Capítulo Oitenta
Breached Borders
(Fronteiras violadas)
Se há dois dias alguém houvesse dito a Sirius que estaria na casa de Marlene bebendo uma xícara de chá, teria se sentido incrédulo. Se lhe dissessem que Marlene estaria furiosa, teria acreditado com mais facilidade.
— ... não é grande coisa?! — ela quis saber; ela não estava sentada, como Sirius; ela andava de um lado para o outro da sala de estar, como seu Patronus faria. Ela ainda estava um pouco pálida por causa da poção do dia anterior, mas ela estava viva e era um pouco assustadora. — Sirius, eles nos manipularam!
— Para nos testar — disse. Ela lhe deu um olhar fulminante.
— Qual é o problema com uma prova escrita? Ou começar um duelo por nenhum motivo? — Sirius tomou um gole de chá. — Eles nos fizeram pensar que íamos morrer! De fato, eles me fizeram achar que eu tinha mesmo morrido! Tem ideia de como é horrível não sentir nada e ver tudo sumir, e saber que eu estava te abandonando...
— Awww, Marly, não sabia que você se importava — comentou com um sorriso.
— É claro que eu me importo — disse, tensa, e a tentativa dele de melhorar o humor fracassou. — Eles nos fizeram achar que era Voldemort, Sirius, e eles nos caçaram, nos amaldiçoaram e nos aterrorizaram, mas está tudo bem por que era um teste?!
— Não estou dizendo que foi divertido — ele disse friamente e ela cruzou os braços, erguendo o queixo. — Mas é o que eles fazem; estão tentando nos preparar para o que está lá fora...
— Ontem, o que estava lá fora era eles — Marlene ralhou. — Como é que isso vai ajudar em qualquer coisa? Nossos mentores, pessoas em quem confiamos, mentiram para nós... Remus sabia, Sirius, você já disse isso, e ele mentiu para você...
— O que ele deveria ter dito? — Sirius perguntou, defendendo Remus. — Não é como se eu não soubesse que ele estava mentindo; eu sabia que algo estava acontecendo. Mas se ele tivesse me dito alguma coisa, eu não teria levado o teste a sério e provavelmente teria dito algo a você e a Dora; a Dora é uma Lufa, então ela teria contado a todos para que eles se sentissem melhor. — Sorriu carinhosamente, mas Marlene não ficou satisfeita. — Estou feliz que ele não tenha me contado. Não teria levado a sério. — Tinha perdido muitos pontos na arena por não levar as coisas a sério e não estava completamente certo de que tinha aprendido a lição. — Foi extremo, claro, e sim, trouxe à tona algumas lembranças terríveis...
— Oh, só uma ou duas — Marlene disse com sarcasmo e se sentou no sofá em frente ao de Sirius com as mãos nas têmporas.
— ... para nós. Os outros não têm isso. Acha que Brown já teve medo de verdade? Ou que Edwards sabe algo sobre os Comensais da Morte que ela não tenha aprendido numa aula? Eles ficariam assustados, é claro, mas é diferente para eles...
— Diferente o bastante para ser aceitável? — Marlene perguntou.
— Se tivesse acontecido de verdade — Sirius disse simplesmente —, estaríamos todos mortos. Não é algo legal de se saber, mas é a verdade. Nós cometemos erros idiotas porque estamos enferrujados, e os recrutas cometeram erros idiotas porque eles não sabem como é quando as coisas ficam ruins de verdade. E, sim, foi malditamente cruel fazê-los pensar que seus amigos morreram...
Sirius decidiu não contar a ela sobre o que tinha sonhado na noite anterior; não ajudaria em nada.
— ... ou que eles mesmos morreram, mas eles vão virar Aurores. Seus amigos vão morrer e não é um trabalho com uma baixa taxa de mortalidade. E aposto que a maioria deles nem tinha considerado isso muito bem. — Deu de ombros, impotente. — Dessa vez, os amigos deles voltaram. Eles têm outra chance. Nós sabemos melhor do que ninguém que não é assim que coisas funcionam no mundo real.
— Você já está pensando como eles — Marlene disse em voz baixa. Seu tom não era de reprovação, como ele esperara; era um tom pesado, resignado.
— Eu era um deles. — Sirius tomou um gole de seu chá esquecido. — Não é difícil recuperar hábitos antigos. Eu não planejaria um teste desses, não mesmo, mas não vou usá-lo contra os Aurores. Eles não são o inimigo, Marly, mesmo que tenham um método de ensino incomum.
— Ainda não gosto — disse duramente e Sirius sorriu.
— Então quando estiver qualificada, mude as coisas.
— Mudarei — ela disse e ele não duvidava disso.
— Então, como está se sentindo? — perguntou. Era o motivo de ter ido visitá-la.
— Um pouco letárgica — respondeu com um dar de ombros. — Mas já enfrentei coisa pior e só fiquei fora por meia hora, então os efeitos não vão durar muito.
— Bom. — Algo em que Sirius não conseguira parar de pensar voltou a aparecer em sua mente. — Então, er, quando foi que seu Patronus mudou?
— Não sei — disse, parecendo incapaz de encontrar seus olhos; ela olhava fixamente para as mãos, firmes ao redor de sua xícara de chá. — Em algum momento antes de eu entrar no programa; já estava assim durante a entrevista.
— Já era uma leoa antes... você sabe, antes de — mim — da Ordem?
— Não — respondeu suavemente. — Não, sempre foi um cachorro. — Ela pigarreou, sem jeito. — Foi... O jeito que você se transforma é... — Pausou, parecendo procurar pela palavra certa. — Brilhante. — Sorriu, um pouco tímida. — Eu fiquei sabendo que você podia... Gawain me contou sobre o julgamento quando eu voltei da prisão, mas ver... Parece tão fácil.
