Nota: (1) – Harry Potter e seus personagens não me pertencem. E sim a J.K. Rowling. Toda a trama desta história é baseada na incrível obra de S.J. Watson, que, obviamente, também não me pertence. Porém, a causa da amnésia de Harry e o final desta história serão completamente diferentes do livro de Watson. Essa história não possui nenhum fim lucrativo, é pura diversão.
(2) – Essa é uma história Slash, ou seja, relacionamento Homem x Homem. Então, se você não gosta ou se sente ofendido, é muito simples: não leia.
(3) – Entre "..." pensamentos.
Entre - ... – diálogos.
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AMNÉSIA
Os belos olhos verdes se abriram devagar e enfocaram um quarto estranho, nada familiar. Ele não sabia onde estava, nem como fora parar ali, nem como faria para voltar para casa. Ele havia passado a noite naquele lugar e fora acordado pela voz de uma mulher – por um instante, ele pensou que a mulher estivesse ao seu lado na cama, mas depois percebera tratar-se apenas do noticiário que estava programado como despertador do rádio relógio – e, ao abrir os olhos, havia se deparado com aquele quarto desconhecido. Finalmente, quando seus olhos se acostumaram à penumbra, ele olhou ao redor e viu um leve roupão de seda verde-esmeralda pendurado atrás da porta do armário e calças escuras cuidadosamente dobradas sobre o encosto de uma cadeira à mesa. Ele não conseguia ver muito mais e a animada voz da mulher começava a irritá-lo. Após alguns minutos, porém, ele encontrou o botão e deu um jeito de silenciá-la.
Neste momento, ele ouviu uma respiração tranquila à suas costas e percebeu que não estava sozinho. Ao se virar, um par de costas largas e musculosas estava à sua frente. Um homem. Cujo braço esquerdo estava para fora das cobertas e um anel de ouro se destacava no dedo anelar de sua mão. O pobre rapaz de olhos verdes então reprime um gemido. Aquele homem forte de cabelos negros e corpo perfeitamente esculpido ao seu lado parecia impressionante, sem dúvida, mas, pelo visto, era casado. Ótimo. Ele não só havia transado com um homem casado, provavelmente um gay enrustido que aos olhos da sociedade possuía uma família perfeita, com sua esposa e filhos, mas fizera isto no que parecia ser a casa dele, na cama que ele compartilhava com a esposa. Voltando a se deitar, o rapaz tentava se recompor.
- "Onde estará sua esposa?" – pensava – "Será que preciso me preocupar com a possibilidade de ela voltar a qualquer momento?".
Ele imaginava a imagem de uma mulher enfurecida do outro lado do quarto, gritando e o chamando das piores coisas possíveis. Uma medusa. Uma massa de serpentes. Ele pensava em como iria se defender, caso esta mulher realmente aparecesse. Porém, o cara na cama não parecia muito preocupado, absorvido num sono profundo.
O jovem acordado piscava seus lindos olhos verdes, mas permanecia imóvel. Normalmente, ele conseguia se lembrar de como acabava nessas situações, mas não era o caso hoje. Deve ter sido uma festa, uma ida a um bar... Ele devia estar muito bêbado, com certeza. Bêbado o suficiente para não se lembrar de absolutamente nada. Bêbado o suficiente para ter ido parar na cama de um homem casado. Após respirar fundo, ele afastou as cobertas o mais suavemente possível e se sentou na cama. Antes de mais nada, ele precisava usar o banheiro. E assim, ignorando o chinelo aos seus pés – porque uma coisa era transar com o marido de uma mulher, outra era usar os chinelos dela, mesmo que parecessem perfeitos ao tamanho de seus pés –, o jovem, ciente de sua nudez, seguiu para uma porta entreaberta que parecia ser o banheiro integrado à suíte.
Após se aliviar rapidamente, dar descarga e se virar para lavar as mãos, ele estendeu o braço para apanhar o sabonete e notou que havia algo errado. De início ele não conseguiu perceber o que era, mas então ele viu: a mão que segurava o sabonete não parecia ser sua. A pele estava um pouco mais velha, mas também mais suave, fina e hidratada, os pequenos calos haviam sumido, substituídos pela pele bem cuidada de uma pessoa que não estava acostumada ao trabalho, e tal como o homem deitado no quarto havia uma aliança simples de ouro em seu dedo anelar.
