decisão}

"Ora, mas eu não a estou dando a você! Não, eu não poderia! É apenas um... empréstimo!"

{Isso está me parecendo armação do Druida}

"Empréstimo? Para que?"

"Bem, isso eu não sei. Eu só sei que consta nas especificações que você deve receber esta pedra"

"Que especificações?"

{As especificações do Druida para me tirar daqui}

"As especificações que foram passadas de curador para curador ao longo das gerações! As propriedades Mogami, Takarada e Hizuri II ficaram sem herdeiros, portanto existe um manual que determina como cada propriedade deve ser administrada. No caso de Hizuri II, as regras são claras: uma única governanta por vez, jovem e solteira"

"O que é este palácio? O seu covil do amor particular?"

Era a primeira vez que Kyoko percebia quão suspeitos eram os pré-requisitos do trabalho que ela exercia.

{Não se irrite, minha adorável dama. Você é a única para mim!}

"Hm? Você disse algo, senhorita?"

"Apenas pensei alto, senhor. Desculpe a interrupção. Prossiga, por favor"

"Oh, sim. Bem, nenhum curador nunca passou desta fase de seleção das governantas, então imagine o meu orgulho por ter sido o único a entregar o retrato do Mestre conforme especificado!"

"Espera... espera um pouco. O senhor está me dizendo que alguém determinou que aquele quadro fosse entregue para mim?"

{Alguém, não: o Druida}

"Precisamente. Da mesma forma que foi determinado que esta pedra deveria chegar até você"

"Determinado por quem?"

{Eu realmente acho que deveríamos usar um tabuleiro Ouija. Estou cansado de me repetir}

"Hm... eu nunca soube. Veja bem, tudo foi posto em um documento legal, assinado pelo soberano à época. Nenhum registro foi feito sobre quem fez o que, e como o próprio soberano assinou, eu nunca fiz perguntas. Ordem real não se discute, minha cara"

"Entendo... e o que exatamente diz esse documento?"

"Hm, acho que não há mal em lhe contar. Primeiro, há as especificações para o perfil das governantas"

"Ridículo, a propósito" Ela finalmente compreendia onde ela havia se metido. Sawara apenas sorriu sem jeito e continuou a falar.

"Depois, há a determinação para entregar a réplica do retrato e a pedra para a governanta após cumpridas certas etapas"

"O que é isso? Uma gincana de escola?"

Enquanto Kyoko se aborrecia por não ter feito aquelas indagações antes, Kuon se intrigava com as novas informações. Quisera ele ter sabido há mais tempo que o Druida havia feito mais do que simplesmente dizer algumas palavras em seu castelo antes de desaparecer.

(Kuon nunca se esqueceria daquele dia. O luto do Druida era tão visível que o homem parecia ter envelhecido vinte anos em poucos dias. Pudera, ele havia perdido três entes queridos em um curto intervalo de tempo.

"Kuon, eu sei que você pode me ouvir. Eu tomei precauções para garantir que você tenha uma segunda chance com sua noiva. Não estrague tudo, meu jovem. Quando ela retornar, você terá sua libertação e tudo ficará bem, eu prometo. Tudo que está errado será consertado")

Kuon retornou ao momento presente para ver Sawara rir da comparação de Kyoko.

"Sim, eu também pensei isso quando assumi como curador deste castelo! Eu só não imaginei que seria tão divertido observa-la cumprir cada uma das exigências, e ainda ter o mesmo nome da noiva prometida!"

"Que bom que um de nós está se divertindo!" O curador não ouviu o murmúrio sarcástico de Kyoko. "E agora, o que mais eu tenho que fazer?"

"Como assim?"

"Qual outra etapa eu preciso cumprir para ganhar o próximo prêmio?"

"Ora, mas não são prêmios!"

"Não são?"

"Não! São pistas!"

{Pistas?}

Kyoko começava a achar que ela estava no meio de uma brincadeira de mau gosto arquitetada por uma pessoa mentalmente perturbada e com muito tempo sobrando.

"Pistas para que?"

"Eu não sei, mas por favor me prometa que vai me dizer quando descobrir!"

Ele parecia tão empolgado com a situação que era quase engraçado. Sem mencionar que a confiança que ele depositava na capacidade dela em solucionar aquele mistério era perturbadora.

"Okay, então eu tenho um retrato e uma pedra. E o que mais?"

"Mais nada"

"Como assim, mais nada?"

"Não há mais pistas. Ou, como a senhorita disse, os 'prêmios' acabaram"

"Sem mais etapas a cumprir? Nada?"

"Nada. As especificações se encerram nesta pedra"

Kyoko se perdeu em pensamentos por alguns instantes, refletindo sobre como tudo parecia suspeito. Alguém havia previsto que ela iria se candidatar a governanta naquele palácio. Alguém queria que ela recebesse o retrato de Kuon e aquela pedra, ambos pertencentes a Kyoko Mogami. Para que? E por que ela?

De todas as dúvidas que ela tinha, ao menos para uma o curador tinha a resposta.

"Quais foram as etapas que eu cumpri, Senhor Sawara?"

"Errrr... bem, a senhorita ficou!"