— E é — Sirius disse. — Não era no começo; eu precisava falar o encantamento todas as vezes, até minha magia e meu corpo se acostumarem, e doía, mas agora é só pensar que já me transformo. — Deu de ombros. — É um truque útil.
— Eu que o diga. — Marlene olhou para o relógio sobre a lareira. Ela hesitou. — Quer ficar para o jantar ou...?
— Monstro deve estar me esperando — Sirius respondeu automaticamente. — Obrigado, mas...
— Não, não tem problema — Marlene disse. Ela parecia aliviada e, talvez, um pouco curiosa. — A gente vai se ver pelo Departamento, tenho certeza. Te colocaram com quem?
— Hemsley — Sirius disse. — Alguém tem um senso de humor, me colocar com ele e Brown; Hemsley, Black e Brown... — Marlene tinha uma expressão estranha e divertida no rosto. — Hemsley deve ser bacana. — Nem perto de ser tão legal quanto James, mas quem seria? — Estou preocupado é com o garoto... Ele é meio idiota, até onde eu sei. — Honestamente, ainda estava um pouco irritado com o comentário de Brown sobre Sirius ser um civil.
— Vocês vão se acostumar um com o outro.
— É — Sirius disse. Deixou a xícara na mesa e se levantou. — Bem, é melhor eu ir. Fico feliz que você esteja bem.
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Assim que Sirius mencionara Monstro, Marlene não conseguiu se livrar da desconfiança. Ela o deixou sair e voltou para a sala de estar na mesma hora; aquela janela dava para a rua. Observou Sirius e, não, não estava espiando, disse a si mesma, só queria ter certeza de que ele chegaria bem em casa... E descobrir se a casa dele era onde ela achava que era.
Como esperado, Sirius andou na direção do número doze, Grimmauld Place, subiu o degrau e na mesma hora sumiu na soleira. Marlene se afastou da janela, sorrindo para si mesma. Ela e Gawain tinham vasculhado cada centímetro daquele lugar e não encontraram nenhum sinal dele... E ele provavelmente estivera lá, fora seu vizinho desde que pegara Harry. E ela não tivera ideia.
Marlene não conseguiu impedir o sorriso divertido que apareceu em seu rosto, enquanto caminhava até a cozinha para preparar algo para comer.
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Para a maioria das pessoas, uma porta aberta não era motivo para se alarmar imediatamente. Entretanto, para Dolores, o era; foi o motivo de ela parar no corredor em frente ao escritório de Crouch, teria sido o motivo de Prewett ter trombado com suas costas se ela não fosse rápida o bastante, e era o que causava o desconforto em seu peito.
Prewett ajeitou as pastas que Dolores estivera carregando e olhou dela para a porta. Dolores achou tê-la visto revirar os olhos, mas quando se deu conta, a pequena Recruta tinha colocado as pastas nos braços de Dolores, sacado a varinha e continuado em frente.
Ela entrou no escritório e disse:
— Está vazio.
— Madame — Dolores disse, aproximando-se da porta. — Está vazio, madame. — Devolveu as pastas para Prewett, que as levou até a mesa em silêncio, deixando-as lá. — Não é bom que pareça íntima minha, querida. Podem fazer perguntas desconfortáveis. — Dolores sorriu e Prewett se virou e retribuiu.
— Desculpe — disse, ainda sorrindo. — Não estava pensando. — O sorriso de Prewett se alargou até Dolores temer que seu rosto fosse se rasgar — Madame. — Dolores sorriu, mas não durou muito. Tinha problemas maiores; sua cadeira tinha sido movida e havia uma mancha de sujeira no carpete rosa claro sob sua mesa e os gatos em suas paredes começavam a miar, incomodados, assim que a viram. O arquivo parecia intocado, mas não tinha certeza e era isso que mais a preocupava, porque guardava tudo ali. Com os arquivos que estavam ali, a pessoa certa podia arruinar sua carreira.
— Hem, hem — disse, chamando a atenção de Prewett. A garota ergueu uma sobrancelha. Dolores ajeitou o laço em seu cabelo. — Por que não usa as habilidades que permiti que aprendesse ao te manter no programa para descobrir quem esteve aqui? — Dolores disse. Não achava que Prewett recusaria ou mentiria, porque ela só tinha sido obediente desde que Dolores a colocara sob sua proteção, mas era melhor se prevenir.
— É claro. — Prewett sorriu novamente. — Madame. — Ela acenou a varinha. Dolores não conseguia ver nada, mas os olhos de Prewett foram de um lado para o outro, seguindo traços invisíveis. Ela mordeu o lábio depois de um momento e balançou a cabeça. — Eu não sei.
— O que quer dizer com não...
— Eu não sei — repetiu. — Já faz horas desde que alguém esteve aqui e quem quer que fosse não tocou em nada nem usou magia.
— Há quanto tempo? — Dolores perguntou. — Exatamente.
— Dezenove horas — Prewett disse, hesitante.
— Na tarde de natal — Dolores disse. Ela, como todos os outros funcionários do Ministério, tinha recebido a ordem de não ir trabalhar no dia anterior, porque os Aurores iam conduzir algum tipo de simulação perigosa. E, ainda que Scrimgeour não tivesse tanto poder político quanto Amelia Bones, o que ele dizia costumava ser respeitado e as instruções que ele dava tendiam a ser obedecidas. O que significava que as únicas pessoas que estiveram no Ministério no dia anterior, na hora que tinham invadido seu escritório, eram os Aurores e seus recrutas. — Mudança de planos, querida — disse. — Pode tirar a tarde de folga.
Prewett pareceu incerta e disse:
— Mas...