Ele olhou aquilo por alguns instantes, depois mexeu os dedos. Engolindo em seco, olhou para o espelho e o sabonete, então, caiu com um baque mudo na pia. O rosto que via no espelho não era o seu. Bem, era o seu rosto, mas não exatamente o seu. Não era mais o rosto de traços infantis que estava acostumado, o rosto de um adolescente de pouco mais de dezessete anos, mas o de um homem jovem de aparência frágil de quase trinta anos que ainda conservava a inocência na beleza de seus traços. O cabelo estava um pouco mais comprido do que costumava usar, um pouco abaixo das orelhas, mas ainda possuía aquele ar rebelde com o qual estava acostumado. Os lábios cheios e rosados se destacavam na pele macia e perfeitamente barbeada e olhos, aquelas fascinantes esmeraldas, mostravam-se obscurecidos, cheios de medo e incerteza.
Seu grito ressoou pelo banheiro.
Um grito confuso e assustado.
Aquela pessoa no espelho era ele, sem dúvida, mas com 28, 29, talvez 30 anos de idade. 30 anos!
- Não é possível... – ele murmurou em voz alta, as mãos trêmulas agarrando-se à beira da pia. Outro grito começou a crescer dentro de seu peito e rompeu num som estrangulado.
Dando um passo para trás, o assustado rapaz se afasta do espelho e, então, ele vê as fotos. Todas elas grudadas com fita adesiva na parede ao lado do espelho. Fotos entremeadas com post-its amarelos, com anotações a hidrocor, úmidos e encurvados. Escolhendo um ao acaso, ele se depara com o nome "Harry" e uma seta apontando para uma foto sua – este novo "eu", mais velho, um adulto perto dos trinta – sentado num barco em um cais, ao lado do bonito homem alguns anos mais velho.
Harry...
Este nome, aparentemente seu nome, lhe parecia familiar, mas apenas de modo distante, como se precisasse se esforçar para acreditar que era o seu. Na fotografia, os dois estavam sorrindo para a câmera, de mãos dadas. O homem ao seu lado era muito bonito, de cabelos negros perfeitamente alinhados e olhos castanho-escuros num rosto atraente de feições masculinas. E, olhando de perto, ele percebe que é o mesmo homem com quem havia dormido, aquele que deixara na cama. A palavra "Tom" estava escrita embaixo, e, perto dela, seu marido.
Engolindo em seco, ele arrancou a foto da parede.
- "Não" – pensou – "Não pode ser...".
Olhando rapidamente para as outras fotos, seu sengue gelou. Eram todas fotos dos dois. Em uma ele estava usando um suéter vermelho e desembrulhando um presente, em outra os dois estavam de casacos impermeáveis combinando parados à frente de uma cachoeira, enquanto um cachorrinho farejava seus pés. Perto desta havia uma foto sua sentado ao lado dele, bebericando suco de laranja e usando o mesmo roupão de seda verde esmeralda que vira no quarto.
Ele recuou lentamente, até sentir os azulejos frios contra suas costas, quando finalmente teve o vislumbre que associou com uma memória. Mas quando sua mente tentou se fixar nele, esse vislumbre esvoaçou para longe, como cinzas apanhadas pela brisa, e então, o pobre rapaz percebeu que em sua vida existia um outrora, um antes, um antes desconhecido e um agora duvidoso, e entre os dois não havia nada além de um longo e silencioso vazio que o trouxera até ali, até um suposto marido e o que parecia ser a casa dos dois.
Voltando para o quarto, com a foto na mão – aquela na qual estava com o homem com quem havia acordado –, o assustado jovem a segura à sua frente:
- O que está acontecendo? – pergunta. Ele está gritando, as lágrimas correndo pelo seu rosto. O homem, por sua vez, se senta na cama com os olhos semicerrados – Quem é você?
- Seu marido – responde o outro, o rosto ainda sonolento, mas sem qualquer sinal de irritação – Estamos casado há anos.
- Como assim, "casados há anos"? – pergunta novamente. Sua vontade era sair correndo, mas não havia para onde ir – O que você quer dizer?
O homem se levanta.
- Tome – diz, entregando ao menor uma camiseta branca simples e este, ao vesti-la, viu que lhe chegava à altura dos joelhos. Pelo visto era a camiseta do próprio homem que, ao sair da cama, vestiu rapidamente uma calça de pijama preta, permanecendo com o musculoso torso nu – Nós nos casamos em 2007, há oito anos. Você...