Ela estava de péssimo humor e ele não estava muito melhor.

Kyoko já havia experimentado mergulhar com a pedra na banheira, mas nenhuma voz mística lhe disse o que fazer. Ela já a havia aproximado do fogo na lareira, mas nenhuma inscrição antiga surgiu. Quando todas as referências famosas sobre o que fazer com um item supostamente mágico acabaram, ela se resignou a carregar a pedra consigo. Talvez isso fizesse alguma diferença, afinal, ela era supostamente especial e a pedra era a última "pista".

Kuon era de opinião semelhante à dela: se o Druida os havia trazido até ali, era porque havia algo que somente ela poderia fazer por ele, e usando apenas o retrato e aquele item mágico.

Foi com tais pensamentos em mente que Kyoko colocou a pedra em um pequeno saco de veludo que pendurou no pescoço a fim de mantê-la protegida. Ela não sabia o motivo, mas pressentia que precisava manter Corn junto de seu coração. Uma boa coisa que Kyoko confiasse em seus instintos, porque a razão ficou clara dias depois.


Fim da restauração

Hizuri II estava uma beleza, de fato. Kyoko quase podia sentir como se o palácio fosse recém-construído, sua imponência combinando perfeitamente com a imagem que ela tinha de Kuon. Ele, por sua vez, observava orgulhoso como ela absorvia cada pedaço daquela construção, fascinada com quão primoroso era cada detalhe.

O calendário previa o início das visitações para o fim do mês, o que deixava Kyoko com quase três semanas para liderar a equipe que traria todos os objetos de Hizuri II que foram recolhidos e armazenados. O palácio voltaria a ter uma aparência tão próxima à original quanto possível.

Todos os itens possuíam valor histórico, mas alguns eram mais valiosos e, portanto, no dia seguinte uma equipe especializada em segurança faria por Hizuri II o que havia sido feito por Hizuri I, Takarada e Mogami: um forte esquema de câmeras e sensores garantiria que nada seria roubado, furtado ou danificado.

Kyoko mal podia crer que este dia havia finalmente chegado. A conclusão de seu trabalho. Lógico que ela permaneceria em Hizuri II como governanta, mas o propósito oficial de seu contrato fora cumprido. Como boa workaholic que era, a satisfação por um trabalho bem feito a extasiava.

Por outro lado, sua missão extraoficial continuava sem solução: libertar Kuon. Ela não se sentia mais próxima disso do que estava quando pisou em Hizuri II pela primeira vez, e isto porque para Kyoko, assim como para Kuon, os problemas precisavam de mais do que uma dose extra de paciência para serem resolvidos. Portanto, nenhum dos dois cogitou a possibilidade de não haver instrução para o uso do quadro ou da pedra porque nenhuma instrução era necessária: bastava que um dos funcionários trabalhando na restauração pensasse que a réplica era o original, para se sentir inclinado a rouba-la e desencadear os eventos necessários para mudar para sempre muitas vidas.

Todos os dias ele via o quadro ali, a incitar o pior dentro dele. A cobiça disfarçada de oportunidade justificava todo o planejamento que ele fez para obter a vida luxuosa da qual ele se considerava digno e injustamente privado. Somente uma mulher no castelo e nada mais a guarnece-lo. Hizuri II era uma construção vulnerável, com vários pontos de entrada e nenhuma vigilância.

Tão fácil, tão acessível. Uma vida inteira de sonhos ao alcance de suas mãos. E ninguém saberia que fora ele. Seria apenas questão de entrar, pegar o quadro e sair. Vende-lo para um contato no mercado negro e ficar rico. Sumir no mundo, deixar a vida simplória de assalariado para trás.

Não havia mais poltergeist a afugentar os invasores. Aliás, Kuon sequer conseguia senti-los. E não era segredo para ninguém que o forte esquema de segurança só seria armado no dia seguinte.

O ladrão não contou com a possibilidade de que Kyoko o escutaria. Certamente, antes de aborda-lo ela havia chamado a polícia, a julgar pelo celular ainda na mão dela. Igualmente, ele não contava que ela tentaria impedi-lo de levar o quadro consigo, menos ainda que ela se jogaria sobre ele para tentar detê-lo.

A arma fora apenas uma precaução. Ele realmente não pretendia usa-la naquela noite, mas a governanta louca não parava de gritar que ele não levaria Kuon embora e de tentar recuperar o quadro que ele mantinha sob um braço. Um quadro inesperadamente leve, mas que não o fez duvidar de sua autenticidade.

Ele só descobriria no dia seguinte, quando fosse preso pela polícia, que ele havia atirado na governanta de Hizuri II e ficaria vários anos na cadeia por causa de uma réplica barata.


O tempo todo ela sentiu o pavor, o dela e o dele. Ele tentou impedi-la, ela sabia disso. Kuon nunca se sentiu mais desesperado na vida, desespero que corria pelas veias dela. Contudo, ao invés de demove-la da ideia insensata de tentar impedir o ladrão, tal sentimento apenas se confundiu com o medo que ela já estava sentindo de ficar sem Kuon.