— Surgiu um imprevisto e simplesmente tenho que cuidar disso. Eu a espero aqui amanhã de manhã, às nove horas. Boa menina. — Guiou Prewett até a porta e a fechou atrás dela. Então, foi até sua mesa e apressou-se a escrever uma carta para o Departamento de Registros Mágicos, avisando-os de que iria buscar as fotos de todos os membros atuais do Departamento de Aurores em alguns minutos e que queria que tudo estivesse pronto quando chegasse. Parou uma coruja no corredor em frente ao seu escritório, entregou-lhe a carta e foi em direção aos elevadores.
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— Foi ela? — Dolores perguntou, erguendo o retrato da Auror Chung. A Begônia Dentada em sua mesa ficou parada e indiferente. — Ele? — Mostrou as fotografias dos Aurores Ackerly, Austen, Harris e Read e, depois, fotos dos Recrutas Cooper, Morgan, Yaxley (apesar de Dolores duvidar ter sido ela, já que ela vinha de uma família tradicional) e Bulkes. A flor não pareceu se incomodar com nenhum deles. Ela se mexeu um pouco quando a foto de Prewett foi mostrada, mas só porque a Begônia a via com frequência; ela também era uma sangue-puro e teria o bom senso de não bisbilhotar, especialmente por ela dever a Dolores tudo o que tinha.
Moody, Blackburn, Finch e Proudfoot também foram ignorados, assim como Tonks, Lowesly, Hill e Dale. Por fim, quando estava mostrando as últimas fotografias, Dolores encontrou a que causou uma reação. Ela ergueu a fotografia de Sirius Black e a planta bateu os dentes e rosnou. Dolores se recostou, satisfeita com sua descoberta, mas descontente com o conhecimento de que fora Black que entrara em seu escritório.
Black era muito curioso para o próprio bem, esperto o bastante para ser uma ameaça e não apenas um incômodo e, agora que ele era o Auror Sirius Black, as pessoas ouviriam o que ele tinha a dizer se ele falasse contra ela. Se ele estivera em seu escritório ou, especialmente, em seus arquivos, ninguém sabia o que ele poderia ter encontrado; evidências de seus encontros com Dawlish e Malfoy, ou talvez sua conversa com Fletcher antes de ele "confessar" ter matado Greyback... Ela era cuidadosa com suas evidências, é claro — destruía tudo do que não precisava —, mas precisava guardar uma parte delas para chantagens ou quando precisasse lembrar as pessoas das promessas que lhe fizeram.
Dolores acariciou a planta, enquanto pensava. Precisaria ficar de olho em Black, disso tinha certeza. Atacá-lo, como fizera da última vez, seria muito arriscado, e se Black morresse, seria óbvio — se ligassem a morte a ela — que ela escondia algo. Não, precisava ser cuidadosa. Precisaria observar e esperar. Prewett seria útil; ela podia manter Dolores atualizada sobre o mais novo Auror, e a própria Dolores poderia fazer perguntas em nome do Ministro; era seu direito como Subsecretária Júnior. E, talvez, estivesse na hora de resolver as coisas com Dawlish; ele sumira um pouco, assim como Malfoy, e os dois podiam lhe dar opiniões e informações de outras fontes.
Sim, pensou, pegando a pena. Observar e esperar. E se Black se mostrasse perigoso para ela ou para o Ministro, então ela agiria e o destruiria — fisicamente, politicamente... De todo e qualquer modo que conhecesse.
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Sirius se acomodou no Departamento de Auror com facilidade, apesar de Brown ser um problema. Antagônica era a palavra que Sirius achava melhor descrever seu relacionamento profissional com ele; Brown era claramente inteligente — não seria um Auror se não fosse —, mas não tinha bom senso e praticabilidade, o que Sirius achava irritante. E Brown parecia incomodado pelo fato de Sirius ter conseguido uma promoção tão rápida e ser, agora, seu superior.
Uma das coisas que Sirius mais gostava de fazer era pedir que Brown fosse buscar chá para ele e Hemsley — não fazia isso com frequência, apenas um dia ou outro — ou algum arquivo ou algo igualmente trivial. Por sua vez, Brown passara a fazer perguntas obscuras sobre qualquer tipo de magia existente, esperando que Sirius não conseguisse responder. Até agora, ele tivera sucesso uma vez, algo sobre "Vira-Tempo", do qual Sirius não tinha a menor ideia. Brown ficara feliz em lhe mostrar um boletim do Departamento de Mistérios e Sirius descobrira que "vira-tempo" era o nome do aparelho terminado que tinha sido um trabalho em aberto por anos.
Sirius, desnecessário dizer, pedira para receber os boletins que o Departamento de Mistérios publicava irregularmente, para evitar se envergonhar no futuro. Também fora ao Departamento de Descobertas Mágica e se registrou para receber o livro que eles publicavam todos os meses, já que parecia uma fonte provável que Brown podia usar.
Sirius achava que Hemsley se divertia com isso tudo, apesar de não ter nenhum argumento que apoiava essa ideia; Hemsley não falara nada que indicasse que isso fosse verdade, nem usara algum gesto ou expressão nesse sentido. Era quase impossível ler esse homem e ele era muito bom em se manter neutro. Por isso, era difícil ter qualquer coisa além de um relacionamento profissional com ele. Eles se davam bem e os dois entendiam que Sirius nunca substituiria McDuff e Hemsley, por sua vez, nunca substituiria James, mas Sirius esperava que acabassem se tornando amigos ou o trabalho seria muito chato. Até Scrimgeour era mais amigável.
Remus xingou em voz alta, trazendo Sirius ao momento presente a tempo de ajeitar a motocicleta contra a chaminé; Remus tinha tropeçado no suporte. Atrás de Remus, Harry — que acabara de sair da escada de corda que ligava a janela de seu quarto à plataforma ao redor da lareira do número doze — se mexeu, pronto para pegar a caixa de fogos de artifício nos braços de Remus, mas sua ajuda acabou não sendo necessária.