- O que...? – Ele sente o sangue fugir de seu rosto, o quarto começa a girar. Há um relógio tiquetaqueando em algum ponto da casa, e o som agora parece tão alto quanto o de marteladas – Mas... – o homem dá um passo em sua direção – Como...?
- Harry, você tem 29 anos.
Harry olha para ele, para esse estranho que lhe sorria tão carinhosamente. O pobre rapaz não queria acreditar nele, não queria sequer escutar o que ele estava dizendo, mas ele prossegue:
- Você sofreu um acidente. Um acidente terrível. Machucou a cabeça. Você tem dificuldade para se lembrar das coisas.
- Que coisas? – Harry pergunta, querendo dizer: "Com certeza não os últimos doze anos, certo?" – Que coisas?
- Tudo – responde ele – Às vezes a partir dos dezessete anos. Às vezes até antes disso.
A mente de Harry girava num turbilhão de datas e idades. Ele não queria perguntar, mas sabia que precisava:
- Quando foi o acidente?
Ele olha para seus olhos, seu rosto é um misto de pena e receio.
- Há quatro anos. Quando você tinha 25 anos...
Harry fecha os olhos. Mesmo que sua mente tentasse rejeitar essa informação, de alguma forma ele sabia que era verdade. Ele escuta a si mesmo começar a gritar de novo e, ao fazer isso, esse homem, esse Tom, vem até onde ele está, parado de pé à porta. Harry sente a presença dele ao seu lado e não se mexe enquanto ele enlaça sua cintura, nem resiste quando ele o puxa de encontro ao corpo forte. Tom o abraça. Juntos eles balançam suavemente, e Harry percebe que aquele movimento lhe parece familiar de alguma maneira. Faz com que se sinta melhor.
- Eu amo você, Harry – diz Tom, e embora o menor saiba que devia dizer que o ama também, ele não diz. Ele não diz nada. Como poderia amá-lo? Esse homem é um estranho. Nada fazia sentido. Ele queria saber tantas coisas. Como chegara ali, como conseguira sobreviver. Mas não sabia como perguntar.
- Estou com medo – diz.
- Eu sei – retruca Tom – Eu sei. Mas não se preocupe, pequeno. Eu vou cuidar de você. Sempre cuidarei de você. Você vai ficar bem, confie em mim.
-x-
Quando Tom avisa que vai lhe mostrar a casa, Harry já se sentia um pouco mais calmo. Ele havia colocado uma cueca e o roupão verde sobre a camiseta branca.
- O banheiro do nosso quarto você já viu – diz Tom, ao saírem para o patamar da escada, abrindo uma porta ali perto – Este é o escritório.
Há uma mesa com tampo de vidro com o que Harry advinha ser um computador, embora pareça ridiculamente fino e pequeno, quase um brinquedo. Perto dele há um gaveteiro porta-arquivos de metal cinza, e, na parede acima, um calendário de planejamento e contagem de prazos. Tudo está arrumado, organizado.
- Eu trabalho aqui, de vez em quando – diz ele, fechando a porta. Atravessando o patamar, ele abre outra porta. Uma cama, uma penteadeira, mais armários, parece quase idêntico ao outro quarto – Esse é o quarto de hóspedes, às vezes você dorme aqui, quando tem vontade, mas em geral não gosta de acordar sozinho. Você entra em pânico quando não consegue descobrir onde está.
Harry acena com a cabeça.
Ele se sente quase como o inquilino a quem mostram um apartamento novo, ou quem sabe alguém que se candidata a dividir uma casa.
- Vamos descer – anuncia Tom.
Ao segui-lo escada abaixo, o maior lhe mostra a sala de estar. Havia um sofá marrom com poltronas combinando, uma tela plana afixada na parede, que, segundo Tom, era uma televisão. Então havia a sala de jantar e a cozinha. Mas nada daquilo parecia familiar ao menor. Ele não sentia absolutamente nada, nem mesmo ao observar uma fotografia dos dois emoldurada sobre um aparador.
- Tem um jardim nos fundos – diz Tom, e Harry olha pela porta de vidro que leva para fora da cozinha.
O dia estava começando a clarear, o céu noturno aos poucos se tornava azul-escuro, e o menor conseguia ver a silhueta de uma grande árvore, mas pouca coisa além disso. Ele percebe então que não sabia nem em que parte do mundo estavam.