Ela temia que ele estivesse preso ao quadro. O quadro era importante, porque foi depois dele que Kyoko começou a sentir Kuon. O quadro era uma das duas pistas que ela tinha. Então, se aquele ladrão levasse o quadro embora, ela ficaria sem Kuon.

Ela não podia permitir.

O tempo todo Kuon amaldiçoava o fato de não poder protege-la. Como seria fácil, se ele ainda tivesse seu corpo. Ele daria cabo daquele ladrãozinho com os dois braços amarrados às costas! Mas não, não seria fácil assim. Ele não conseguia sequer impedi-la de se colocar em risco, e tudo para proteger um maldito retrato sem importância.

Ao menos ela havia reportado um invasor para alguém antes de abordar o malfeitor e exigir que ele devolvesse o quadro.

Presenciar, impotente, o embate físico dos dois foi tão angustiante quanto descobrir que ela havia morrido daquela vez. Era como se tudo se repetisse diante de seus olhos, mas agora havia o estrondo do disparo e o sangue vertendo de seu peito.

{Não não não. Kyoko, não, por favor!}

Ela estava no chão, a mão ensanguentada cobrindo a ferida, os olhos assustados e desfocados buscando o vazio, até pousarem nele e ela sorrir.

"Kuon? Eu posso... vê-lo!"

"Não, Kyoko. Por favor, não venha para cá!"

"Por que... não?"

"Por favor, você tem uma vida para viver!"

Ela quase não conseguia mais falar. A dor no peito diminuía na mesma medida em que a sonolência aumentava. Contudo, ela conseguiu sentir a mão de Kuon sobre a sua, e abaixo dela...

"Oh não..."

A pedra havia se partido, o que trouxe algum alívio para Kuon. Talvez o dano em Kyoko não tivesse sido tão grave, se ele foi amortecido pela pedra. Por outro lado, havia todo aquele sangue...

"Kyoko, por favor, não durma!" Havia tanto que ele queria dizer a ela, e tão pouco tempo! Algo estava acontecendo com ele, como se uma força invisível o puxasse, mas ele lutava contra ela. Dane-se a maldição, dane-se se ele tivesse que ficar preso pela eternidade naquele lugar. Com a mão dele sobre a mão ensanguentada de Kyoko, Kuon prometeu que trocaria sua libertação por mais alguns segundos ao lado dela.

Só alguns segundos a mantendo acordada até a ajuda chegar, e ele passaria toda a eternidade naquele lugar sem reclamações ou arrependimentos.

Kyoko ouvia sirenes ao fundo, mas ela não se importava. Ela podia ver o rosto de Kuon, mas não era como o do retrato. Ele parecia pesaroso, atormentado. Algo o preocupava. Ela queria dizer a ele que estava tudo bem, que ela não se importava de morrer, mas ela já não conseguia mais falar. Ela o ouvia repetir "não durma!", mas o sono era quase insuportável.

Ele estava tentando cuidar dela, o que a fez sorrir. Então, com a mão ensanguentada sobre Corn, ela prometeu que faria tudo que pudesse para libertar Kuon, mesmo se ela se tornasse um espírito como ele. Aliás, ela tentava se fixar nele e na ideia de ajuda-lo, ainda que isso pudesse amaldiçoa-la a vagar eternamente.

Ela só pensava em ajuda-lo. Ele só pensava que ela merecia uma vida plena e feliz.

Naquele momento, Kyoko perdeu a consciência. A última coisa que ela viu foi a expressão dolorosa de Kuon enquanto se esvaía no ar.


O corpo dela doía, especialmente a cabeça. Ela tentou abrir os olhos, mas não conseguiu. Sentindo os arredores e lembrando-se dos seus últimos momentos conscientes, Kyoko percebeu que deveria estar em um hospital. Ela havia sobrevivido ao tiro no peito, afinal.

Ela não sabia se sobreviveria à perda de Kuon, o que a fez chorar silenciosamente.

Após alguns momentos, ela percebeu que permanecia sem conseguir abrir os olhos. Havia uma claridade incômoda no ambiente que mantinha suas pálpebras cerradas. Por outro lado, ela conseguiu mover as mãos, o que a fez tentar tocar o ferimento no peito, que magicamente não doía. Tateando-se, ela se surpreendeu ao se sentir estranha, como se...

A porta do aposento sendo abruptamente aberta a fez abrir os olhos em sobressalto e piscar várias vezes até se adaptar à luz.

"Mestre Kuon, eu lhe imploro! Lady Kyoko está-"

"...Viva!"

Não, não podia ser. Aquele lugar não era um hospital. As pessoas que invadiam seu quarto e a olhavam estupefatos não usavam as roupas de sua época.

Acima de tudo, o corpo que ela tateava debilmente não era o dela e o homem que a observava com um misto de alívio e cautela no rosto não parecia nem um pouco morto.

Naquele momento, Kuon pensou que Kyoko o olhava como se estivesse vendo um fantasma, o que era irônico de uma maneira que ele desconhecia.

A última coisa que Kyoko pensou antes de desmaiar foi que ela não deu à lenda a devida interpretação: a noiva precisava retornar.

A noiva havia retornado, de fato.