— Está aprendendo novas palavras com sua namorada? — Sirius perguntou, rindo; Remus xingava ocasionalmente, mas era incomum ele usar um xingamento tão pesado num tom de voz alto e casual.
— Talvez — Remus respondeu um pouco na defensiva, colocando a caixa nas telhas. Ele, então, se virou para Harry. — Não me ouviu dizer isso. — Harry apenas sorriu ao escolher um lugar seguro para se sentar; por mais que se sentissem confortáveis com alturas, graças aos voos, nenhum deles queria cair do telhado e a motocicleta ocupava muito espaço. — Até quando esse monstro — Remus indicou a moto de Sirius — vai ficar aqui?
— Estava pensando nisso hoje, na verdade — Sirius respondeu. — Pensei em esvaziar o estúdio do meu pai e transformar em um tipo de garagem interna. — Cutucou Harry. — Talvez no fim de semana que vem — Sirius tinha conseguido folgar aos fins de semana até que Harry começasse a escola —, garoto, se não tiver muita lição de casa?
— Não vou ter — Harry disse, confiante. — Às sextas-feiras, Hermione passa o almoço na biblioteca, fazendo a lição de casa, então eu provavelmente vou terminar a minha antes do fim do dia.
— Achei que você passasse as sextas com o Blaise — Sirius disse, franzindo o cenho.
— Não — Harry disse. — Ele passa as quintas e as sextas com os outros amigos.
— Oh — Sirius disse, por que, de verdade, o que mais poderia dizer? Blaise era um bom garoto e Sirius achou interessante que ele já soubesse administrar tão bem seu tempo e atenção. Sirius se perguntou se Harry tinha percebido que, graças a Hogwarts, ele provavelmente não veria muito seus amigos depois de junho. Sirius achava que ele tinha percebido, mas não queria perguntar. — Então, o que acabaram comprando? — perguntou. Precisara ficar até mais tarde no trabalho naquele dia, então pedira que Remus buscasse Harry na escola e os dois foram ao Beco Diagonal comprar algumas coisas para as festividades da noite.
— Filibusteiro e um pouco de Pó de Fada — Remus disse. — Um vendedor ambulante estava divulgando algumas coisas novas...
— Poppers de Partington — Harry disse.
— De Paddington — Remus corrigiu —, mas não confio neles... têm cheiro de cocô de fada...
— E como conhece o cheiro do cocô de fadas? — Sirius perguntou, sorrindo. Era difícil perceber sob a iluminação fraca, mas Sirius achou que Remus corou.
— Katelyn Reid — Remus disse. — E James achou que seria engraçado...
— Oh, certo — Sirius disse, rindo carinhosamente. — O creme...
— O quê? — Harry perguntou ansioso para ouvir sobre as travessuras que James aprontara na escola.
— Acredite quando digo que você não quer saber — Sirius disse, rindo. Remus deu de ombros e Harry deixou o assunto de lado. Mas Sirius continuou rindo sozinho por vários minutos, o que fez Remus o olhar com exasperação.
— Não foi tão engraçado assim — Remus ralhou, o orgulho ainda ferido daquele dia fatídico no sétimo ano.
— Foi sim — Sirius riu, mas se forçou a parar pelo bem de seu melhor amigo.
— Olhem — Harry disse, apontando para cima dos telhados das outras casas. Na direção da King's Cross, um fogo de artifício rosa e azul subiu ao céu e explodiu, causando uma chuva de fagulhas sobre Londres. — Está começando.
— Monstro! — Sirius chamou e Monstro apareceu com uma bandeja de biscoitos recém-saídos do forno. Ele fez a bandeja flutuar em um lugar onde todos poderiam alcançá-la, pegou um biscoito e se sentou ao lado de Harry, que se afastou para abrir espaço para ele.
Sirius olhou seu Auxiliar — faltavam poucos minutos para a meia-noite — e recostou-se na lareira, satisfeito. Ao seu lado, Remus tentava se esticar sem chutar a motocicleta e assistia aos fogos com uma expressão desejosa; Sirius achava que ele queria que Dora estivesse ali, mas ela tinha sido convidada para uma festa na estação de Ted e ela preferira comparecer. Remus, é claro, também tinha sido convidado, mas decidira ficar com a família, pelo que Sirius era mais grato do que admitiria.
E, do outro lado de Sirius, Harry explicava pacientemente a Monstro que os muggle também eram espertos. O elfo velho não parecia convencido, mas ele certamente parecia estar gostando dos fogos e ainda não começara a contradizer Harry ou a criticar muggles.
— Podemos? — Sirius perguntou, tirando um fogo de artifício da caixa.
— É claro, senhor Padfoot — Remus respondeu.
— Quer fazer as honras, senhor Moony? — Sirius perguntou, sorrindo. Remus sacou a varinha, acendeu o fogo de artifício que Sirius segurava e o jogou para bem alto no céu. Ele explodiu com um estalo parecido ao de aparatação e criou fagulhas vermelhas e verdes.
Passaram os próximos minutos esvaziando a caixa e admirando o show — para Sirius e Remus era como tinha sido antigamente, mas Harry também tinha suas lembranças.
— Lembra da última vez? — Harry perguntou, acenando a varinha para um fogo de artifício menor, que soltava estrelas. Ele o jogou do telhado e Sirius usou um feitiço de levitação para mandá-lo para o alto.
— Última vez? — Sirius perguntou.
— Com os fogos? Na caverna — Harry explicou, observando a chuva de estrelas azuis cair sobre o parque do outro lado da rua. Uma família muggle que estava no parque olhou ao redor, surpresa, mas não conseguiu ver de onde os fogos tinham saído. Sirius desviou os olhos deles e se virou para Harry, incerto de que expressão esperar.