- Onde estamos?
Tom fica atrás dele e abraça sua cintura quase possessivamente.
Harry vê os dois, refletidos no vidro. Ele e seu marido.
- Sul de Manchester – responde Tom – Didsbury.
O menor dá um passo para trás, o pânico começando a aumentar:
- Meu Deus – diz – Não sei nem onde eu moro...
Tom segura sua mão:
- Não se preocupe, pequeno, você vai ficar bem.
Harry se vira para encará-lo, esperando que diga de que maneira ele ficaria bem, mas Tom não diz.
- Posso preparar seu café da manhã?
Por um momento, Harry fica irritado com ele, mas então responde:
- Sim. Sim, por favor – Ele enche uma chaleira – Um chá com leite, sem açúcar.
- Eu sei – ele diz, sorrindo – Quer torrada?
Harry acena que sim. Este homem deve saber tanto a seu respeito e, ainda assim, esta parecia a manhã depois da primeira noite passada com alguém que mal conhecia: tomar café da manhã com um estranho na casa dele, imaginando quando seria aceitável ir embora e voltar para casa. Mas é aí onde estava a diferença. Aparentemente, esta era sua casa.
- Talvez você queira se sentar.
Harry acena novamente.
- Pode sentar na sala. Eu levo seu chá num minuto.
Instantes depois, Tom aparece na sala e lhe entrega um livro:
- Este é um álbum de recortes – diz – Talvez ajude.
Quando Harry apanha a encadernação de couro, o maior diz:
- Volto num minuto.
Sentado no sofá, Harry sentia o álbum pesar sobre seu colo. Ele tinha a sensação de que olhá-lo era como xeretar a vida de alguém, mas, recordando a si mesmo que, seja lá o que estiver ali dentro diz respeito a si, ele deveria abri-lo, porque lhe foi entregue pelo seu marido. Então, ao abrir o álbum ao acaso, o menor se depara com uma foto sua e de Tom parecendo um pouco mais jovens.
Ele fecha o livro num movimento brusco.
- "Devo fazer isso todos os dias" – pensa, correndo os dedos finos pela encadernação, folheando as páginas.
Ele não conseguia imaginar uma vida assim.
Com certeza, isso havia sido um erro terrível, entretanto não podia ser.
A prova estava ali, no espelho lá em cima, nas mãos que acariciavam o livro a sua frente. Ele não era a pessoa que achara ser ao acordar pela manhã.
- "Mas quem é essa pessoa?" – pensa. Quando ele havia sido esse alguém que acordava na cama de um estranho e só pensava em fugir? Fechando os olhos, Harry sente como se estivesse flutuando, sem esteios, sob o risco de se perder. Ele precisava se ancorar em alguma coisa.
Este álbum lhe diria quem ele era.
Mas ele não queria abri-lo.
Ainda não...
Harry tinha tanto medo de descobrir seu passado, aquilo que conquistou e o que não conseguira alcançar. No momento, ele estava equilibrado entre a possibilidade e os fatos reais.
Tom retorna e coloca uma bandeja a sua frente. Torradas, uma xícara de café e uma xícara de chá com leite.
- Tudo bem com você? – pergunta ele.
E o menor apenas acena com a cabeça.
Quando Tom se senta ao seu lado, Harry repara que ele fizera a barba, vestira um par de calças social pretas, camisa branca e uma bonita gravata listrada vermelha. Ele agora parecia alguém que trabalhava num banco ou num escritório. Nada mal, pensou o menor, seu marido era realmente muito atraente. Afastando este pensamento, porém, ele pergunta:
- Todos os dias é a mesma coisa?
- Basicamente – responde Tom – Quer um pedaço?
Quando o menor acena que não, Tom dá uma mordida na torrada.
- Você parece ser capaz de reter infamações enquanto está acordado, mas, quando dorme, a maioria delas se pede. Seu chá está bom?
Harry responde que sim e o maior apanha o álbum de suas mãos.
- Isso é uma espécie de álbum de recortes – diz ele, abrindo-o – Tivemos um incêndio há alguns anos, por isso perdemos muitas coisas e fotos antigas, mas ainda sobraram algumas – Tom aponta para a primeira página – Esse é seu diploma. E aqui está uma foto sua no dia da sua formatura.