Achou que seria uma expressão assombrada, mas o rosto de Harry estava calmo e honesto, apesar de ele ter um sorriso irônico nos lábios que Sirius sabia que ele aprendera com Remus em algum momento dos últimos dois anos. Sirius bagunçou seu cabelo e, juntos, explodiram o último fogo de artifício. Monstro sumiu na mesma hora, usando a explosão para mascarar sua aparatação.
Dois anos, pensou, balançando a cabeça ao voltar a se sentar. Não conseguia decidir se parecia ter sido mais tempo ou meras semanas. E que ano foi esse último... Eu fui julgado, Harry começou a escola, Remus finalmente se tocou e ficou com a Dora... Eu consegui um trabalho...
— Feliz ano novo — disse aos outros; os muggles no parque começaram a comemorar e ligaram a música, e outros fogos de artifício ainda explodiam. Transformou-se em Padfoot e lambeu os outros dois, do queixo à têmpora, afinal, o que era a virada de ano sem um beijo à meia-noite? Harry apenas riu e fez um show do ato de limpar o rosto, antes de puxar Padfoot para um abraço. Remus não pareceu surpreso e apenas sorriu, balançou a cabeça e pegou um lenço para secar o rosto.
Monstro voltou com três garrafas de cerveja amanteigada e as distribuiu — Sirius precisou se transformar para pegar a sua —, antes de lhes desejar boa noite e ir se deitar.
— A um novo ano — Remus disse, erguendo a garrafa. Eles brindaram. — A um trabalho, Sirius, e a Hogwarts, Harry.
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— Esperem por Tom — Charlie avisou, fazendo Swift parar. Por mais que Charlie amasse vassouras, achava que wyrms eram seu jeito favorito de viajar; eram criaturas longas e serpentiformes, parentes distantes dos dragões, que conseguiam correr muito rápido e por muito tempo. Elas também eram excelentes nadadoras e podiam voar (mas não quando carregavam humanos). Zamira e Kate diminuíram sua velocidade, e Tom ofereceu um sorriso cansado para Charlie por trás de sua balaclava; Charlie conseguia ver as rugas nos cantos de seus olhos.
— Você está bem? — Kate perguntou, abaixando a própria balaclava para que pudesse falar melhor.
— Cansado — Tom disse. Zamira quase não falava inglês, mas ela parecia ter entendido bem essa palavra; ela revirou os olhos. Charlie fez o mesmo; aquela mulher era tão dura quanto o couro de um dragão e tinha pouca paciência com qualquer um ou qualquer coisa que não fosse igualmente resistente. — Minha bunda está formigando e está frio...
— Estamos todos com frio — Kate disse, esfregando a orelha de seu wyrm. A criatura bufou e soltou um suspiro quente e esfumaçado na direção de Charlie. Ele aproveitou a sensação, porque, meros segundos depois, foi atingido pelo vento gelado. Estava tão frio que até mesmo o mais forte feitiço de aquecimento que alguém (Zamira) conseguisse lançar durava apenas uma hora.
— Eu sei — Tom respondeu. Abriu a boca e voltou a fechá-la, antes de voltar a ajeitar a balaclava, para que ela cobrisse sua boca e nariz. Charlie sabia o que ele queria dizer; Tom queria lembrar que ele, enquanto cuidador de dragões, não estava acostumado com uma situação tão brutal.
Ele passava bastante tempo na reserva, mas não lidava com os recém-nascidos, como Charlie e Kate, não competia com os outros cuidadores para ver quem conseguia se prender à cauda de um dragão por mais tempo, ou quem conseguia voar em um dragão. O único motivo para Tom tê-los acompanhado era que os cuidadores veteranos estavam confortáveis demais com seus trabalhos na reserva para irem atrás de um dragão fujão na selva e, por isso, mandaram Tom. E ele só concordara por que Charlie também estava indo.
Charlie estava feliz por ele ter ido; gostava de Kate, mas ela não falava muito, e Charlie, que crescera numa família enorme e tivera amigos animados na escola, sentiria falta de conversar. E Zamira era mais velha — ela tinha, no mínimo, o triplo de sua idade — e quase não falava inglês, o que dificultava qualquer tipo de aproximação.
Charlie desenrolou o cachecol — laranja e azul, que a mãe mandara com o costumeiro suéter de natal—, mas o segurou para evitar que o vento o levasse para longe. Na mesma hora, sentiu o frio em seus lábios e nariz e sentiu os flocos de neve ficarem presos na sua barba de dois dias.
— Posso falar que estou cansado... — Charlie disse em voz baixa, mas Tom balançou a cabeça.
— Vamos continuar — disse. — Está ruim o bastante aqui, no chão. Nossa fujona não deve estar se saindo muito bem.
Charlie discordava; a Dorso Cristado Norueguês fujona estaria com uma temperatura agradável — como os wyrms —, porque, mesmo tendo sangue frio, ela seria aquecida pelo fogo em seu peito... mas o vento... bem, isso podia ser perigoso.
— Tem alguma ideia do porquê ela foi para o sudoeste e não noroeste? — Charlie perguntou. Na história da reversa, houvera vários dragões fujões (aqueles estressados o bastante para usar a própria magia para quebrar as proteções) e todos eles tinham ido na direção de seu país de origem. O Dorso Cristado Norueguês tendia a ir para a Noruega, mas essa fêmea, estranhamente, ia em direção à Albânia, o que não fazia o menor sentido para os cuidadores, curandeiros ou comportamentalistas.