Harry olha para a direção que o maior aponta. Ele está sorrindo, seu olhar franzido diante da luz do sol, de beca preta e um capelo de feltro sobre seu cabelo mais curto e tão rebelde. Logo atrás dele havia um homem de terno e gravata, com a cabeça voltada para longe da câmera.
- É você? – Harry pergunta.
O olhar de Tom escurece por um momento, quase perigosamente.
Então, ele sorri.
- Não. Eu me formei bem antes de você, sou cinco anos mais velho. Eu já estava trabalhando num escritório de advocacia nessa época.
Harry olha para ele.
- Quando nos casamos?
- Pouco depois de você se formar. Já estávamos namorando há muito tempo, desde os seus primeiros anos na faculdade, mas decidimos esperar um pouco.
Harry acena lentamente e Tom acrescenta:
- Estávamos muito apaixonados. Ainda estamos.
Tomando mais um gole de chá, Harry oferece um pequeno sorriso ao maior, que vira mais algumas páginas do álbum e continua:
- Você se formou em letras – diz ele – Depois teve alguns empregos, só uns bicos, não tenho certeza se você realmente sabia o que queria fazer. Eu sou formado em Direito e trabalho num escritório de advocacia. Foi difícil durante alguns anos, mas aí consegui uma promoção e então... bem, aqui estamos.
Olhando ao redor da sala, Harry percebe que, de fato, era um lugar arrumado e confortável. Estilo puramente classe média. Havia um quadro bonito emoldurado de uma floresta pendurado acima da lareira e pequenas estatuetas de porcelana ao lado do relógio sobre a bancada da lareira. Ele imaginava se havia ajudado a decorar a casa.
Tom prossegue:
- O escritório em que trabalho fica aqui perto. Agora sou chefe do departamento contratual-cível – diz aquilo sem nenhuma ponta de arrogância ou orgulho.
- E eu? – Harry pergunta, embora na verdade ele saiba qual a única resposta possível. Tom afaga sua mão.
- Você precisou parar de trabalhar. Depois do seu acidente. Hoje você não faz nada – ele deve ter percebido seu desapontamento – Mas você não precisa. Meu salário dá para nós dois, a gente se vira. Estamos bem, pequeno.
- "O que eu faço o dia inteiro?" – Harry tem vontade de perguntar, mas, temendo a resposta, acaba ficando em silêncio.
Tom termina sua torrada e leva a bandeja até a cozinha. Quando volta, está usando um sobretudo preto que lhe faz parecer um executivo.
- Preciso ir trabalhar – avisa. E Harry fica tenso – Não se preocupe, vai ficar tudo bem. Ligo mais tarde, prometo. Não se esqueça de que hoje não é diferente de nenhum outro dia. Vai ficar tudo bem.
- Mas... – Harry começa dizer.
- Preciso ir. Desculpe, pequeno. Antes de sair, vou lhe mostrar algumas coisas que talvez você precise.
Na cozinha Tom lhe mostra o que está nos armários, aponta para algumas sobras na geladeira que podem servir de almoço e para um quadro de avisos na parede, ao lado de uma caneta-marcador preta amarrada em um cordão.
- Às vezes deixo recados aqui para você – diz ele. Harry vê que ali está escrita a palavra "sexta-feira" em letras maiúsculas bem-feitas e caprichadas, e abaixo as palavras: "Roupa para lavar". "Caminhada – Leve o telefone!". "TV". Embaixo da palavra "Almoço", ele anotou que tem sobras de salmão na geladeira e acrescentou "Salada". Por fim, escreveu que deve chegar às 18 horas.
Sua vida.
Aquilo era sua vida.
E parecia tão... perfeitamente controlada por Tom.
- Você também tem uma agenda – informou ele – Está na mesa da sala. No verso dela há vários números de telefone importantes anotados, além do nosso endereço, para o caso de você se perder. E há um Iphone...
- Um o quê?
- Um telefone celular – diz ele – Está na mesa também. Não se esqueça de levá-lo, se for sair.
- Pode deixar.
- Certo – os dois caminham até o corredor e Tom apanha uma maleta de couro perto da porta – Vejo você mais tarde, pequeno.
- Ok.
Harry não sabe muito bem o que mais dizer. Ele se sente como uma criança que não foi para a escola e ficou sozinha em casa enquanto os pais vão trabalhar. Não toque em nada, ele imagina Tom dizendo. Não se esqueça de tomar seu remédio, algo assim. Tom então se aproxima e Harry sente seu coração disparar.