Charlie e os outros três tinham cruzado a fronteira há uma hora, e Charlie se perguntou o que aconteceria quando chegassem à costa — o que parecia cada vez mais provável. Teriam que conseguir vassouras, talvez, ou ver se os wyrms aguentariam o Mar Adriático. Charlie preferia vassouras, porque o mar estaria muito gelado e muito molhado.
— Nenhuma — Tom respondeu, balançando a cabeça. — Não tenho nem ideia do porquê ela ter fugido; que mãe dragão simplesmente abandona seus ovos...
— O Spine está lá — Charlie disse, referindo-se ao pai.
— Ainda é estranho — Tom disse. Merlin, seu wyrm, bufou, inquieto. — É, tá bom — disse, esfregando o rosto largo de Merlin. Swift bateu os dentes e Merlin respondeu do mesmo jeito. — Acompanhe, Weasley — falou, incentivando Merlin a começar a correr. Charlie sorriu, enrolou o cachecol ao redor da boca e do nariz, e mandou Swift começar a correr.
Kate e Zamira não tinham esperado; elas estudavam o caminho à frente, mas assim que viram que os homens estavam se movendo, mandaram seus wyrms voltarem a correr e os quatro seguiram viagem, abaixados nas selas para evitar qualquer galho baixo e para conseguir manterem o equilíbrio se ou quando os wyrms escorregassem no gelo ou afundassem na neve.
Várias horas depois, a noite tinha caído completamente, mas chegaram às margens do Tomorri Mountain National Park. Ingrid, a Dorso Cristado Norueguês que procuravam, tinha feito algumas aparições — a mais recente tinha sido há cinco minutos — para rugir e cuspir fogo contra eles, como um pássaro assustador que crescera demais. Charlie ainda conseguia sentir os batimentos cardíacos de Swift contra seu tornozelo.
Charlie estava absolutamente exausto e o pouco que conseguia ver do rosto de Tom sob a neve e a lã estava pálido. Até Kate — uma guarda-florestal com dez anos de experiência contra o um ano e meio de Charlie — se ajeitava na sela com cuidado e estava apoiada no pescoço escamoso de Alf. Apenas Zamira não parecia cansada; ela ainda estava sentada com a coluna reta, e Stig ia de um lado para o outro, inquieto.
— Vi krysset — Zamira disse a Kate. Os ombros dela caíram, mas ela se virou para Charlie e Tom.
— Vamos cruzar — disse pesadamente. Tom gemeu.
— Cruzar? — Charlie perguntou e foi ignorado. Zamira assumiu a liderança, com Kate logo atrás, e Charlie e Tom voltaram a ficar para trás. "Cruzar" fez mais sentido depois de alguns metros; o que Charlie assumira ser chão congelado, era, na verdade, um rio parcialmente congelado. Zamira chegou nele primeiro e sacou a varinha.
— Diffindo — ela disse, antes de usar um feitiço norueguês. O gelo quebrou, revelando a água escura, na qual Stig e Alf mergulharam. Merlin se aproximou com mais cautela e entrou, e Swift parou para beber alguns goles gelados, antes de entrar na água. Charlie ofegou; a água chegava à suas coxas e, apesar de suas roupas e botas serem a prova d'água, ainda conseguia sentir o frio.
O rio, felizmente, não era muito largo; chegaram ao outro lado em alguns minutos e, alguns minutos depois disso, estavam nas profundezas de uma floresta coberta de neve. Zamira e Kate trocaram algumas palavras, antes de Zamira desmontar. Rezando para que ela não estivesse apenas esticando as pernas, mas, sim, dando o dia por encerrado, Charlie escorregou para fora da sela, mas continuou apoiado no ombro de Swift — que ficava na altura da sua cintura — até conseguir sentir as pernas.
Kate desmontou cuidadosamente, mas estava mais acostumada com esse tipo de viagem e conseguiu dar alguns passos depois um momento. Tom desceu pouco graciosamente e teria caído se Charlie não tivesse segurado seu cotovelo.
— Valeu — ele disse com a voz abafada. Charlie deu um tapinha em seu ombro, tirou a varinha das profundezas do seu casaco de pele e a acendeu com um murmúrio. Kate e Zamira olharam para ele, reviraram os olhos e desapareceram entre as árvores. Charlie não se importava; teria uma visão noturna tão boa quanto as delas um dia, mas não ia cambalear pelo escuro como um idiota quando estava tão cansado.
Deu alguns passos duros até uma árvore enorme e morta, e cortou alguns galhos. Ele e Tom acenderam uma fogueira e alimentavam os wyrms quando Kate voltou com os cílios cobertos de neve e um bule cheio de neve para ferver. Zamira voltou com algumas plantas estranhas e algumas raízes grandes, que Charlie achou que seria o jantar.
Seu estômago roncou em apreciação, mesmo se não houvesse carne; Kate era vegetariana, já que aparentemente ela tinha visto pessoas demais serem queimadas vivas para conseguir comer carne.
Não falaram muito àquela noite ao redor da fogueira; Charlie e Tom conversaram um pouco, como sempre, Kate ficou quieta, e Zamira ficou perto de Stig, tomando sua sopa.
— Estive pensando — Tom disse em voz baixa — sobre Ingrid.
— E por que ela foi embora? — Charlie perguntou.
— Os dragões se acomodam quando colocam ovos — Tom disse. — Lembra da Frida, aquela Rabo Córneo? — Charlie assentiu e esfregou os ombros distraidamente; tinha uma cicatriz enorme ali da única vez que se encontrara com aquele dragão. — E ela foi de... bem, feroz, para... er... melhor.