Aquilo era loucura.
Ele estava morrendo de medo.
Mas, ainda assim, seu marido era irresistível, com aquele sorriso no canto dos lábios e os sedutores olhos castanhos...
Então, quando Tom toma seus lábios num beijo doce, mas apaixonado, Harry deixa escapar um pequeno gemido. O que faz o maior sorrir satisfeito.
- Ligo mais tarde – avisa, abrindo a porta – Para ver como você está.
- Sim – murmura o menor, as bochechas lindamente tingidas de vermelho – Ligue. Por favor.
- Eu amo você, Harry – diz ele – Nunca se esqueça disso.
Tom fecha a porta depois de sair e Harry se vira, voltando para casa.
-x-
Algum tempo depois, já no meio da manhã, Harry se encontrava sentado numa poltrona. A louça estava lavada e organizada no secador, a roupa suja estava na máquina. Ele havia se mantido ocupado. Mas agora um vazio consumia seu peito. Era verdade o que Tom dissera. Ele não tinha memórias. Nada. Nem uma única fotografia naquela casa – sejam as que rodeavam o espelho, sejam aquelas no álbum à sua frente – lhe despertava a lembrança de quando havia sido tirada. Não havia nenhum momento com Tom do qual se recordava, a não ser os que compartilharam naquela manhã. Sua mente parecia completamente vazia.
Fechando os olhos, Harry tentava se concentrar em alguma coisa.
Qualquer coisa.
Ontem...
O Natal passado...
Qualquer Natal...
Não havia nada.
Ele se levanta e anda pela casa, de quarto em quarto. Devagar. A esmo, como um espectro, deixando a mão roçar as paredes, as mesas, os encostos dos móveis, mas sem realmente tocá-los.
- "Como fiquei assim?" – ele pensa.
Ele olha os carpetes, os tapetes estampados, as estatuetas de porcelana sobre a lareira e os pratos ornamentais arrumados sobre suportes na sala de jantar. Ele tenta dizer a si mesmo que aquilo era seu. Tudo seu. Sua casa, seu marido, sua vida... Mas essas coisas não lhe pareciam familiares. Não pertenciam a ele. Não faziam parte dele.
No quarto, ele abre o guarda-roupa e vê uma fileira de roupas que não reconhece, todas do seu tamanho, penduradas de modo organizado, como versões ocas de alguém que ele nunca conheceu. Alguém por cujo lar ele vagava agora, cujo sabonete e shampoo havia usado, cuja roupa despira e cujo chinelos estava usando. Essa pessoa estava escondida dentro dele, uma presença fantasmagórica, isolada e intocável. Esta manhã ele havia escolhido suas roupas íntimas quase com culpa, vasculhando pelas cuecas boxer enroladas ao lado das meias, como se tivesse medo de ser pego. E depois de rearrumar as peças não usadas exatamente como as havia encontrado, ele escolhera uma cueca azul escura e vestira por cima uma calça de sarja preta que abraçava perfeitamente suas curvas, uma camiseta de mangas compridas branca e um cardigã verde que descava seus lindos olhos.
Então, sentando-se à penteadeira para examinar seu rosto no espelho, Harry deixou escapar um suspiro trêmulo ao notar que aquele rosto jovem de quase trinta anos, suave, pálido e de olhos grandes era o seu rosto agora. Ele imaginou uma mulher – sua mãe – com aqueles mesmos olhos verdes, penteando seus cabelos rebeldes antes de mandá-lo para a escola. Ele tentou evocar a imagem dela, seu nome, a cor de seus cabelos... Nada. Nada veio à sua mente. Ele viu apenas um vazio, enormes lacunas entre minúsculas ilhas de lembranças, anos de vazio.
Ao descer para a cozinha e abrir os armários, o jovem se deparou com embalagens de macarrão, pacotes de um arroz rotulado como arbóreo, latas de feijão. Ele não reconhecia esta comida. Ele se lembra de comer apenas torrada com queijo derretido, peixe cozido em saquinhos e sanduíches de carne enlatada, mas nada daquilo. E, retirando uma lata rotulada de grão-de-bico e um sachê de algo chamado cuscuz do armário, Harry morde seus lábios para conter um gemido. Ele não sabia o que eram aquelas coisas, que dirá como cozinhá-las. Como havia sobrevivido como esposo de alguém se não sabia sequer como lidar com comida enlatada?
Olhando para o quadro de avisos que Tom lhe mostrara antes de sair, Harry reconheceu na cor acinzentada que as palavras foram rabiscadas e depois apagadas, substituídas, revisadas, e cada uma havia deixado ali um resíduo fraco. Ele ficou pensando o que iria achar se pudesse voltar e decifrar as camadas, se fosse possível investigar seu passado dessa maneira, se seria inútil. Ele estava certo de que tudo o que iria encontrar seriam recados e listas de comprar a fazer, tarefas a cumprir.
- "Isso é de fato a minha vida?" – pensou.
Será que sua vida toda se resumia isso? Esse era quem ele era?
Pegando a caneta-marcador, Harry acrescenta mais um recado no quadro. "Grãos-de-bico – Perguntar para Tom". Não é um grande lembrete, mas é seu.
De repente, ele ouve um barulho, uma música vinda da mesa da sala. Lá, ao lado de uma agenda quadrada de apenas cinco centímetros vermelha, encontrava-se o telefone celular que Tom descrevera. Era pequeno, muito fino e branco, parecia um brinquedo. Estava tocando, a tela piscando "número desconhecido" e não havia qualquer botão, apenas um símbolo verde e outro vermelho na própria tela. Harry aperta o verde. Nada acontece. Ele aperta de novo. Nada. De novo. Nada. Até que ele desliza o dedo pelo símbolo verde sem querer e vê que havia conseguido atender à chamada:
- Alô? – diz cautelosamente.
A voz que responde não é a de Tom.
- Olá, Harry? É Harry Riddle quem está falando?
Ele não quer responder. Seu sobrenome parece tão estranho quanto o primeiro nome havia parecido. Ele sente como se qualquer chão firme que porventura houvesse conquistado tivesse sumido de novo, substituído por areia movediça.
- Harry? Você está aí?
- Sim... – ele finalmente responde.
A voz assume um novo tom. Um tom de alívio.
- É o Dr. Malfoy – diz ele – Draco Malfoy. Isso não significa nada para você, eu sei, mas não se preocupe, temos feito progresso em sua memória.
- O que? – murmura com a voz trêmula.
- Estamos tentando descobrir exatamente o que causou seus problemas de memória e se podemos fazer alguma coisa a respeito.
Faz sentido, pensa Harry, embora outro pensamento lhe ocorra. Por que Tom não havia mencionado este médico antes de sair esta manhã?
- Tom não disse nada a respeito...
- Eu não estou certo se o seu marido sabe que você está se consultando comigo.
Harry nota que o homem sabia que Tom era seu marido, mas diz:
- Isso é ridículo. Como ele não saberia? Ele teria me avisado!
Um suspiro.
- Harry, por favor, você precisa confiar em mim...
Continua...
Próximo Capítulo: Harry sente as mãos de Tom percorrem seu corpo lentamente e não consegue abafar um gemido. Este homem era um completo estranho, mas, naquele momento, nada parecia tão familiar quantos aqueles toques febris.
-x-
N/A: Olá, meus queridos leitores. É com muita alegria e expectativa que eu trago mais uma história para vocês. Espero que vocês gostem do enredo baseado na obra de S. J. Watson, mas que muitas diferenças aqueles que conhecem a obra ou assistiram ao filme baseado na mesma obra poderão ver ao final.
Como vocês puderam observar, essa história se passa num universo alternativo ao de J. K. Rowling, mas, como não poderia ser diferente, toda a trama será centrada nos personagens de Harry e Tom.
Então, quem achou o nosso querido Lord das Trevas o marido perfeito levanta a mão... – sorrisinho malicioso – Será que essa é a realidade? Harry possui uma vida perfeita com Tom? Como Harry poderá saber? Ele irá recuperar a memória? O Dr. Draco Malfoy poderá ajudá-lo? O Dr. Malfoy conseguirá manter seus encontros com Harry escondidos de Tom?
Tudo isso vocês irão descobrir ao longo dos próximos capítulos e, sinceramente, espero que vocês gostem!
Bem, aguardo ansiosamente as Reviews de vocês para saber o que acharam do começo dessa nova história.
Elogios, críticas e sugestões são sempre bem-vindos!
Um Grande Beijo!
E até o próximo capítulo de Destinos Entrelaçados.