— Vou acreditar em você — Charlie disse. Ia esperar Frida colocar ovos mais uma ou duas vezes antes de voltar a visitá-la. — Mal posso esperar até Csilla ter idade o bastante para cruzar. Ela é um dragão que precisa se acalmar. — Csilla era outro Rabo Córneo jovem que vivia na reserva por vontade própria, mas se recusava a interagir com pessoas; ela cruzara a fronteira entre a Hungria e Romênia três anos antes de Charlie e Tom chegarem ao santuário, brigara com Frida por território, ganhara, e se acomodara na caverna mais espaçosa que tinham. Ela matara dois recrutas nos últimos cinco anos e era uma lenda pela reserva, mas, felizmente, ela não tendia a se aventurar fora de seu território. — Mas Ingrid?
— Bem — Tom disse —, e se ela estiver caçando algo... ou alguém?
— Mais como afugentando para longe dos ovos, né — Charlie disse. — Mas por dois países? Não mesmo.
— E se ela estiver atrás de um ovo? — Tom perguntou, os olhos brilhando sob a luz da fogueira. As chamas também realçavam as bolsas sob seus olhos, e Charlie tinha certeza de que as suas eram tão feias quanto as dele.
— Talvez — Charlie disse. Ovos já tinham sido roubados antes; eles valiam muito no mercado e podiam (Bill lhe contara) ser vendidos para o Gringotes por uma quantia generosa. Os recém-nascidos valiam ainda mais e podiam ser usados para todos os tipos de ingredientes de poções (o sangue era o principal, mas os ossos eram usados em Poções e em Adivinhação, e as escamas podiam ser usadas para fazer roupas protetoras). Ou um dragão vivo e abusado tinha muito potencial como guarda, como em Gringotes (o estômago de Charlie se apertou ao pensar em como os dragões eram maltratados lá), como armas ou como uma forma de transporte. — Mas chegar perto o bastante para roubar o ovo de uma mãe experiente...?
— E quem chegaria perto o bastante para saber? — Tom perguntou.
— Eu chegaria.
— Nem todos são tão corajosos e imbecis como você, tonto — Tom disse.
— Vou ignorar a parte que disse que sou imbecil e só vou agradecer pela parte que disse que sou corajoso — Charlie lhe disse.
— Faça isso, Weasley.
— Farei, Durban — Charlie disse. — Talvez possamos sugerir isso na carta de amanhã. Alguém pode ver e, se um ovo estiver faltando, podemos tentar recuperar a Ingrid e o ovo.
— Oh, bom — Tom disse sarcasticamente. — Eu estava preocupado que acabaríamos fazendo algo perigoso nessa viagem.
— Se está preocupado com o perigo, pode aparatar até o santuário para trazer os outros cuidadores para ajudarem a controlarmos Ingrid.
— Se vocês vão sair no pau com dragões, acho que é melhor se o único Curandeiro certificado esteja por perto, você não?
— Você só é certificado a curar dragões — Charlie disse.
— E ainda consegui te remendar mais vezes do que posso contar.
— Que mentira — Charlie disse, rindo. — Se não estiver marcando as vezes em algum lugar, vou comer Swift. — Tom apenas sorriu.
Os quatro foram dormir pouco depois disso — Zamira falara a Kate, que contara aos homens, que acordariam cedo — e Zamira ficou perto de Stig, enquanto Kate, Tom e Charlie se acomodavam próximos à fogueira, dividindo cobertores e calor corporal.
-x-
Charlie acordou no meio da noite, soltou-se dos cobertores sem acordar aos outros, e cambaleou até as árvores cobertas por sombras para se aliviar.
Estava lavando as mãos com a neve quando ouviu um galho estalar; apressou-se a apagar a varinha. Um coelho passou por ele, pulando na direção do acampamento, e Charlie se acalmou — os animais tendiam a sumir se houvesse alguma ameaça, então se confortava com a presença deles.
Houve silêncio por um momento e, então, ouviu a neve ser amassada por passos não muito longe dali. Charlie passara tempo o bastante com os outros para reconhecer os passos deles — os de Kate eram leves e rápidos, os de Tom eram deliberados e regulares, e Zamira não fazia muito barulho quando se movia (ela andava pelas pedras ou segurava em galhos para deixar seus passos mais leves) — e sabia que esses passos apressados e instáveis não eram deles.
Charlie achava que seria um muggle; era possível que alguém tivesse visto um relance de Ingrid ou de um dos wyrms e estivesse investigando. E, por mais que admirasse a coragem deles, eles estavam se colocando em perigo. Charlie teria que, pelo menos, levá-los até o acampamento, onde ficariam até que fosse seguro irem embora, e, então, obliviá-los. Suspirou e se esgueirou por entre as árvores, na direção do som.
Por fim, a pessoa parou em uma clareira. Charlie tremeu e não tinha nada a ver com o frio; fazia um tempo que não via nem ouvia sinais da vida animal, além dos esqueletos de pequenos roedores, pássaros e as cobras ocasionais. Isso o deixava inquieto. A clareira em si era grande, nua — pouca coisa crescia ali e o que crescia tinha uma aparência doentia — e escura. Charlie sabia que era noite, mas parecia que a fraca luz da lua e das estrelas não chegavam tão bem nessa parte da floresta quanto no resto. Charlie tremeu mais uma vez e desejou que estivesse com um dos outros.
A figura disse alguma coisa; um nome, talvez. Charlie não conseguiu ouvir sob o rugir do vento. Estremeceu de novo. Sempre tinha se visto como um sensitivo razoável (no que dizia respeito a auras e coisas assim, não porque gostava de falar de sentimentos). Talvez fosse por que gostava de animais e eles não podiam falar, então ele precisava sentir e observar, ou talvez fosse por que crescera em uma família enorme, e fosse algo como sinta-que-a-mãe-está-de-mau-humor-ou-morra ou Fred-e-George-estão-aprontando-alguma-então-fuja-e-se-esconda.
Mas aqui, nessa clareira, Charlie sentia algo diabólico. Algo que deixava um gosto ruim em sua boca e fazia seu coração se apertar de medo. Nunca estivera perto de um Dementador, mas imaginava que era uma sensação parecida. Uma cobra enorme caiu de uma árvore, pousando no chão da clareira, onde se encolheu e ergueu a cabeça. A outra figura — um homem, com uma voz razoavelmente profunda — começou a falar com ela. Teria ficado menos preocupado se o homem estivesse falando Ofidioglossia; mas o homem falava em inglês e tinha respeito — não respeito pelo animal, mas um tipo de autoridade respeitosa — em seu tom.
Charlie sempre gostara de animais, mas havia algo errado com esse, e ele era corajoso o bastante para brigar com dragões, mas ele não ia ficar por ali e descobrir o que estava acontecendo. Ia acordar os outros e sair dessa maldita floresta.
Recuou e tropeçou em algo que quebrou com um som alto e terrível, como uma vassoura sendo partida ao meio. Caiu na neve macia e olhou ao redor, frenético; os passos iam em sua direção — provavelmente o homem e possivelmente aquela cobra horrível —, e se arrastou para trás, antes de trombar no que tinha tropeçado.
Era um esqueleto; velho e gasto, mas intacto... exceto pela perna que tinha quebrado. Uma parte imparcial de Charlie suspeitava que tinha sido magia que preservava os ossos; imaginou se essa magia estava presa ao colar prateado com um pingente de águia que descansava ao redor do pescoço do esqueleto ou se era apenas uma quinquilharia. O resto de Charlie, aquela parte que não era imparcial, gritava, e continuou gritando até que uma luva de pelo se fechou sobre sua boca e nariz, e uma varinha cutucou sua têmpora. A neve apareceu em sua visão, e engoliu tudo numa luz forte e branca.
— ... matá-lo? — Uma pausa. — Eu sei, mas os matarmos... Sim, está correto, meu Lorde, chamará a atenção para o fato de que estamos aqui. Sim. — Outra pausa, e Charlie flutuava para trás. — Então vamos deixá-los? — A bota de Charlie ficou presa em uma pedra que se sobressaia da neve, e ele fez uma careta quando sua perna foi torcida. — Desculpe — a voz disse distraidamente e, então, ele estava flutuando ainda mais alto, seguro de qualquer coisa que estivesse no chão. — Aqui? Não. — Outra pausa. — Sim, meu Lorde. Obliviate!
-x-
Charlie acordou com um bocejo e se espreguiçou, quase acertando o nariz de Tom.
— Cuidado — Tom murmurou, sonolento. Charlie se levantou e torceu o nariz; sua perna doía, apesar de não saber o porquê; não era dor da cavalgada.
Devo ter dormido em cima de uma pedra ou algo assim, decidiu. Deixou Tom e Kate com os cobertores e foi se sentar com Zamira, que cuidava de um fogo baixo; o vento e a neve quase o apagaram durante a noite.
— 'Dia — falou.
— 'Dia — ela respondeu sem erguer os olhos.
— Dormiu bem? — perguntou. Ela balançou a cabeça. — Frio?
— Escuro — ela disse.
Escuro? À noite? Vai entender, pensou, e lutou para manter o rosto sério.
— Escuro... — Ela balançou as mãos como se tentasse explicar algo. Era claro que ela não conhecia a palavra que queria. — Escuro cruel. — Charlie ergueu as sobrancelhas. Ele dormira bem (melhor do que há muito tempo, na verdade) e não tinha visto, ouvido ou sentido qualquer coisa "cruel" na floresta. Zamira era uma guarda-florestal bastante respeitada e seus instintos eram confiáveis, mas ele não estava convencido.
— Uh-huh — disse, assentindo. Ela crispou os lábios, obviamente entendo que ele não acreditava, e foi acordar Kate.
Tomaram um café da manhã apressado e, então, Tom e Zamira subiram nas árvores para tentar ver Ingrid. Aparentemente, era uma tarefa fácil.
— Ela está voando de novo — Tom disse para Charlie e Kate. — Atravessando o mar...
Kate gemeu e Charlie perguntou:
— Na direção da Itália?
— Não — Tom disse, parecendo perturbado. — Noroeste. Na direção da Grã-Bretanha.
— Acho que isso exclui o roubo de um ovo — Charlie falou quando Tom e Zamira apareceram nos galhos mais baixos, antes de pularem para o chão. Charlie tirou uma folha da balaclava de Tom e limpou a neve de suas calças. — Quem roubaria um ovo para levar para a Grã-Bretanha, mas pararia na Albânia primeiro? — Riu e Kate bufou com zombaria.
-x-
O homem dobrou o jornal — a manchete era Voando em Círculos?, e, na frente, havia uma fotografia de um dragão enorme e espinhoso preso em uma rede ainda maior sobre o Canal da Mancha — e o deixou sobre a mesa.
— Valeu a pena mantê-lo vivo ainda que apenas por isso — refletiu, olhando para o homem ruivo e troncudo da floresta; na foto, ele estava em uma vassoura, voando muito bem. — Tirou o dragão do nosso encalço, pelo menos.
De fato, respondeu o outro, mas ele parecia distraído; seus pensamentos estavam — como acontecia desde a floresta — passando pela mesma sequência de imagens:
A pedra, o castelo e o menino.
Fim
N/T: Obrigada pelos comentários no capítulo anterior e por todos que acompanharam essa fic até aqui! Como eu falei no capítulo anterior, a continuação começará a ser postada no dia 16/02, não percam!
Ainda estou fazendo a revisão de Innocent, mas assim que terminar, vou liberar lá na página (link no perfil), então fiquem de olho por lá!
Obrigada e espero vê-los em Initiate.